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Toggle“Todos que acompanham a nossa história, inclusive alguns militares, avaliam que o país vive a sua pior crise, desde que passaram a nos chamar de Brasil. Nestes 500 anos, nunca houve uma crise tão grave e tão profunda. Estamos enfrentando, na verdade, uma confluências de crises que mexe com as estruturas da nossa sociedade”. A avaliação é de João Pedro Stédile, da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que participou nesta sexta-feira (18) de uma live com jornalistas da redação do Sul21. A conversa de uma hora analisou o atual momento político brasileiro e as implicações dessa confluência de crises para a vida do povo brasileiro.
Para Stédile, a crise que o Brasil está enfrentando é uma crise do próprio modo de produção capitalista e não apenas de alguns setores da economia. Neste cenário, assinalou, as grandes empresas, os bancos e as corporações transnacionais podem até seguir mantendo lucros estratosféricos, porém, o modo de organizar a produção não consegue resolver mais as necessidades fundamentais da população brasileira, que é garantir trabalho, alimentação, moradia, terra, renda, saúde e educação. “É um sistema anacrônico que já não projeta soluções para o futuro. Teremos que pensar um novo modo de organizar a produção. Tudo isso tem repercussões gravíssimas na sociedade, se expressando como crise social”, assinalou.
O dirigente do MST lembrou que 44 bilionários brasileiros tiveram um lucro extraordinário de R$ 180 bilhões durante a pandemia, além do que as empresas deles já acumulavam. Do outro lado, ressaltou, temos 65 milhões de brasileiros fazendo fila na Caixa Econômica Federal para pegar 600 reais, que agora o governo quer reduzir para trezentos. “A sociedade brasileira virou isso. De um lado 44 bilionários, do outro 65 milhões de adultos, chefes de família, que têm que mendigar seiscentos reais para não passar fome”.
Sul 21 | Reprodução
João Pedro Stédile
“Todos os biomas do Brasil estão pegando fogo”
A segunda dimensão da crise, destacou João Pedro Stédile, é ambiental que aparece nos fenômenos conjunturais que a imprensa vem relatando, como as mudanças climáticas e as queimadas. “Todos os biomas do Brasil estão pegando fogo. Temos 29 mil casos de queimadas na Amazônia, detectados pelos satélites do INPE. Estamos com o Pantanal queimando, o bioma mais úmido que nós temos. É como se a caixa d’água de uma casa pegasse fogo. Vocês conseguem imaginar isso? Pois é o que está acontecendo. No Cerrado, embora menos divulgado, também estão ocorrendo queimadas. O cultivo de soja acabou com a biodiversidade do Cerrado. E aqui no Pampa também temos notícias de queimadas”.
Outro aspecto dessa crise ambiental, disse ainda Stédile, é que as empresas, em tempo de crise, exploram com muito mais ganância os bens da natureza, seja a terra, florestas, água, minérios ou o pré-sal, para se apropriar desses bens de forma privada e trazê-los para o mercado. “Neste movimento, de transformar um bem da natureza em mercadoria, eles conseguem lucros extraordinários. A Nestlé, por exemplo, na indústria de laticínios, tem uma taxa de lucro média de 13% por ano, que é a taxa média de lucro dos capitalistas industriais. Mas quando ela vai lá no sul de Minas, pega água e transforma em mercadoria, o custo dela é basicamente o transporte e o plástico, o que garante uma taxa média de lucro de 400%.
A terceira dimensão da crise, na avaliação do dirigente do MST, é a crise do Estado burguês, que representa algo mais do que crises institucionais eventuais. “Quem manda agora é a burguesa financeira e para eles é muito mais conveniente comprar candidatos do que disputar ideias nas eleições, mas isso traz uma contradição, que é a descrença do povo nos políticos. Há uma crise de legitimidade. Eles podem até se eleger, mas o povo não acredita neles. Veja o que está acontecendo agora. Os dois governadores que se elegeram com maior apoio popular, no Rio de Janeiro e em Santa Catarina, vão perder o mandato antes de completar dois anos no governo. Cadê o povo que os elegeu? Não está nem aí.”.
Em quarto lugar, Stédile também identificou uma dimensão ideológica na crise. Durante todo o neoliberalismo (um período de 30 anos), observou, ficaram martelando na cabeça da juventude que só é feliz quem consome, quem vai ao shopping Center, quem tem o tênis e o celular da moda. Esse discurso, porém, gerou uma contradição, apontou. “Esses falsos valores do consumismo, do egoísmo e do individualismo, são antissociais. A sociedade precisa resolver seus problemas de forma coletiva. A felicidade é coletiva”. Stédile resumiu essa questão citando uma frase de José Martí: Só é possível ser feliz ajudando os outros. “Isso pode ser a síntese dos Evangelhos ou de qualquer corrente filosófica. Você quer ser feliz? Então ajude o próximo. Só assim vai conseguir se realizar como ser humano. A lógica do neoliberalismo e do capitalismo é o contrário disso: massacre o próximo, pise no próximo”.
Veja abaixo a íntegra da live com João Pedro Stédile
Essa confluência de crises no Brasil, observou Stédile, se agravou com a pandemia de covid-19 e com o governo Bolsonaro. Para ele, a grave crise de saúde pública provocada pelo novo coronavírus poderia ter sido evitada. Ele citou o exemplo de países como Vietnã, com apenas 35 mortes por covid-19 até aqui, de Cuba, com pouco mais de 90 mortes até aqui, e da Indonésia que, com cerca de 280 milhões de habitantes, teve até aqui algo em torno de 3.500 mortes pela covid. “Nós estamos vivendo essa tragédia social, com mais de 130 mil mortes e vai seguir aumentando, pois ainda estamos no platô. Isso porque não houve medidas de controle do governo”.
Temos um governo, acrescentou, que se elegeu pelas fake news e adota um método fascista de governar. Stédile definiu assim esse método: “O método adotado por Bolsonaro e a turma dele é pregar o ódio o tempo todo. É ódio ao diferente. Eles têm ódio ao negro, aos homoafetivos, a tudo que seja diferente deles. O diferente é transformado em inimigo. Isso é uma loucura. Numa sociedade tão plural quanto a nossa a diversidade é uma riqueza e um valor. Para eles, ser diferente é ser inimigo e aos inimigos o fascismo prega a eliminação. Você pode eliminar moralmente o inimigo com uma falsa propaganda, ou você pode eliminar o inimigo prendendo ele, como fizeram com Lula, ou chegam mesmo à eliminação física, como fizeram com a Marielle, que ganharia as eleições para o Senado, no lugar do Flávio. Também mataram o Adriano, numa queima de arquivo. Como ele era só miliciano, poderia abrir o bico quando fosse preso. Essa é a gravidade da crise na qual estamos metidos no Brasil”.
“Precisamos propor um projeto de país que seja pós-capitalista”
Diante desse cenário, Stédile disse que os caminhos para a esquerda brasileira não são fáceis nem podem ser tirados de manuais. “Precisamos construir um novo projeto de país. Não é apenas uma disputa eleitoral. Precisamos encontrar respostas para esses dilemas que a crise do capitalismo trouxe. O próprio modelo que Lula e Dilma adotaram, de neodesenvolvimentismo, foi para outro estágio, anterior a essa crise que estamos enfrentando. Essa crise é tão profunda que nos obriga a refletir e propor um projeto de país que seja pós-capitalista. Esses mecanismos que estão aí, da lógica capitalista do mercado, não resolvem os problemas que estamos pela frente. Não resolve sequer o problema da saúde”.
Esse novo projeto e as mudanças necessárias, defendeu ainda Stédile, terão um longo tempo de transição. “Nós vamos resolver essa crise com uma eleição. Isso não se resolve em 2022, ainda que tenhamos que nos esforçar para que Lula recupere seus direitos. Mesmo que Lula ganhe as eleições em 2022, não está resolvida a crise. Precisamos nos preparar para um período longo de transição. Neste contexto, a tarefa principal da esquerda é organizar o povo, é fazer trabalho de base com o povo, é debater um projeto de país com a população. Neste trabalho de organização, a esquerda ainda está com a boca torta da época do capitalismo industrial. As formas clássicas de organização que tínhamos no capitalismo industrial, de movimentos (como é o MST), sindicatos, associações de bairro e partidos, embora ainda sejam importantes, são insuficientes para organizar aqueles 65 milhões que fizeram fila na Caixa.”
Para o dirigente do MST, no meio desse povo, as mulheres aparecem como um protagonista central e representam o segmento da classe trabalhadora mais agredido pela crise. Outros segmentos que têm um protagonismo central são a juventude da periferia e, em particular, os negros. “O Marighella já tinha cantado essa pedra. Ele disse que se houver uma revolução no Brasil ela será negra e mestiça”. As lideranças populares que temos hoje, que vêm do período anterior, tem uma responsabilidade, concluiu. “Elas precisam trabalhar com essa unidade de um projeto maior e não ficar se disputando eleitoralmente. Fomentando e organizando essa luta de massas certamente vão emergir novos lideres populares que hoje não conhecemos, como vimos acontecer agora com às duas greves dos entregadores de aplicativos”.