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“Estado laico”? Vínculos do poder com a religião no Brasil vêm desde a época colonial

A Constituição cidadã de 1988 é a prova documental da confusão: defende a laicidade, mas foi aprovada “sob a proteção de Deus”
Eduardo Nunes
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

No dia 08 de julho de 2015, o então deputado federal Marco Feliciano, expulso do Podemos pela sua fidelidade ao Presidente em exercício, lançou em suas redes um vídeo convocando os religiosos do Brasil a se unirem a ele na luta contra os desrespeitos com a fé cristã. 

Ele se referia à parada LGBTQI, que ocorreu naquela semana e, em especial, à ativista Viviany Beleboni, que fazia uma performance crucificada. No vídeo, Feliciano cunhou o termo que aglutinaria a bancada evangélica a partir de então: cristofobia.

O debate sobre a intolerância religiosa e a interferência institucional das igrejas no Estado tornou-se acalorado desde então. Os argumentos, em geral, são focados nas personalidades públicas contemporâneas e nas denominações religiosas que possuem grandes estruturas para realizarem os seus proselitismos, como representantes nos altos escalões no governo e canais de TV. Sendo assim, é importante para entender esse debate ser radical (seguindo a etimologia da palavra) e voltar à raiz da confluência entre a religião e os governos que já dominaram o território brasileiro.

Companhia de Jesus

Comecemos por um grupo de estudantes da Universidade de Paris, fervorosos religiosos, que formaram, em 1540, a Companhia de Jesus. Marcado pelo contexto de reação às reformulações da Reforma Protestante, o grupo visava reestabelecer a hegemonia da Igreja Católica Apostólica Romana. Pela mesma razão, cinco anos depois, teria início o concílio de Trento que, convocado pelo Papa Paulo III, buscava colocar um ponto final em alguns questionamentos sobre as práticas da Igreja.

O principal líder da Companhia de Jesus foi Inácio de Loyola (1491- 1556) que, em menos de cem anos após a sua morte, já seria cultuado como santo pelos católicos. 

Militar convertido aos 30 anos, enquanto se recuperava de ferimentos de guerra, nunca abandonou sua verve combativa, mas sim, transmutou-a em uma guerra santa. Assim, os jesuítas nasciam como “soldados de cristo” e se ajustariam perfeitamente nos planos reacionários e agressivos da Igreja, que lutavam contra as heresias.

Estas batalhas eram travadas, sobretudo, na educação. O principal lema da ordem era “lutar por Deus sob o estandarte da Cruz”. Os povos que não se ajoelhavam diante de uma cruz precisavam ser educados de acordo com os costumes e dogmas cristãos. Como consequência da adoção dos códigos culturais europeus, a lógica de produção e trabalho era facilitada.

A companhia reportava-se diretamente ao Papa e os seus membros não poderiam se recusar a servir, independente da região do globo para a qual fossem designados. Assim, em diferentes continentes foram estabelecidas sedes da ordem, inclusive no Brasil. E então, em 1549, chega em terras brasileiras os primeiros jesuítas, sob a tutela de Manoel da Nóbrega.

A Constituição cidadã de 1988 é a prova documental da confusão: defende a laicidade, mas foi aprovada  “sob a proteção de Deus”

Palácio do Planalto
Encontro de Jair Bolsonaro com Pastor Silas Malafaia, Presidente do Conselho Interdenominacional de Ministros Evangélicos do Brasil.

Língua e cultura

O catolicismo era traduzido para as culturas locais, assim como ocorriam as primeiras tentativas de tradução de linguagens Tupi. Os sacerdotes contavam com a ajuda de conterrâneos que moravam com as populações locais para elaborar o trabalho de adaptação. Alguns desertores, outros que naufragavam e não podiam retornar para a Europa. 

O tronco linguístico Tupi era predominante entre as populações que habitavam o litoral do continente americano, fato que levou os portugueses à ideia equivocada de que era uma única linguagem. 

Assim, em 1555, José de Anchieta elaborou a primeira tentativa de codificação gramatical Tupi.

Em um primeiro momento, os jesuítas iam às aldeias e, muitas vezes, não retornavam com vida. Como tentativa de superar este obstáculo, em 1558 foi criado o primeiro aldeamento da Companhia de Jesus, em uma tentativa de tratar com os povos locais em uma localidade administrada pelo clero. A estratégia foi bem-sucedida e essa forma de aldeamento colonial se expandiu. 

O contato religioso proporcionava alguns sincretismos, como o deus cristão ser associado a Tupã, o deus do trovão indígena. A principal camada social visada pelos religiosos eram as crianças. Com uma maior tendência a se converter e uma maior vulnerabilidade, as crianças eram ensinadas a partir de meios lúdicos e pedagógicos, como o teatro e o coral.

Escravização

A ordem era contrária aos interesses escravagistas dos colonos, que tentavam obter mão-de-obra gratuita para as lavouras. Conseguindo, inclusive, a criação de algumas leis que proibiam o cativeiro dos povos locais. No entanto, as chamadas “guerras justas” eram exceções, assim, os povos indígenas que revidavam aos ataques europeus ou resistiam à catequização, eram “legitimamente” transformados em escravos.

Como resistência, agrupamentos indígenas se juntaram durante o século 16 nas chamadas “santidades”. O núcleo de resistência notadamente religiosa agrupava várias etnias indígenas. A Santidade de Jaguaripe foi a principal manifestação de rebeldia indígena neste século.

Apesar de conhecidos pelos “sermões” dirigidos aos colonizadores contra a escravidão indígena, os jesuítas não eram contra a escravidão dos povos africanos. Com a condição, irônica, de que fossem bem tratados e educados pelos preceitos cristãos. Assim, os jesuítas expandiram seu poder e domínio ao longo dos anos. No século, XVII já possuíam aldeamentos espalhados pelo território brasileiro, do Sul até a Amazônia. E, no século seguinte, já era considerada como uma das instituições mais ricas da colonização portuguesa.

As instituições da Igreja e do Estado eram intrinsecamente ligadas. Em uma época em que ainda não se falava em laicidade, os súditos eram obrigados a compartilhar da religião oficial do governo Português. As funções destas instituições eram complementares. Por um lado, o sistema de governo tornava possível a administração, a soberania, o povoamento e a resolução de alguns problemas básicos, como a falta de mão-de-obra e de estrutura para a produção. Por outro, a doutrina cristã cumpria seu papel pedagógico de difusão de obediência às leis divinas e terrenas.

Sistema cultural

O cristianismo firma-se, assim, como o principal sistema simbólico cultural no Brasil colonial. Os sacramentos católicos estavam presentes desde o nascimento até o momento da morte. 

O clero cedia à Coroa portuguesa a exclusividade do recolhimento dos dízimos dos fiéis, desde que o Estado português garantisse a presença da Igreja em todas as terras sob o seu domínio. Este acordo foi conhecido como o padroado real.

Entretanto, um fato que não deve ser passado despercebido, se quisermos ter o mínimo de honestidade intelectual, é a presença de padres em todos os movimentos de rebelião a partir de 1789, com a Inconfidência Mineira e se estendendo ao longo do século seguinte. Nota-se, assim, uma multiplicidade de práticas, mesmo dentro de uma mesma instituição.

Todos os herdeiros do trono eram necessariamente católicos. Mas, havia suspeitas de que, em segredo, praticassem a religião judaica. A monarquia portuguesa decidiu esta hegemonia católica em 1497. Os chamados cristãos novos eram perseguidos, em especial pelo Tribunal da Santa Inquisição. Apesar disso, a Inquisição nunca se assentou de forma permanente no território brasileiro, com passagens pontuais, como: no Estado do Grão-Pará (1763- 1769), Bahia (1591) e Pernambuco (1618).

Notamos que a religião integra as instituições governamentais brasileiras desde o violento período colonial. A constituição cidadã de 1988 é a prova documental da confusão entre Estado e religião: nos artigos 5º e 19º assegura a liberdade religiosa e veda os vínculos institucionais confessionais da União, estados e municípios; em contrapartida, no seu preâmbulo pode-se ler que a Carta constitucional foi promulgada “sob a proteção de Deus”. 

Segue, assim, a eterna disputa entre o discurso religioso dominante e a resistência das camadas progressistas da sociedade.

* Eduardo Nunes, acadêmico de História, na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). 




As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Eduardo Nunes

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