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Em 20 dias, o controle virou tragédia: Como entender o lockdown de Araraquara?

A Covid-19 parecia sob controle, mas todos os recordes da pandemia foram quebrados em fevereiro; em 20 dias, o controle virou tragédia
Raphael Pena
Socialista Morena
São Paulo (SP)

Tradução:

Neste domingo, 21 de fevereiro, o prefeito de Araraquara, Edinho Silva (PT), decretou lockdown após o sistema de saúde público e privado da cidade atingir 100% de ocupação de leitos. Filas foram registradas em todos os supermercados da cidade nos dias que antecederam as 60 horas de restrições rígidas. Mas, no início do mês, a realidade era outra. Ninguém esperava o que estava por vir.

Examinei os dados do boletim diário da prefeitura para tentar responder como Araraquara chegou a isso.

A notícia do dia 1º de fevereiro de 2021 nas redes sociais da prefeitura de Araraquara, logo cedo, era a definição da data de 1º de março para retorno das aulas presenciais na rede municipal de educação. Os números já subiam, mas ainda discretamente, se comparado ao que vemos hoje. A cidade tentava se preparar para a retomada das atividades, apesar da pandemia. Mais tarde, ainda no dia 1º, eram registradas 5 mortes por Covid-19 naquelas 24 horas, recorde desde o início da pandemia, totalizando até ali 121 óbitos.

Neste mesmo dia, a ocupação de leitos na cidade, somando-se serviços públicos e privados era de 56% em enfermarias (55 pacientes) e de 57% em UTIs (32 pacientes). Números próximos a isto haviam sido registrados nos picos da pandemia em 2020.

Uma semana antes, a região de Araraquara tinha sido incluída na fase vermelha do Plano São Paulo, com mais restrições, por causa da crescente média de casos novos diários registrada na cidade nas últimas semanas. De 15 a 31 de janeiro, esta média foi de 66 para 76 e atingia nível recorde na cidade.

Até então, Araraquara era elogiada pela gestão da pandemia, mantendo a menor letalidade do vírus entre as cidades com mais de 100 mil habitantes no estado de São Paulo e realizando muitos testes, inclusive de assintomáticos (ainda que timidamente). Entretanto, o que ocorreria nos próximos dias obrigaria o prefeito Edinho Silva (PT) a rever não só a volta às aulas, mas também a endurecer concretamente as restrições como poucas cidades do país haviam feito.

Em março de 2020, Araraquara fechou escolas e decretou estado de calamidade pública. O controle foi rigoroso, mas logo vieram as flexibilizações e, aos poucos, os setores foram voltando à atividade, ainda que com restrições.

Com mais pessoas circulando, as contaminações consequentemente aumentaram e atingiram dois picos em 2020, em agosto e outubro, quando a média de casos novos diários chegou a 50, com uma morte a cada dois dias. Nestes meses, a ocupação de leitos não passava de 65%. Tudo “sob controle”, na visão da administração municipal. Não faltava leito.

Em novembro, já se passavam oito meses de pandemia, os números voltaram a cair e a pressão de setores econômicos era enorme para que o prefeito flexibilizasse cada vez mais as poucas restrições que ainda vigiam. E as decisões do governo local, pelo que podemos analisar, foram tomadas com base na capacidade de atendimento do sistema de saúde. Em outras palavras, ampliava as flexibilizações enquanto a ocupação dos leitos estivesse teoricamente baixa.

O tempo mostrou que essa foi uma estratégia errada. Os primeiros 20 dias de fevereiro seriam trágicos. No dia 1º, recorde de mortes. No dia 2, recorde de casos novos registrados em 24 horas – 204, um recorde assustador (o anterior era de 113, no dia 8 de dezembro). No dia seguinte, outro susto nos números: em dois dias, a ocupação de leitos salta de 56% para 79%. Na UTI, o salto foi de 57% para 64%.

Dia 4 de fevereiro, a cidade registra o segundo dia da pandemia com cinco mortes em 24 horas. Os dois foram em fevereiro. Com isso, são dez mortos por Covid-19 em 4 dias em fevereiro. Lembrando que em todo o período de pandemia em 2020, a cidade registrou 92 óbitos pela doença. Fevereiro, no dia 4, já era o pior mês da pandemia. E era só o começo.

A taxa de ocupação de leitos sobe de maneira inédita e no dia 5 já não há leitos de enfermaria disponíveis na cidade, 100% ocupados. Na UTI, a taxa ainda é de 64%, mas não por muito tempo. Pacientes começam a ser transferidos para outras cidades e outras regiões do estado. A prefeitura endurece as restrições, proíbe cultos, missas, festas e atendimento presencial no comércio e bares e restaurantes, entre outros serviços. Mas a população reclama e não adere, mantendo índice de isolamento perto de 35%.

Dia 8 de fevereiro, a média de casos novos na cidade já era de 104, contra 76 do dia 1 (aumento de 35% em uma semana). A ocupação de leitos de UTI chega a 90% e as enfermarias estão lotadas há quatro dias. Neste dia, podia-se ler nas redes sociais da prefeitura que a cidade estava “preparada para enfrentar o pior momento da pandemia até agora”. Mas, não estava.

Dia 9, outro recorde de casos novos: 243. A taxa de ocupação da UTI chega a 94%. Há oito dias era de 57%. Com tantos casos novos, a cidade bateu outro recorde preocupante na pandemia, 583 pessoas em quarentena (pessoas diagnosticadas com a doença, mas sem necessidade de internação). Dia 1 de fevereiro, este número era de 248 pessoas e o pico tinha sido 363 em agosto de 2020.

Não para de morrer gente. Foram mais cinco óbitos em 24 horas, no dia 10, totalizando 18 mortes em dez dias. A cidade tem aproximadamente 230 mil habitantes. As redes sociais começam a refletir o aumento de óbitos, com mais e mais gente de luto por um amigo ou familiar. A tensão dos profissionais nas unidades de saúde atinge limites nunca antes imaginados. Muitos deles já se infectaram e enterraram amigos e parentes vítimas da doença e a maioria está exausta, trabalhando sob pressão há um ano.

Só não temos pacientes na porta dos hospitais, porque todo dia a prefeitura abre novos leitos de enfermaria emergencialmente, mas eles são logo ocupados. Dia 12 foram instalados mais 21 leitos, mas 15 deles já estavam ocupados no fim do mesmo dia e no dia seguinte já não havia mais vaga.

No dia 12, novo recorde de mortes em 24 horas, 6, totalizando até então 25 óbitos por covid-19 só neste mês. Outros recordes do dia 12: 713 pessoas em quarentena, 184 internadas (sendo 53 em UTI), as enfermarias seguiam lotadas e a ocupação dos leitos de UTI atingia 96%. A prefeitura endurece as restrições, suspende as aulas presenciais do ensino infantil e fundamental, fecha o comércio em geral e proíbe, então, a circulação que não seja para utilização dos serviços essenciais. Mesmo assim, o índice de isolamento fica em 41% no dia seguinte.

A Covid-19 parecia sob controle, mas todos os recordes da pandemia foram quebrados em fevereiro; em 20 dias, o controle virou tragédia

Prefeitura Araraquara
Rua principal vazia em Araraquara.

O comportamento dos números em fevereiro já indicava com solidez que havia algo diferente no avanço da doença. De 1º a 12 de fevereiro, tinham sido registrados 1403 casos novos da doença. Mais que o dobro em comparação aos 12 dias anteriores, em que constam 625 casos novos. Também nos primeiros 12 dias de fevereiro, o número de internados foi de 87 para 184 e a taxa de ocupação de 56% para 100%.

Chamou a atenção também o aumento da letalidade do vírus, do percentual de pessoas contaminadas que vai morrer em decorrência da doença. Em dezembro, pior mês da pandemia até então, o vírus matou, em Araraquara, 1,18% dos pacientes. Em fevereiro, até o dia 12, este índice foi para 1,78%. Pode parecer pouco, mas esta diferença representa 50% de aumento na letalidade, isso em comparação com o mês mais duro registrado anteriormente. Em julho, a letalidade chegou ao seu nível mais baixo, 0,75%, motivando elogios na imprensa nacional e internacional ao prefeito Edinho Silva.

Mas, é no dia 13 que Araraquara ganha destaque em todo o país: o prefeito confirma a circulação, em Araraquara, da nova cepa do coronavírus, a de Manaus, e um novo decreto municipal endurece ainda mais as restrições. Já dão o nome de lockdown, mas empresas podem trabalhar de portas fechadas, somente expediente interno. Não faltaram críticas pelo fato de o decreto ter como consequência a aglomeração de trabalhadores no transporte público para irem trabalhar no “lockdown”.

Neste mesmo dia, ocorre um fato que explica boa parte da dificuldade que a cidade tem de controlar a Covid-19: um homem filma a entrada da UPA e do Hospital de Campanha e depois publica dizendo que estava vazio, que aquilo provava que a doença é uma farsa e destila todos aqueles argumentos negacionistas obtendo muitas curtidas nas redes sociais. Sim, até hoje, muita gente em Araraquara também duvida da doença.

O colapso total ocorre dia 15, quando a cidade atinge 100% de ocupação de leitos, tanto de enfermaria, quanto de UTI, com 191 pacientes internados, sendo 58 em UTI, e pelo menos seis pacientes graves esperando leitos. Aqui, confesso que bateu o desespero neste que vos escreve: não tem mais leito! A tensão tomou conta da cidade inteira.

No dia seguinte, o secretário estadual de Saúde, Jean Gorinchteyn, e o secretário estadual de Desenvolvimento Regional, Marco Vinholi, visitam a cidade e anunciam investimento de R$ 1,5 milhão com a abertura de 70 leitos, sendo 30 de UTI. O problema é que não se abre leito de UTI de uma hora para outra, é necessário ter equipes especializadas para trabalhar nesses leitos, é necessário ter oxigênio e outros suprimentos para oferecer aos pacientes destes leitos, e nada disso é possível ser feito do dia para a noite, nas palavras do prefeito Edinho.

A cidade segue sem leitos no dia 16 e pacientes são internados em cidades distantes mais de 300km.

Os boletins diários da prefeitura são um filme de terror. No dia 16, Araraquara já acumula 37 mortos por covid-19 só no mês de fevereiro. Antes, o mês com mais mortes tinha sido janeiro, com 24 óbitos. Dia 16 também registra novo recorde de pessoas internadas: 212, 63 na UTI. Leitos são abertos emergencialmente, mas a situação é caótica. Já são 973 pessoas em quarentena, aumento de 300% em relação ao dia 1º.

No dia 18, representantes da OMS e do Instituto Butantan visitam Araraquara para trazer sugestões técnicas para o enfrentamento da covid-19 na cidade. Já faz nove dias que morre gente de covid-19 todo dia na cidade. O recorde anterior era de quatro dias seguidos. Já morreram 46 pessoas em fevereiro e a cidade está em colapso há 4 dias sem leitos. Faltam leitos inclusive para outras doenças. Pacientes sem Covid-19 também precisam ser transferidos para longe, outros, com covid, aguardam por leitos, intubados, nas UPAS. É desesperador.

Sexta-feira, 19, mais cinco óbitos nas últimas 24 horas, novo recorde de pessoas internadas, 227 e 1250 em quarentena. “O sistema de saúde não vai aguentar tamanha pressão. Em poucos dias, poderemos ter que escolher quem vai viver e deixar os demais morrerem sem ar nas portas dos hospitais, se nada for feito”, diz o prefeito. No fim da tarde, Edinho Silva faz uma live nas redes sociais e anuncia: lockdown total, com funcionamento apenas de farmácias e unidades de saúde de urgência e emergência, a partir das 12h de domingo, 21, prolongadas nesta terça-feira até as 6h da manhã de sábado, 27.

Resultado, filas enormes nos mercados e postos de gasolina registradas em todos os bairros da cidade na noite de sexta-feira e manhã de sábado.

Nesta segunda-feira, dia 22, a cidade registrou apenas 49% de isolamento. Além disso, houve mais um recorde de pessoas internadas, 231, e com seis óbitos nas últimas 24 horas, totalizando 61 óbitos em 21 dias. Outras 400 pessoas esperam resultado de exames para saberem se estão com a doença.

Até agora, foram 3137 casos novos em fevereiro, recorde. Em 2020, o recorde foi de 1675 casos. Abrimos o mês com média de 76 novos casos diários, hoje, esta média está em 189. A letalidade, que ficou em 0,90% em dezembro, está em 1,94% em fevereiro e subindo.

Todos os recordes da pandemia foram quebrados em fevereiro. Os dados de oito prefeituras da região de Araraquara apontam no mesmo sentido. Três delas também decretaram lockdown.

Isso precisa funcionar. Ou realmente haverá o tsunami previsto pelo ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. É o que mostram os dados.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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