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Especialista compara cloroquina a novo marco do saneamento: "Não cura e pode matar"

Marcos Montenegro, do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento, analisa impactos da lei 14.026
Lu Sudré
Brasil de Fato
São Paulo (SP)

Tradução:

A meta de universalização do saneamento básico para a próxima década será inalcançável caso o Brasil mantenha políticas de austeridade e continue a incentivar o protagonismo da iniciativa privada no setor.

É o que analisa de Marcos Montenegro, engenheiro e coordenador-geral do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas). O especialista afirma que nos últimos anos já havia uma regressão nas políticas da área, retrocesso consolidado com a aprovação recente do novo marco do saneamento básico. Em entrevista ao Brasil de Fato, Montenegro destrincha aspectos da lei 14.026/2020, que facilita a entrada de empresas privadas na prestação dos serviços. 

As mudanças foram vendidas por seus defensores como o caminho para alcançar a universalização do saneamento – realidade distante na vida de tantos brasileiros. De acordo com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), aproximadamente 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada no Brasil. 

Marcos Montenegro, do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento, analisa impactos da lei 14.026

TV Brasil/Reprodução
"O que a lei nova pretende fazer é desestruturar essas companhias de modo a abrir o mercado para o setor privado", argumenta o engenheiro.

Segundo Montenegro, é inegável a gravidade do problema no país. Mas, por outro lado, a situação será resolvida com a apropriação do setor por empresas privadas. Conforme o engenheiro destaca, a experiência internacional mostra o contrário.

“Essa nova lei é a cloroquina da doença do saneamento básico. É um remédio que além de não curar, pode matar o doente. Por que pode matar? Porque tem um potencial de desorganização do que nós temos que é muito grande”, critica Montenegro, comparando o novo marco com a medicação sem eficácia comprovada defendida arduamente por Jair Bolsonaro contra o novo coronavírus.

O especialista acredita que o discurso em defesa da universalização até 2033 foi uma estratégia de marketing usada pelos setores que apoiam a privatização desgovernada no país.

“Temos convicção de que a universalização do serviço público do saneamento vem acompanhada de políticas de desenvolvimento sustentável, com distribuição de renda e prioridade de políticas públicas que atendam as populações vulneráveis, tanto na cidade quanto no campo.” 

Confira a entrevista na íntegra. 

Brasil de Fato: A partir dos índices atuais de saneamento brasileiro, como avalia a situação do nosso país?

Marcos Montenegro: Aqui no Brasil não temos tido, nos últimos anos, um esforço significativo de ampliação do atendimento e de foco em particular das populações mais vulneráveis. Temos a revisão do Plano Nacional do Saneamento Básico, do Plansab, e em razão de um esforço que começou no último governo Dilma temos adotado, pelo menos formalmente, um Programa Nacional de Saneamento Rural.

Mas, de fato, desde 2016 para cá, temos regredido no esforço da União para avançar em direção a metas mais satisfatórias. O que seria importante dizer é que o atendimento do direito humano à água e ao esgotamento sanitário deve ser feito de modo progressivo e deve priorizar as populações mais vulneráveis.

As populações mais vulneráveis são exatamente as que não estão sendo atendidas. São as populações mais pobres, moradoras de favelas, das periferias das cidades maiores, das metrópoles e também a população rural, mais pobre, em particular na região do Norte e Nordeste, populações ribeirinhas. Essas pessoas todas vivem em situações dramáticas em consequências, inclusive, sobre a saúde.

No Nordeste em particular, onde atua a articulação do semiárido, temos um problema significativo de acesso à água e vemos que o contrário. O direito humano à água está regredindo. 

O novo marco do saneamento básico, que amplia o espaço para as empresas privadas, foi aprovado com o discurso de que, a partir dele, o país alcançará a universalização até 2033. Qual sua opinião sobre a lei? Essa meta é factível?

Enquanto essa lei ainda era projeto houve uma intensa campanha no sentido de dar destaque às mazelas do saneamento básico brasileiro, que são de fato sérios. Mas o remédio que essa nova lei preconiza é completamente inadequado.

O que a lei nova pretende fazer é desestruturar essas companhias de modo a abrir o mercado para o setor privado.

Eu acabo falando que essa nova lei é a cloroquina da doença do saneamento básico. É um remédio que além de não curar, pode matar o doente. Por que pode matar? Porque tem um potencial de desorganização do que nós temos que é muito grande. 

Marcos Montenegro atua há décadas no setor do saneamento básico e já trabalhou em diversos municípios / Foto: Reprodução/TV Brasilsa

A oferta atual, em particular, da oferta de água e esgoto, em sua massiva maioria é garantida por companhias estaduais do saneamento. Algumas mais eficientes outras bastante ineficientes que precisariam ser reorganizadas e reestruturadas. Mas o que a lei nova pretende fazer é desestruturar essas companhias de modo a abrir o mercado para o setor privado.

Isso é um verdadeiro salto no escuro. Um risco tremendo de que haja uma involução no setor. E de que, inclusive, além da desestruturação, a presença do setor privado não se dê como o esperado.  

Na sua opinião, então, a universalização em 2033 não será possível?

É puro marketing, pura fake news a história da universalização em 2033 nos termos que estão colocados. Sem uma intervenção maciça de políticas e recursos públicos e da articulação das políticas públicas na cidade e no campo. 

A água ganha muito destaque quando se fala em saneamento, mas qual o contexto brasileiro em relação ao manejo dos resíduos sólidos, limpeza urbana e drenagem das águas fluviais?

Nós temos na área de resíduos e na limpeza urbana, uma situação em que se destaca os déficits da região Norte e Nordeste em termos da coleta tradicional de lixo. Temos cidades dessas regiões que não têm cobertura abrangente do serviço de coleta de lixo. De forma mais geral no país, temos cidades, em particular as pequenas, com problemas de inadequação da destinação final.

Tenho a plena convicção que precisamos, de fato, de um esforço para que haja soluções regionalizadas de destinação final, onde a prioridade são aterros sanitários que possam atender vários municípios ao mesmo tempo dentro de uma perspectiva de regionalização. Já não é de hoje, desde o segundo governo Lula, que se aponta a necessidade de regionalização da destinação final de resíduos sólidos domiciliares e afiliados. 

Mas uma coisa que chama atenção nessa lei é a ameaça aos prefeitos, de que se não implantarem, a curto prazo, a cobrança pelo serviço de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, serão enquadrados na lei de responsabilidade fiscal. O que acontece é que uma lei ordinária de fato está tentando modificar uma lei complementar que é a lei de responsabilidade fiscal. Nesse caso, é flagrante a inconstitucionalidade.

Do ponto de vista da drenagem urbana, o que eu poderia dizer é que nas metrópoles onde estão, em geral, os problemas – inclusive de enchente – há desarticulação da cooperação federativa. A lei tornou mais difícil a cooperação entre estados e municípios, não ajudando em nada a resolver os problemas das enchentes nas nossas regiões metropolitanas.

Onde, inclusive, já existe uma certa visão de trabalho onde as obras nas calhas dos rios principais são de responsabilidade dos governos estaduais e as intervenções locais ficam com os municípios. E evidentemente é preciso haver um planejamento integrado das ações locais com as estaduais. Esse aspecto que não está sendo discutido, os impactos do serviço de drenagem, na minha opinião, vai ficar mais claro à medida que o tempo passe.

Após a aprovação do novo marco, veio à tona um debate sobre as inseguranças jurídicas dessa nova lei. Quais são elas, além dessa questão dos gestores municipais?

No meu entendimento e o entendimento das discussões que o Observatório Nacional do Direito à Água e ao Saneamento vem fazendo, essa lei 14.026/2020 tem vários pontos inconstitucionais. Em especial, a vedação da cooperação inter-federativa para a prestação do serviço público do saneamento básico por meio dos contratos de programa.

Essa opção está colocada no artigo 241 da Constituição Federal. Então, não é possível que uma lei ordinária, da União, impeça os estados e municípios de cooperarem entre si. Para deixar claro, por exemplo, com um caso de manejo de resíduos sólidos. O que essa lei está vedando em última instância, é, por exemplo, um município colocar os resíduos sólidos e domiciliares em um aterro de outro município.

Para que isso ocorra deve haver um contrato entre eles. E a lei atual está dizendo que isso só pode ser feito se houver uma licitação. Esse tema é um onde é flagrante a inconstitucionalidade. 

A previsão da constituição de unidades regionais de saneamento por meio de leis estaduais ordinárias também é outro aspecto de flagrante inconstitucionalidade. A figura que a Constituição prevê é a da microrregião instituída pela lei estadual complementar. A diferença entre uma lei ordinária e a complementar é que, para que a complementar seja aprovada, ela precisa de um quórum maior do que o quórum simples da lei ordinária.

Tem um outro tema que é o tema do município poder escolher uma agência reguladora de outro estado que não o seu. Ora, as agências reguladoras são constituídas como autarquias estaduais e municipais. Elas têm o princípio da territorialidade. Não podem atuar fora da área para qual elas foram criadas.

Então, uma autarquia do estado de São Paulo não tem como ter poder sobre o serviço prestado em um município do estado do Rio de Janeiro, por exemplo, por mais que seja vizinho.

São temas que vão, como outros, impactar na segurança jurídica. Não só dos contratos atuais mas dos que estão em fase de negociação.

Dados do SNIS divulgados ano passado, registram que pouco mais de 8% dos serviços de saneamento são executados por empresas privadas. Entre elas a BRK Ambiental e Aegea. Como funciona a atuação dessas empresas? 

Em geral, podemos caracterizar um oligopólio mas que não é fechado. Existem empresas de pequeno porte também, atuando na prestação de serviços de água e esgoto. Na área de resíduos sólidos existe um conjunto de empresas, inclusive representada pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais e no caso de água e escoto pela Abcon (Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto).

As empresas maiores desse grupo têm participação de fundos estrangeiros e isso é um aspecto que precisa ser destacado porque são fundos que não tem nenhum compromisso com as políticas públicas brasileiras.

São fundos geridos na perspectiva do lucro dos seus investidores e inclusive com aversão ao risco muito alto. Muitas vezes, há exigências de rentabilidade a curto prazo, que têm pouco a ver com a necessidade de maturidade dos investimentos e, portanto, que o retorno se dê a médio e longo prazo. Tem uma presença grande de capital estrangeiro na composição acionária. 

Em meio a discussão de análise do novo marco, foram apresentados casos internacionais em que a privatizações não geraram os resultados esperados e os serviços acabaram sendo reestatizados. Esse pode ser o futuro dos municípios brasileiros?

Olha, a reestatização da prestação de serviço de água e esgoto ocorreram em vários países. O Instituto Transnacional tem estudado esse assunto e são centenas de casos de remunicipalização. Muitos deles na Europa. Vários deles nos Estados Unidos. Essas iniciativas vem como respostas políticas de austeridades. Mesmo com as intervenções das agências reguladores, acabaram refletiram atuações neoliberais. O predomínio do objetivo do lucro sobre os direitos sociais é marcante. A tendência é a de  retirar os lucros ao invés de reinvesti-los na ampliação e melhoria da qualidade dos serviços. 

Tudo isso fez com que muitas cidades importantes, de várias partes do mundo… no Canadá, na Lituânia, na Inglaterra, em Barcelona na Espanha, em Paris, o exemplo mais lembrado, mostraram que não é por aí que vamos alcançar a universalização. 

Mesmo em condições de conjuntura social, de estrutura social, menos injustas e desiguais do que o Brasil. Com uma pobreza muito menor do que a existente na população brasileira. 

Além do novo marco, que teve relatoria de Tasso Jereissati, o senador também tem um projeto que cria o “Mercado de Águas” no Brasil. Qual sua opinião sobre ele e perspectivas para aprovação? Quais serão suas consequências caso de fato seja aprovado?

É mais uma iniciativa das políticas neoliberais. Esse projeto de lei necessita que estejamos organizados, lutando contra sua aprovação. Ele preconiza o tratamento do recurso hídrico, da água bruta, que vai ser usada em usos como agricultura, dessedentação de animais, como o abastecimento público e geração de energia, entre outros, assim como a mercadoria.

Esse PL pretende permitir a comercialização das outorgas. Do direito de uso da água. Quer permitir a venda das outorgas. No nosso entendimento, vai trazer como consequência o controle do uso da água pelos oligopólios, especialmente pelo agronegócio e pelo setor da água engarrafada. Aliás, nesse setor, o Tasso Jereissati tem interesses econômicos. Como o próprio setor de geração de energia hidroelétrica.

Os segmentos sociais com menor poder político e econômico são os potenciais prejudicados, em particular a agricultura familiar e a própria água para o saneamento rural, estarão ameaçados. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e a Articulação do Semiárido (ASA) já se posicionaram contrários a esse projeto de lei, da mesma forma que o Ondas. É necessário que façamos um esforço de denúncias e de organização da luta contra sua aprovação.

Só a implementação de um novo marco ou de uma lei é suficiente para que esse direito seja respeitado de fato?

Nós não podemos imaginar que vamos avançar para um atendimento com maior equidade no abastecimento de água e no esgotamento sanitário quando todas as outras políticas apontam para o aumento da desigualdade. Desde 2016, temos o índice Gini, que mede a desigualdade da renda da população, aumentando. Tivemos um período de diminuição da desigualdade e voltou a aumentar.

As políticas neoliberais, de austeridade, de contenção dos gastos públicos em políticas públicas essenciais, em nome do privilégio e interesse dos grandes grupos econômicos, é o que estamos vivendo hoje com o governo Bolsonaro. Esse tipo de escolha não pode nos levar para a melhoria dos atendimentos. Temos que, para que de fato tenhamos sustentabilidade na ampliação da oferta dos serviços de saneamento, temos que nos apoiar no desenvolvimento sustentável da sociedade brasileira a partir de um processo de democracia popular.

Em particular nas cidades, me parece fundamental articular a agenda da universalização do saneamento básico com a agenda da reforma urbana democrática, que assegura o direito à cidade e especificamente à moradia da população pobre da periferia. Mas não só da periferia, como das áreas centrais cuja visibilidade os movimentos sociais de hoje estão dando. 

Da mesma forma, no campo, é fundamental que haja a reforma agrária, a valorização da agricultura familiar para que tenhamos condição de sustentação, de sustentabilidade, da oferta de serviços públicos do saneamento básico. 

Há também uma urgência na preservação das fontes naturais e do meio ambiente nesse processo?

Sem dúvida que sim. Uma nota importante que se pode fazer é que o uso uso intensivo de defensores agrícolas pelo agronegócio traz como consequência exatamente a deteriorização da qualidade da água, o aumento dos rios sanitários dessa água, os riscos para a saúde. Faz com que haja um aumento nos custos de tratamento e controle da água para uso potável. 

E da mesma forma, algumas atividades como a mineração. Esses desastres que tivemos em Minas Gerais com a mineração chama muita atenção sobre esses aspectos. Sem a água como matéria prima para o abastecimento de água, sem fontes sustentáveis, vamos criar e intensificar situações que vão agravar o atendimento da população mais pobre.  

Nesse sentido, as metas de desenvolvimento sustentável da ONU estão comprometidas? O que podemos aprender com os países mais avançados nessas políticas?

Eu acho que o país não caminha, na situação atual, com as políticas atuais, com esse governo federal, para a ampliação do atendimento e diminuição das desigualdades. No nosso entendimento, é preciso mudar o modelo econômico que está nos inviabilizando como país. Que aprofunda a desigualdade social e inclusive do ponto de vista da saúde pública, inclusive somos o segundo país com o maior número de casos confirmados de covid-19. 

Temos convicção que a universalização do serviço público do saneamento vem acompanhado com políticas de desenvolvimento sustentável, com distribuição de renda e prioridade de políticas públicas que atendam as populações vulneráveis, tanto na cidade quanto no campo. E quando digo campo, estou falando também da população da floresta, dos ribeirinhos. Do conjunto dos povos que estão fora das cidades.

Edição: Rodrigo Chagas

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Lu Sudré

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