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Ana Corbisier: Perder Marighella foi como perder a garantia da continuidade da luta

"Hoje sabemos que a cada um que cai, seja ele um chefe e um dirigente como Marighella, ou não, aumentam as responsabilidades e se reforça nosso compromisso"
Ana Corbisier
Diálogos do Sul
São Paulo (SP)

Tradução:

Agora que Marighella está morto e que buscamos levar seu fuzil e sua bandeira tão alto como ele os levou sempre, sentimos o dever – caro e duro ao mesmo tempo – de pôr no papel algumas das marcas que ele deixou nessas terras tão sofridas do Brasil.

Estas notas referem-se aos meses de fevereiro, março e abril de 1969, quando Marighella, da clandestinidade, dirigia em São Paulo o que começava a ser a Ação de Libertação Nacional (ALN). Sua ideia de passar à ação direta contra a ditadura e o imperialismo pegara como rastilho de pólvora em todo o país e do Ceará a São Paulo, passando por Pernambuco, Bahia, Rio e Minas, existiam grupos que a punham em prática, em defesa desse povo explorado e tão abandonado.

Em São Paulo, Marighella vivia muito perto da sede da Polícia Federal. Para nós, militantes sem sua experiência de 30 anos de enfrentamento com o inimigo, aquilo preocupava.

Naqueles meses, em que era procurado como o “inimigo público nº 1”, Marighella não podia circular durante o dia. Uma noite em que o levávamos de volta a seu abrigo, uma perua grande da polícia começou a seguir-nos. Meu coração apertou ao ver em risco tão preciosa carga. Mas ele, muito tranquilo, nos disse: “Continuem, continuem…” Dobramos a primeira esquina, e a perua atrás, a segunda, igual, até que na terceira, seguiu reto.

"Hoje sabemos que a cada um que cai, seja ele um chefe e um dirigente como Marighella, ou não, aumentam as responsabilidades e se reforça nosso compromisso"

Reprodução
"Marighella tinha seus planos para nós e não queria que participássemos de ações diretas."

Naquela época sabíamos muito pouco sobre o socialismo. Lutávamos por uma ideia que nos parecia abstrata e distante. A literatura oriunda dos países libertados é proibida no Brasil e as poucas notícias que se publicam são distorcidas e mentirosas. Mas, para Marighella, que conhecia Cuba, o socialismo era algo concreto e próximo. Punha-se a sonhar alto, com o futuro Brasil socialista. E eu, poço de ignorância, lhe dizia: “Preto, não fale assim do futuro, que dá azar!“

Obrigado a estar encerrado o dia inteiro, Marighella ocupava metodicamente seu tempo. Fazia exercícios, inclusive levantamento de pesos, estudava e escrevia. Para nós, que levávamos uma vida “normal” ele se confundia com um dirigente e um herói. Esse respeito nos fazia imensamente receptivos a suas palavras.

Daqueles meses são a maioria de seus trabalhos sobre estratégia e tática da luta armada no Brasil. Escrevia a mão, com uma caligrafia regular e organizada, os textos que depois me passava para datilografar e eram por fim distribuídos aos militantes.

Fazíamos perguntas a ele sobre todos os assuntos. Um dia em que lhe perguntava pela terceira vez o que era estratégia e o que era tática, respondeu: “Olhe, para você, estratégia é o campo e tática é a cidade”.

Às vezes, abria o mapa do Brasil em uma mesinha baixa diante de nosso grupo e fazia planos. Sua fé, sua certeza da vitória, eram contagiosas. Acho, então, que daí vem a minha. No entanto, já então havia os céticos que não viam que não só de elementos objetivos é feita a realidade, mas também da firme decisão de transformá-la.

Em uma daquelas noites, Marighella se reunia com um intelectual simpatizante, Roland Corbisier, meu pai. Este se sentia visivelmente em um “encontro histórico”. Mas Marighella, muito tranquilo, o tratava de igual para igual, com o respeito que manifestava por todos aqueles que deixavam sua estabilidade de pequenos burgueses para somar-se à causa do povo. E quando meu pai lhe perguntou de quantos combatentes ele dispunha, ele disse, modesto: “uns 500…” Meu pai queria participar, mas Marighella disse-lhe que continuasse a fazer o que fazia tão bem: escrever, denunciar, defender Cuba. Anos depois me dei conta de que já se conheciam, pois juntos tinham fundado um Comitê de Solidariedade a Cuba.

Marighella tinha seus planos para nós e não queria que participássemos de ações diretas. Mas nós, sem ver a guerra prolongada, queríamos romper os vínculos que nos atavam à legalidade burguesa e à propriedade privada. Enquanto não o fizéssemos, nos parecia que não havíamos  dado totalmente o passo à frente. Mais tarde, quando começaram as derrotas, houve quem criticasse Marighella por não distribuir as forças pelas diferentes frentes de luta: legal e ilegal, de massas e de comando. Mas nós sabemos até que ponto escapávamos de suas mãos diante das possibilidades cada dia maiores de golpear a curto prazo o inimigo.

No entanto, quando me queixava a Marighella de minha falta de experiência política e de militância anterior, ele dizia: “Não, isso não é assim. Você não tem experiência, mas também não tem os vícios!” E dedicava noites e noites a educar-nos e a formar-nos nos princípios de uma organização que ele pretendia revolucionária, mas disciplinada, com autonomia tática, mas com unidade estratégica.

Em uma ocasião, um militante recente, que não conhecia o programa de luta de Marighella, mandou perguntar-lhe se convinha aproveitar a oportunidade que surgira para entrar em contato com um burguês progressista. Marighella mandou dizer ao novo militante que lhe parecia muito pouco provável que um burguês fosse lutar contra seus próprios interesses…

Outra vez, o mesmo militante mandou perguntar a Marighella se éramos contra qualquer capital estrangeiro, ou se devíamos concentrar forças contra o imperialismo norte-americano. Parecia-lhe que a luta já era demasiadamente desigual para que enfrentássemos o mundo inteiro ao mesmo tempo. Marighella lhe deu razão, dizendo que o imperialismo ianque era quem tinha as garras postas sobre o Brasil, uma profunda penetração política e ideológica, e poder militar para mantê-las. Isso ficou refletido no programa da ALN quando propõe:

“Expropriar as propriedades norte-americanas e as de todos os que colaboraram com os ianques”.

Em um dia de más comunicações, ao ir a um encontro para pegar Marighella, não o vi no lugar. Na esquina, uma discussão formada em torno de um carro. Sem conseguir certificar-me totalmente se o episódio tinha a ver com Marighella, comecei a procurar pelos arredores, até que dei com ele caminhando muito tranquilo, com seu passo de “urubu malandro”. Interpelei-o: “Preto, que imprudência, caminhando assim sozinho por aí!” E ele: “vocês não estavam e eu não podia ficar lá, com aquele rolo armado. Aliás, me empresta dinheiro, que não tenho nem para um taxi”. Nunca, como naquele momento, meu salário me pareceu tão útil e valioso.

Era um período difícil, tinha havido quedas importantes no Grupo Tático Armado (GTA) e o dinheiro escasseava. A inexperiência dos que sobravam e vários acidentes transformavam cada expropriação em um fracasso, até que Marighella perdeu a paciência: “Resolvam esse problema ou eu farei uma expropriação!”

Quanto não lhe pesaria, ele tão cheio de energia e de iniciativa tática, a necessidade de cuidar-se, de permanecer encerrado, de apenas dirigir!

Sua energia manifestava-se também nas indisciplinas. Uma vez puniu um faltoso, afastando-o de qualquer ação, durante um determinado período. Mas faltava gente, faltava dinheiro e o companheiro foi reincorporado.

Seis meses depois caía Marighella. Com ele me pareceu perder pai e mãe, meu ponto de referência e a garantia da continuidade da luta. Sentimos o povo mais sozinho. Hoje sabemos que a cada um que cai, seja ele um chefe e um dirigente como Marighella, ou não, aumentam nossas responsabilidades e se reforça nosso compromisso – com nossos caídos, com nosso povo e com os povos irmãos, que ele amou e que confiaram nele.


*Este texto foi escrito, em Cuba, originalmente em espanhol, no final de 1974, antes de minha volta clandestina ao Brasil. Frente à possibilidade de uma queda, não quis que se perdesse a memória desses momentos com Marighella.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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