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Alemanha é acusada de corrupção científica por suposto roubo de dinossauro brasileiro

Embora a Constituição declare que os fósseis são bens da União, não existe uma tipificação clara para o tráfico do material
Redação Sputnik Brasil
Sputnik Brasil
São Paulo (SP)

Tradução:

Geólogo que assinou documento para saída de fóssil disse à Sputnik Brasil que, se não houvesse apenas itens comuns no material apresentado pelos pesquisadores, não teria dado autorização.  

O fóssil, coletado na Bacia do Araripe, que fica entre os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí, saiu do Brasil em 1995. Apenas 25 anos depois, em dezembro de 2020, foi publicada na revista científica Cretaceous research a descrição da nova espécie, o Ubirajara jubatus. 

José Betimar Melo Filgueira, que na época chefiava o escritório regional do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) em Crato, no Ceará, contou com exclusividade à Sputnik Brasil que se lembra bem do dia em que assinou o documento com aval para a exportação do material.  


“Não obstante o longo tempo transcorrido, lembro-me dessa autorização. Eu dei essa autorização para eles levarem”, disse Betimar.  

A descrição do dinossauro, que teria o tamanho aproximado de uma galinha e vivido há 110 milhões de anos, gerou grande polêmica na comunidade científica brasileira. Diversos paleontólogos questionaram a legalidade da saída do fóssil do país e pediram seu retorno a uma instituição nacional.  

“O material que eles coletaram em campo naquela ocasião foi vistoriado por mim, e eu verifiquei e posso assegurar que não tinha nada que não fosse comum no nosso dia a dia. Só posso entender e atribuir que eles ou colocaram a peça do dinossauro posteriormente na caixa, uma vez que não havia lacre no escritório, ou essa peça pode ter ido parar na Alemanha bem depois da data citada [1995], e que estão usando a autorização numa tentativa de legalizá-la”, disse Betimar, que hoje está aposentado. 

“Pavão” pré-histórico: do tupi, Ubirajara remete a senhor da lança, uma referência às “fitas” do dorso do dinossauro. E a palavra jubatus, do latim, significa crina / ©BOB NICHOLLS / PALEOCREATIONS.COM 2020

Autorização do DNPM não é suficiente

Os autores do estudo são da Alemanha, Reino Unido e México. O Ubirajara jubatus está no acervo do Museu Estadual de História Natural de Karlsruhe, na Alemanha. Segundo os pesquisadores, o dinossauro tinha uma espécie de crina e varetas no dorso, o que dava a ele uma aparência exuberante, que os paleontólogos compararam ao moderno pavão.  

De acordo com um decreto-lei de 1942 e com a Constituição, fósseis são propriedade da União. Mais recentemente, um decreto de 1990 e uma portaria do Ministério da Ciência e Tecnologia detalharam várias regras para a pesquisa de estrangeiros no país, como a obrigatoriedade de parceria com instituição brasileira, e a saída de bens coletados em território nacional. Para a exportação de fósseis é preciso, além de uma autorização do DNPM, atual Agência Nacional de Mineração (ANM), do Ministério de Minas e Energia, aval do Ministério da Ciência e Tecnologia.  

“Diria que há centenas de fósseis brasileiros espalhados pelo mundo. No final da década 20, houve uma grande expedição alemã ao Rio Grande do Sul que levou toneladas de fósseis, tudo dentro da lei, porque na época não havia legislação. Muitas vezes as pessoas colocam que o fóssil foi coletado antes de 1942 e ficamos sem parâmetro legal para questionar. Na publicação do Ubirajara jubatus, no entanto, está dito que o material é de 1995”, disse o paleontólogo Max Langer, da Universidade de São Paulo, à Sputnik Brasil.  

Embora a Constituição declare que os fósseis são bens da União, não existe uma tipificação clara para o tráfico do material

Fernando Frazão/Agência Brasil
O fóssil, coletado na Bacia do Araripe, que fica entre os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí, saiu do Brasil em 1995.

Está em uma “sala segura” na Alemanha

Em entrevista por email para a Sputnik Brasil, um dos autores do estudo, David Martill, professor da Universidade de Portsmouth, no Reino Unido, disse que a saída do fóssil tinha sido legal e havia uma autorização dada pelo então DNPM. Ele afirmou ainda que, ao trabalhar com uma peça, não dá a “mínima” sobre a procedência dela, defendeu a legalização do comércio de fósseis e criticou a corrupção no Brasil, alegando que costumava ser extorquido por policiais rodoviários no Nordeste nos anos 1980 e 1990. 

O paleontólogo alemão Erbehard Frey, do Museu Estadual de História Natural Karlsruhe, por sua vez, divulgou para algumas publicações, como a revista Galileu, o documento, assinado em 1º de fevereiro de 1995, por José Betimar.

Em resposta a uma enciclopédia digital sobre o tema, a Prehistoric Wiki, Frey disse que o material encontrado no Brasil estava “mal preservado” e, por isso, foi difícil identificar estruturas importantes e o estudo demorou 25 anos. Ele afirmou ainda que o fóssil está bem protegido na Alemanha, em uma “sala segura e com alarmes” contra fogo, citou a “responsabilidade” de alguns países com seu “patrimônio” e se referiu ao incêndio no Museu Nacional, que destruiu milhares de itens do acervo da instituição.  


'Corrupção científica'

Fontes ouvidas pela Sputnik Brasil disseram que funcionários do DNPM e da Universidade Regional do Cariri (URCA) fariam uma espécie de “corrupção científica”. Em troca da facilitação para a saída de fósseis, assinariam publicações ao lado de pesquisadores estrangeiros e, por vezes, seriam homenageados com seus nomes em novas espécies.  

A Velocipede betimari, uma espécie de centopeia da ordem Scolopendrida, que tem entre os autores de sua descrição justamente o britânico David Martill, teria sido batizada em referência a Betimar.  

O ex-funcionário do DNPM, por sua vez, nega que, ao assinar o papel, tivesse conhecimento de que algo importante estava sendo levado do Araripe.

“Do jeito que está [a autorização] serve para qualquer material fóssil e a qualquer tempo. Eu não teria dado uma autorização tão genérica, se não houvesse só coisa comum. Isso pode ser armação deles”, afirmou o geólogo. 

O documento autoriza Erbehard Frey a “transportar duas caixas contendo amostras calcárias com fósseis, sem nenhum valor comercial, com o objetivo precípuo de proceder estudos paleontológicos” no museu de Karlsruhe. 

Improbidade administrativa

Posteriormente, o ex-funcionário do DNPM foi condenado por improbidade administrativa, em um esquema que envolveria a emissão ilegal de certificados de autenticidade de pedras preciosas, não destinadas à exportação. Segundo decisão que consta no site do STJ, não era competência do órgão produzir esse tipo de documento. 

Artur Andrade, outro ex-diretor do departamento do DNPM em Crato, que atualmente  despacha em Fortaleza devido ao fechamento de várias unidades regionais do órgão, disse à Sputnik Brasil que é normal esse tipo de homenagem, e que os pesquisadores brasileiros assinam diversos artigos ao lado de cientistas de outros países. 

Segundo Andrade, único porta-voz da atual Agência Nacional de Mineração (ANM) que se pronunciou sobre o caso, a saída do fóssil foi um “erro”, mas a autorização não foi expedida de “má fé”. Ele afirmou ainda que o sítio arqueológico da Bacia do Araripe recebe pesquisadores de todo o Brasil e do mundo e que alguns grupos buscam dificultar o acesso de colegas rivais. Embora pequena, a comunidade paleontológica brasileira, como todo setor profissional, tem suas disputas, alianças e trocas de acusações.  

Operação da PF

Em plena pandemia, no último dia 22 de outubro, a Polícia Federal realizou uma operação contra o contrabando de fósseis provenientes da Bacia do Araripe. Foram cumpridos 19 mandados de busca e apreensão, sendo 17 no Ceará e dois no Rio de Janeiro. Segundo investigação do Ministério Público Federal do Ceará (MPF), coordenada pelo procurador Rafael Ribeiro Rayol, trabalhadores de pedreiras de Nova Olinda e Santana do Cariri extraem os fósseis, que são repassados por atravessadores para pesquisadores do Brasil e estrangeiros. O esquema envolveria ainda empresários, servidores públicos e mineradores.  

Um dos alvos da investigação é o professor Ismar de Souza Carvalho, professor do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Igeo/Ufrj). Ele nega as acusações e diz que todo material do Araripe é documentado e tem autorização da ANM.  

O comércio e as transações irregulares de fósseis são um ponto sensível, e antigo, da comunidade paleontológica brasileira. Matérias de jornais dos anos 2000 narram a venda de peças a céu aberto em cidades da Bacia do Araripe e até na Praça da República, em São Paulo. Reportagem do Estado de S.Paulo, de 2006, que pode ser acessada no site do Senado, flagrou David Martill em busca de itens para comprar em Nova Olinda. 

Fontes do setor ressaltam que, em determinadas ocasiões, alguns cientistas obtém material de forma ilegal por “razões nobres”, para evitar a destruição dos fósseis em minas de calcário e para estudá-los no Brasil. Por outro lado, esse comportamento também facilitaria a saída de itens do país. 

“Não sabia que precisava de outras coisas”

De acordo com o paleontólogo Max Langer, um fóssil pode até ser retirado do Brasil, mas precisa de várias autorizações e retornar após estudo no exterior. Além disso, o material levado para a Alemanha em 1995 se tornou um holótipo, (exemplares únicos que servem de referência para outras pesquisas) – que segundo a lei devem permanecer no país.  

“A não ser que eles tenham uma autorização do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, vinculado ao Ministério da Ciência Tecnologia e Inovações], esse fóssil saiu ilegal. Acho até possível que o Frey [pesquisador alemão] tenha saído com esse fóssil achando que estava certo, ele tinha o papel do DNPM e provavelmente não sabia que precisava de outras coisas. Isso é diferente de dizer que ele não sabia que estava fazendo alguma coisa incorreta, embora isso seja subjetivo. Qualquer paleontólogo sabe que levar fóssil de um país para o outro não é algo que deva ser feito”, afirmou Langer.  

'Qualquer aluno de graduação'

Álamo Feitosa, do Laboratório de Paleontologia da Universidade Regional do Cariri (Urca), considera o papel assinado pelo funcionário do antigo DNPM genérico demais. 

“A saída foi irregular, a autorização do CNPq também seria necessária. Além disso, o documento fala apenas em duas caixas com prováveis fósseis. Sem nenhum tipo de especificação, como número de peças, tamanho e outras informações. Houve um erro de conduta profissional. Qualquer aluno de graduação sabe identificar quando vê um fóssil de dinossauro”, afirmou o especialista à Sputnik Brasil. 

Repatriação do Ubirajara

Álamo denuncia a existência de uma rede internacional de tráfico de fósseis. Nos últimos anos, o Ministério Público de Juazeiro do Norte (CE) tem conduzido processos de repatriação de dezenas de itens, que se encontravam em coleções particulares de países como França e Alemanha. Muitos deles, anunciados em sites de vendas.

Embora a Constituição declare que os fósseis são bens da União, não existe uma tipificação clara para o tráfico do material. As penas, de um a três anos, são por crimes contra o patrimônio. “A lei é branda demais”, critica Álamo. Um projeto para tornar o crime mais claro e aumentar sua punição, proposto inicialmente pelo ex-senador Lúcio Alcântara, e depois reapresentado pelo ex-senador Pedro Simon, fossiliza há mais de 20 anos no Congresso, sem avançar. 

O paleontólogo da Universidade Regional do Cariri defende a volta do Ubirajara jubatus para o Brasil. 

“Os fósseis são um patrimônio cultural, que contam a história da região, ajudam a desenvolver a pesquisa nacional e geram dividendos. O Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, em Santana do Cariri, uma cidade de oito mil habitantes, recebeu mais de 30 mil visitantes em 2019”, disse o professor.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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