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Triste República que nasceu de um golpe: o Manifesto Republicano de 1870

Os Republicanos que lutavam contra a monarquia demonstram que ainda não foi fundada a República mesmo depois de passados 300 anos da sua Proclamação
Paulo Cannabrava Filho
Diálogos do Sul
São Paulo (SP)

Tradução:

A sociedade brasileira, após meio século de

existência como coletividade nacional independente,

encontra-se hoje, apesar disso, em face do

problema da sua organização política,

como se agora surgisse do caos colonial.

Manifesto Republicano de 1870

Triste República que nasceu de um golpe provocado por uma mentira e ressentimento. Foi a falsa notícia de que tinham prendido o general Floriano Peixoto que uniu a oficialidade em torno do general Deodoro da Fonseca para derrubar o império e manter o poder em mãos das oligarquias. Motivava os militares também os baixos soldos.

Na realidade, a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, foi uma contrarrevolução para barrar a Revolução Liberal que despontava no Sul e no Sudeste, e também na capital do Império, contaminando toda a Nação. Como diz a frase, foi alguém que proclamou, não foi o povo quem fez.

Os Republicanos que lutavam contra a monarquia demonstram que ainda não foi fundada a República mesmo depois de passados 300 anos da sua Proclamação

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File:Proclamação da República by Benedito Calixto 1893.

A Independência que se comemora em 7 de setembro, ocorrida em 1822, não passou também de uma farsa, uma arranjo de família para preservar o poder e a riqueza acumulada por uma oligarquia predadora e escravagista em 400 anos de colonialismo genocida.

O sentimento libertário, de luta contra a colônia e o poder oligárquico, esteve presente em todos os momento da história brasileira. O germe da Revolução Liberal também. Os que abraçavam a luta contra o colonialismo e a escravidão sonhavam com uma República Liberal. Liberal no sentido original do conceito, relacionado à ética e à soberania, pressupondo a inclusão pela educação.

A data de hoje, 15 de novembro, em que se comemora a dita Proclamação da República e se homenageia um general golpista, é oportuna para uma reflexão. Para recordar contra o que foi o golpe de 15 de novembro de 1889, vale ler o Manifesto Republicano de 1870. Como é extenso, extraímos trechos mais significativos pra facilitar a vida de vocês.

Diz o Manifesto Republicano de 1870:

Só à opinião nacional cumpre acolher ou repudiar essa aspiração.

Não reconhecendo nós outra soberania mais de que a soberania do povo, para ela apelamos. Nenhum outro tribunal pode julgar-nos: nenhuma outra autoridade pode interpor-se entre ela e nós. Como homens livres e essencialmente subordinados aos interesses da nossa pátria, não é nossa intenção convulsionar a sociedade em que vivemos. Nosso intuito é esclarecê-la.

Em um regime de compressão e de violência, conspirar seria  o nosso direito. Mas, no regime das ficções e da corrupção em que vivemos, discutir é o nosso dever.

A bandeira da democracia, que abriga todos os direitos, não repele, por erros ou convicções passadas, as adesões sinceras que se lhe manifestem. A nossa obra é uma de patriotismo e não de exclusivismo, e, aceitando a comparticipação de todo o concurso leal, repudiamos a solidariedade de todos os interesses ilegítimos.

De todos os ângulos do país surgem as queixas, de todos os lados políticos surgem os protestos e as revelações estranhas que denunciam a existência de um vício grave, o qual põe em risco a sorte da liberdade pela completa anulação do elemento democrático.

O perigo está indicado e é manifesto. Ele se mantém vivo nos dias de hoje nas intenções teocráticas do neopentecostalismo emergente. Diz o manifesto.

Sente-se a ação do mal e todos apontam a origem dele. E quando maior seja o empenho dos que buscam ocultar a causa na sombra de uma prerrogativa privilegiada e quase divina, tanto maior deve ser o nosso esforço para espancar essa sombra e fazer a luz sobre o mistério que nos rodeia.

O privilégio, em todas as suas relações com a sociedade — tal é, em síntese, a fórmula social e política do nosso país –, privilégio de religião, privilégio de raça, privilégio de sabedoria, privilégio de posição, isto é, todas as distinções arbitrárias e odiosas que criam no seio da sociedade civil e política a monstruosa superioridade de um sobre todos ou de alguns sobre muitos.

A sociedade brasileira, após meio século de existência como coletividade nacional independente, encontra-se hoje, apesar disso, em face do problema da sua organização política, como se agora surgisse do caos colonial.

Os republicanos denunciam a farsa da independência que deu origem ao Império dos Orleans e Bragança, proclamada para sufocar a revolução pela independência e pelo respeito à vontade do povo, alicerçada no pensamento liberal que grassava por toda a Nação. Diz o Manifesto

Iniciado o pensamento da emancipação do Brasil, o despotismo colonial procurou desde logo surpreender, em uma emboscada política, a revolução que surgia no horizonte da opinião. Disfarçar a forma, mantendo a realidade do sistema que se procurava abolir, tal foi o intuito da monarquia portuguesa. Para isso bastou-lhe uma ficção — substituir a pessoa, mantendo a mesma autoridade a quem faltava a legitimidade e o direito.

 Ao que acrescenta mais adiante…

 A democracia pura, que procurava estabelecer-se em toda a plenitude de seus princípios, em toda a santidade de suas doutrinas, sentiu-se atraiçoada pelo consórcio falaz da realeza aventureira. Se ela triunfasse, como devera ter acontecido, resguardando ao mesmo tempo as garantias do presente e as aspirações do futuro, ficaria quebrada a perpetuidade da herança que o Rei de Portugal queria garantir à sua dinastia.

 Entre a sorte do povo e a sorte da família, foram os interesses dinásticos os que sobrepujaram os interesses do Brasil.

 O voto do povo foi dispensado. A forma da aclamação fictícia à sanção da soberania nacional, e a graça de Deus, impiamente aliada à vontade astuciosa do rei, impôs com o Império o imperador que o devia substituir.

Lembra que por força da pressão popular, o imperador concordou com realizar uma Constituinte, mas, diante dos rumos apontados, dos Liberais se juntarem à vontade popular…

A Constituinte foi dissolvida à mão armada, os representantes do povo dispersos, proscritos e encarcerados. A espada vitoriosa da tirania cortou assim violentamente o único laço que a podia prender à existência nacional e envenenou a única fonte que lhe podia prestar o batismo da legitimidade.

Assim, pois, anulada a soberania nacional, sofismadas as gloriosas conquistas que pretenderam a revolução da independência de 1822 e a revolução da democracia em 1831, o mecanismo social e político, sem o eixo sobre que devia girar, isto é, a vontade do povo, ficou girando em torno de um outro eixo — a vontade de um homem. A liberdade aparente e o despotismo real, a forma dissimulando a substância, tais são os característicos da nossa organização constitucional.

O Primeiro como o Segundo Reinados são por isso semelhantes, constata o Manifesto. Quer dizer, não mudou a essência do regime, fundado no latifúndio e na escravidão. Veja que com o passar do tempo o cenário muda, mas não se altera a essência do regime, fundado no latifúndio, na servidão, hoje com a componente da da ditadura do Pensamento Único imposta pelo Capital Financeiro.

Citando um discurso de Nabuco de Araújo na Câmara Vitalícia (Senado composto por nomeados também era vitalício) dá um pontapé na tal da democracia representativa:

“Ora dizei-me: Não é isto uma farsa? Não é isto um verdadeiro absolutismo, no estado em que se acham as eleições no nosso país? Vede esta sorites[1] fatal, esta sorites que acaba com a existência do sistema representativo: — O Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios; esta pessoa faz a eleição porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria. Eis aí o sistema representativo do nosso país!”

O Poder Moderador, na época, era do imperador. A partir do golpe militar que implantou a República Oligarca passou a ser exercito pelo Exército, com ou sem demanda civil, hoje as forças armadas. O que é que mudou até os dias de hoje?

Tudo está estremecido: a Ordem e a Liberdade. Se o presente aflige, o futuro assusta.” … “Não pode haver harmonia entre oprimidos e opressores, entre usurpadores e usurpados, entre algozes e vítimas. “Se os oprimidos suportam, chamai-os resignados”.

 O Diário do Rio de Janeiro, desde os anos 1860, estava preocupado e advertia

“Tudo está estremecido: a Ordem e a Liberdade. Se o presente aflige, o futuro assusta.” … “Não pode haver harmonia entre oprimidos e opressores, entre usurpadores e usurpados, entre algozes e vítimas. “Se os oprimidos suportam, chamai-os resignados”.

Mais adiante, citando o Diário de São Paulo, do Partido Conservador, de abril de 1867, constata…

Para o monarca brasileiro só há uma virtude, o servilismo! …. “Para os homens independentes e sinceros, o ostracismo; para os lacaios e instrumentos de sua grande política, os títulos e as condecorações!”

Veja se não é a mesma prática do atual governo de ocupação. Tira um técnico de um Instituto de Pesquisa por dizer a verdade sobre o desmatamento e impor a mentira que favorece os predadores.  tira um seguro que favorece milhões de pessoas para punir um só indivíduo que não lhe é servil.

O Manifesto dedica uma parte em defesa do Regime Federativo, como uma imposição da própria geopolítica do país e critica os esforços centralizadores do poder imperial.

Lembrando que a Carta de 1824 é uma Constituição sem Constituinte, ou seja, outorgada pelo imperador, vaticina…

Ora, admitir a igualdade do poder divino ao humano é de impossível compreensão.

 A democracia que preconizam

Para que um governo seja representativo, todos os poderes devem ser delegações da nação, e não podendo haver um direito contra outro direito segundo a expressão de Bossuet, a Monarquia temperada é uma ficção sem realidade.

A soberania nacional só pode existir, só pode ser reconhecida e praticada em uma nação cujo Parlamento, eleito pela participação de todos os cidadãos, tenha a suprema direção e pronuncie a última palavra nos públicos negócios.

Desde que exista, em qualquer constituição, um elemento de coação ao princípio da liberdade democrática, a soberania nacional está violada, é uma coisa írrita e nula, incapaz dos salutares efeitos da moderna fórmula do governo — o governo de todos por todos.

Outra condição indispensável da soberania nacional é ser inalienável e não poder delegar mais que o seu exercício. A prática do direito não o direito em si é o objeto do mandato.

Desta verdade resulta que quando o povo cede uma parte de sua soberania, não constitui um senhor, mas um servidor, isto é um funcionário.

Mais adiante completa a imagem de soberania

 Ainda mais: a soberania nacional não pode sequer estipular sobre a sua própria alheação. Porque é a reunião, a coleção das vontades de um povo. E como as gerações se sucedem, e se substituem, fora iníquo que o contrato de hoje obrigasse de antemão a vontade da geração futura, dispondo do que não lhe pertence, e instituindo uma tutela perene que seria a primeira negação da própria soberania nacional”.

Feita toda essa introdução, que podemos considerar como uma análise da conjuntura subjetiva carregada de ideologia liberal, eles conclamam por uma Constituinte Soberana. Por favor não confundir os princípios que norteavam as Revoluções Liberais com o liberalismo hodierno e menos ainda com o neoliberalismo que quer o fim do Estado.

Em conclusão 

Expostos os princípios gerais que servem de base à democracia moderna, única que consulta e respeita o direito e a opinião dos povos; temos tornado conhecido o nosso pensamento.

Como o nosso intuito deve ser satisfeito pela condição da preliminar estabelecida na própria Carta outorgada, a convocação de uma Assembléia Constituinte com amplas faculdades para instaurar um novo regime é necessidade cardeal.

As reformas a que aspiramos são complexas e abrangem todo o nosso mecanismo social.

Negá-las, absolutamente, fora uma obra ímpia porque se provocaria a resistência.

Aprazá-las indefinidamente fora um artifício grosseiro e perigoso.

Fortalecidos, pois, pelo nosso direito e pela nossa consciência, apresentamo-nos, perante os nossos concidadãos, arvorando resolutamente  a bandeira do Partido Republicano Federativo.

 Somos da América e queremos ser americanos.

 A nossa forma de governo é, em sua essência e em sua prática, antinômica e hostil ao direito e aos interesses dos estados americanos. A permanência dessa forma tem de ser forçosamente, além da origem de opressão no interior, a fonte perpétua da hostilidade e das guerras com os povos que nos rodeiam.

Perante a Europa passamos por ser uma democracia monárquica que não inspira simpatia nem provoca adesão. Perante a América passamos por ser uma democracia monarquizada, onde o instinto e a força do povo não podem preponderar ante o arbítrio e a onipotência do soberano.

Em tais condições pode o Brasil considerar-se um país isolado, não só no seio da América, mas no seio do mundo. O nosso esforço dirige-se a suprimir este estado de coisas, pondo-nos em contato fraternal com todos os povos, e em solidariedade democrática com o continente de que fazemos parte.

 Este manifesto foi assinado pelos Srs.: Seguem firmas

Pra ler na íntegra e ver quem assina  https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4360902/mod_resource/content/2/anifesto%20republicano%201870.pdf#page=1&zoom=auto,-167,848 


[1] Segundo o Caldas Aulete sorites: raciocínio composto de um número indeterminado de proposições, dispostas de modo que o atributo da primeira se torna em sujeito da segunda, o atributo da segunda sujeito da terceira, e assim por diante até à conclusão que toma por sujeito o sujeito da primeira e por atributo o da última. F. gr. Soreites.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1967. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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