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Jovem presa por engano relata abandono, tratamento e solidão nos presídios femininos

‘Na cadeia você vale o que tem e nós, mulheres, não temos nada’, escreve Babiy Querino, que, mesmo sem provas, passou quase dois anos na prisão
Babiy Querino
Ponte Jornalismo
São Paulo (SP)

Tradução:

A primeira vez que passei por aqueles portões foi tão traumatizante que ainda sinto a mesma angústia no peito.

O que é isso? Pergunto-me. Ah não,então esse é o famoso “peladão” tiro tudo, abaixo, abro, faço força, empurro e levanto. Saio, coloco as roupas de “reeducanda”, pego meu kit com dois sabonetes, uma pasta de dente, uma escova, um pacote de absorvente, dois papéis higiênicos e uma toalha de banho. São tantos portões e em cada portão uma funcionária.

Trancada na “inclusão” – pra quem não sabe é a cela que esperamos para efetuar o cadastro no sistema da unidade e assim ir para convivência -, com mais de vinte mulheres esperando o dia amanhecer para atracar no Raio que iremos “morar”, choro, tenho medo e muita fome. Há apenas uma brecha aberta, para chamar a “senhora” em caso de alguém passar mal.

‘Na cadeia você vale o que tem e nós, mulheres, não temos nada’, escreve Babiy Querino, que, mesmo sem provas, passou quase dois anos na prisão

Gabrielle Nascimento / Pastoral Carcerária
Posição de ‘procedimento’ em que as presas têm que ficar durante as incursões das tropas de choque

No dia seguinte grita a funcionária: “Ei, presas, podem sair, façam uma fila, mão pra trás e cabeça baixa, peguem aqui um colchão e um cobertor. Podem ir.” Atravesso mais seis portões e novamente mais uma funcionária. “Nome completo e matrícula?”.

Não sei minha matrícula, não decorei. Mas ai lembro-me que a outra funcionária deixou que eu anotasse num papel e então respondo. “Bárbara Querino de Oliveira, matrícula 1097343”. A funcionária então diz: “Você é raio 4, lá as meninas irão te informar em qual cela você vai ficar”.

Chego ao raio assustada ao ver aquele monte de mulher sentada esperando pra ver quem chegou dessa vez. As meninas que ficam na capa pegam minhas coisas e me levam para sua cela, lá perguntam de onde sou, no que cai e me informam pra ir para cela 9 que eu ficaria lá. E foi assim que começou minha jornada atrás das grades: raio 4 cela 9.

Bom, sabe-se que de fato poucas pessoas falam ou exploram o mundo nos presídios femininos, até porque vivemos numa sociedade machista e geralmente quando se fala de encarceramento lembra-se apenas do homem.

Mas o que me incomoda é ver que existe algumas séries que “relatam” sobre mulheres encarceradas e se limitam em passar apenas sobre a lesbianidade, que de fato existe, mas não vejo como uma necessidade maior de exposição.

Quando assistimos séries relatando presídios masculinos é sempre aquela história: “precisamos mostrar como os homens agem nas cadeias, isso dá audiência, enaltecemos os caras, mostramos rebeliões, abusos, as dores, etc”. Ou seja, mais uma vez, o mundo gira em torno do homem.

Mas não estou aqui para falar de presídios masculinos, até porque já é bem falado. O ponto X é que se lembram da mulher apenas quando o assunto é sobre relações afetivas dentro do sistema, mas esquecem de mostrar que tudo o que existe e passam nos presídios masculinos, também existe no feminino.

Certo dia, conversando com uma companheira, ela me disse uma frase: “Babiy, cadeia foi feita pra mulher, não pra homem.” Aquilo ficou matutando na minha mente e resolvi perguntar o porquê ela afirmava aquilo e ela disse: “O homem sofre muita opressão também, o homem também apanha, também sofre abusos, mas é o homem que todos os finais de semana tem visita e ‘jumbo’ [pacote com alimentos e produtos de higiene pessoal que as famílias levam aos presos]. Ele não é humilhado por não ter nem um cigarro pra fumar. Na cadeia você vale o que tem e nós não temos nada, nem direito à água, sofremos muito, porque grande parte de nós tem família longe. Somos abandonadas por nossos maridos e, detalhe, a maioria está aqui por causa do marido. Nós ficamos longe de nossos filhos, muitos são pequenos, mas os maiores sempre nos julgam.”

Após aquela fala eu realmente passei a concordar que cadeia foi “feita” para mulher, ainda mais para a mulher negra.

Desde o início dos tempos nós sempre pagamos pelos erros do mundo, temos que fazer o que for preciso para alimentar nossos filhos, tudo sozinha. Sempre sozinhas! São nossos filhos que são tirados de nossos braços após seis meses, muitas de nós não têm família perto, não temos visita e nossos filhos são levados para abrigos. Isso dói! Tirar o filho de uma mãe é pior do que prisão perpétua.

Somos espancadas e quando abrimos a boca somos sempre as prejudicadas. Afirmo isso porque conheci e vi uma sapatão apanhar de mais de cinco funcionárias com a mão pra trás sem poder fazer nada. Conheci uma mulher que apanhou indevidamente após um domingo de visita e ao dizer que tomaria providências judiciais, apanhou mais e ainda voltou regredida para o regime fechado por desacato. É aquele famoso ditado “uma mentira de farda, vale mais do que 10 verdades”.

Se somos sozinhas? Ah, que pergunta!

É só verem os números de suicídio dentro dos presídios femininos. Poucas sobrevivem poucas ficam com a mente no lugar. A grande maioria precisa se dopar para poder dormir ou então para que o dia passe rápido. Eu mesma já me dopei.

Sem contar que homens cis não menstruam. Quando eu estava encarcerada, conheci uma mulher e, ao conversar com ela, fiquei chocada com seu relato.

Ela disse que sua menstruação ultrapassa dez dias e como a unidade prisional disponibiliza apenas dois pacotes de absorvente e daquele bem vagabundo – a cada dois ou três meses -, ela havia conseguido algumas doações de outras mulheres. Mas como seu fluxo é forte, as doações não deram conta e acabaram. Ela pedia mais absorvente para as funcionárias e a resposta era sempre negativa. Nunca tem nada. E ainda dizem que gastam mais de R$ 2.400 por preso no Brasil. No final das contas, ela tinha que usar toalha no seu dia a dia e, mesmo sabendo que iria se manchar, todo mês era essa dificuldade.

Ser forte nós até somos, tentamos ao máximo. Vejam por mim: me superei em todos os aspectos. Nem eu acredito, às vezes. Mas não garanto que os destroços não estejam aqui.

Quero trazer com este breve texto a seguinte reflexão: de fato cadeia não é para ninguém, mas já que ela existe e não segue alguns requisitos mínimos como o direito à preservação da dignidade humana, devemos nos aprofundar neste assunto. Lembrando que inocente ou não, todos que estão presos são vítimas deste sistema genocida, racista, misógino, moedor de sonhos e sem oportunidade. Na verdade, sem oportunidade para o povo periférico! E se sabemos que todos são vítimas deste sistema patriarcal, meu papel é expor vivências e minha visão diante deste caos que estamos vivendo.

(*) Babiy Querino é dançarina, coreógrafa e escritora. Mesmo sem provas, foi condenada e ficou presa por 1 ano e 8 meses. Ganhou a liberdade em setembro do ano passado.

*Texto publicado originalmente no Papo 10, na plataforma Medium


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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Babiy Querino

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