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Bactérias e vírus já causaram estragos maiores à humanidade que as mais terríveis guerras

Enquanto a tragédia em que vivemos se expande, muitos ainda não conseguem identificar em Bolsonaro o maior dos mensageiros da morte
Carlos Russo Jr
Espaço Literário Marcel Proust
São Paulo (SP)

Tradução:

Bactérias e vírus já causaram estragos maiores à humanidade que as mais terríveis guerras. O vibrião colérico, que produz o cólera, conhecido desde a Antiguidade, provocou uma primeira epidemia global em 1817, que se estendeu até os anos 1840. 

Duas obras primas da literatura mundial se inspiraram na pandemia do cólera, uma delas dirigida aos jovens e adolescentes. A outra, escrita meio século após, frente a novo surto, a um público amante da leitura e do pensar. 

Ambas dedicaram-se a certo tipo de mensageiros, aos “Mensageiros da Morte”.

“Mensageiros da Morte” é um conto de fadas da coletânea “Contos dos Irmãos Grimm”, publicada em 1840. Nele, a Morte, pequenina, minúscula, vem buscar um Gigante, mas é por ele dominada e espancada quase até morrer. Um Homem jovem que passa pela estrada se depara com a pequena Morte estirada ao chão e a socorre. Para mostrar sua gratidão, a Morte promete-lhe que, apesar de não poder poupá-lo num futuro, não virá buscá-lo sem aviso prévio, e se compromete enviar-lhe seus mensageiros: os Mensageiros da Morte. 

Muitos anos mais tarde o homem, num belo dia, é pego de surpresa pela Morte que o arrebata. Então, ele se revolta e a acusa de ingratidão e de descumprimento do pactuado. A Morte lhe explica que havia, sim, enviado seus Mensageiros, acontece que ele, desatento, não os reconhecera. 

Por acaso não se lembrava da diarreia e das doenças que o haviam acometido, dos sinais de envelhecimento que lhe haviam suprimido a força, e, por que não, de seus sonhos que haviam se desvanecido no tempo? 

Sem resposta, o Homem torna-se consciente de que a Morte cumprira com sua parte e permite que ela o leve consigo.


 “Morte em Veneza”, uma Novela no estrito sentido da concepção alemã do Novo (novel), daquilo que é inusitado, foi escrita por Thomas Mann em 1912. 

E nada seria, no alvorece do século XX, tão inusitado quanto Veneza, a capital da alegria, do carnaval europeu (tal qual o Rio de Janeiro dos bons tempos) das bodas elegantes, o epicentro da moda internacional, que justamente nela ocorressem mortes, milhares de mortes motivadas pela Peste, pelo cólera, que a alguns anos deixara em paz os países europeus, distribuindo-se pelos países da então “da periferia do mundo”, principalmente pela América Latina. 


Era o verão europeu. A cidade vivia assolada pela peste. No entanto, os sinais de uma epidemia de cólera eram ocultos pelas autoridades para não prejudicarem a economia, no caso, o turismo! 

Nos dias de Covid 19, as autoridades brasileiras reproduzem a situação ficcional criada pela literatura mais que centenária! Nada aprenderam com o fato de que a Peste EXIGE o afastamento social. De qualquer forma, as atividades econômicas serão afetadas. Muito pior, sem o afastamento! E tal sucedeu também na literatura, na Veneza de Thomas Mann.

O texto complexo tem um enredo enxuto: um escritor renomado, numa crise de criatividade aí por volta dos cinquenta anos, viaja de Munique a Veneza, onde se apaixona platonicamente por um jovem púbere, extremamente belo. Von Aschenbach, o escritor, que em alemão significa barril de cinzas, tem muito dos cuidados e dos critérios artísticos do próprio Thomas Mann. 

Durante um passeio em Munique, o personagem- autor para diante de um cemitério onde avista outro personagem: “um viajante”, cuja face lembra uma caveira, um tipo muito estranho que deixa nosso Aschenbach abalado. Pois no portal do cemitério e no estanho viajante, temos a primeira manifestação do “leitmotif” da novela, do motivo condutor de toda a obra. E em “Morte em Veneza” o “leitmotif” serão os “Mensageiros da Morte”.

O abalo da visão é tão grande que tira do escritor qualquer inspiração artística; decide romper com a rotina e partir em férias para Veneza. Na realidade, é algo indefinível que faz Aschenbach prosseguir até Veneza. 

Enquanto a tragédia em que vivemos se expande, muitos ainda não conseguem identificar em Bolsonaro o maior dos mensageiros da morte

ONU
Em nosso país, à atitude genocida do Governo Central alia-se uma irresponsabilidade da população.

Veneza é bela na superfície, brilhante e ensolarada, apolínea; no entanto, está apodrecida na parte submersa e sua brisa marítima, o siroco, cheira mal, cheira a mofo! E o siroco é um segundo Mensageiro da Morte, que o escritor, entretanto, não chega a reconhecer. 

A este se sucedem outros mensageiros, tal como a figura de um velho passageiro que viaja no mesmo navio que transportou Aschenbach a Veneza. O velho, enturmado com colegiais, ridiculariza-se para parecer jovem, no caminho de uma morte que não se assume.

Ao desembarcar no porto, o gondoleiro que o viajor contrata chega a se negar a leva-lo onde Aschenbach deseja. O gondoleiro conduz uma gôndola toda negra qual um esquife, tal qual o barqueiro do Hades, o famoso Caronte mitológico. Em determinado momento do trajeto, o gondoleiro diz ao escritor que ameaça não pagar pela viagem: “Mas tu pagarás, pagarás!”

Após hospedar-se, Aschenbach sai a caminhar pela Piazza de São Marcos. Surgem músicos loiros para alegrarem o ambiente. Mas eles possuem os dentes cariados, sua música é decadente, e o seu cheiro de seus corpos prenuncia um leve odor adocicado que remete aos aspirados em velórios.

Num bar perto do Grande Canal, servem a Aschenbach suco de romã, romã a fruta misteriosa que impede Cora, filha de Demeter, de se libertar do reino dos mortos e nele permanecer três meses ao ano, como Perséfone. Todos os outros, que da romã experimentam nos reinos subterrâneos, não desfrutam da sorte da filha de Demeter.

Finalmente, o escritor se serve a fartar de morangos vermelhos, contaminados pelos vibriões do cólera. E da Peste ele sucumbirá!

Mann traceja os artistas como figuras adoentadas, sempre morenas, com olhos castanhos, em interface com a morte e a vida. Já os loiros de olhos azuis são personagens imaturas, mas felizes, pois são superficiais, adoram joguinhos e revistas em quadrinhos!

O personagem-escritor apolíneo tem também uma visão de pântanos, prenúncio de ventos quentes, “um deus que vem de longe”, bafejos orientais, mensagens que dionisíacas. A partir de então, na alma de Auschenbach, lutarão Apolo- a razão, a verdade, a ordem, os sonhos, e Dionísio (Baco)- a desmedida, a loucura, o prazer e a orgia.

Vivemos numa tragédia mundial provocada por um vírus. Em nosso País, à atitude genocida do Governo Central alia-se uma irresponsabilidade da população, que assim como a carência de vacinas fazem com que esta tragédia se expanda até limites que nem a própria ciência consegue antever.
De certa forma, perante o Mensageiro da Morte do século XXI, reproduzimos o mesmo comportamento: dentro de nós ouvimos o chamado apolíneo da ciência, da responsabilidade social, do recolhimento, e, por outro lado, a loucura dos prazeres, da folia, da desmedida dionisíaca. E muitos ainda não conseguem identificar em Bolsonaro o maior dos Mensageiros!

No diálogo platônico entre Sócrates e Fédon, a beleza é buscada para ser contemplada em seu estado mais puro. “Pois a beleza, meu Fédon, é a única forma do espiritual que podemos receber sensualmente, suportar sensualmente”. 

Mann trás para seu romance, juntamente com cenas mitológicas, esse diálogo filosófico. Desse modo, a homossexualidade evidenciada em “Morte em Veneza” é uma questão secundária, embora presente na análise da obra. O amor de Aschenbach por Tadzio é antes de tudo um tributo à beleza e desenvolve-se no âmbito da idealização. O jovem é uma personificação do belo, reflexo temporal da beleza eterna, de um ideal sempre perseguido, de tal modo que se torna irresistível em sua encarnação.

Em seu hotel veneziano no Lido, encontra o adolescente de uma família polonesa: o jovem Tadzio. O tempo quente e úmido afeta a saúde de Aschenbach; ele ainda tenta partir, deixar Veneza que transcende a morte, mas não consegue. Embora observe Tadzio obsessivamente, jamais ousa falar com ele, no máximo trocam um ou outro olhar furtivo e fugaz. Mesmo assim, como possuído pela loucura dionisíaca, ele perseguirá Tadzio por todos os cantos da cidade.

Tal qual o Gigante Humano dos Irmãos Grimm, o personagem de Mann se recusa a reconhecer os Mensageiros da Morte, presentes por todos os lados.


Diferentemente das autoridades, um agente de viagens britânico confessa o surto de peste ao escritor, que já causara uma fuga indiscriminada dos turistas e afundara a economia de Veneza! Mesmo assim Aschenbach permanece, sacrificando sua dignidade e bem-estar pela experiência imediata da beleza corporificada. 

E com o tempo e com a penetração do “deus máscara” no subconsciente do escritor, a paixão vai assumindo uma feição mais sensual, erótica, como fica claro na tentativa de Aschenbach de parecer mais jovem pelo tratamento cosmético, assim como em seu sonho perturbador ao final do romance. É nele que o escritor apolíneo incorpora o deus mascarado (Dionísio), do mesmo modo como o velho passageiro do navio o fizera no princípio da narrativa. 

“Com as batidas dos timbales seu coração retumbava, seu cérebro girava, acometido de raiva, de desvario, de atordoante voluptuosidade, e sua alma desejou unir-se à dança de roda do deus. O enorme símbolo obsceno, de madeira, foi descoberto e elevado.” Um sonho dionisíaco, orgiástico!

Aschenbach descobre, ao final, que a família polonesa planeja, como todas, partir. Desce até a praia, onde está Tadzio com um menino mais velho, Jasiu. Os dois garotos lutam, e Tadzio é facilmente vencido, pois a beleza sucumbe aos seres inferiores. Com raiva, o jovem polonês deixa seu companheiro e se dirige à parte do mar próxima de Aschenbach. Após estar por um momento contemplando o mar, dá meia volta para olhar seu admirador. 

Para Aschenbach é como se o menino estivesse acenando para ele. Mas Tadzio aponta o caminho para o mar, para a morte e o renascer e tal qual o deus Hermes, o jovem dispõe-se a ser o condutor de sua alma.

“Mas parecia-lhe que o pálido e adorável psicagogo lhe sorria lá longe, lhe acenava; que, soltando a mão do quadril, apontava para longe e, tomando a dianteira, lançava-se flutuando na imensidão plena de promessas. E, como tantas outras vezes, levantou-se para segui-lo”.

Aschenback tenta, então, se levantar e retribuir, mas tomba em sua cadeira. 

Seu corpo morto é descoberto minutos depois. “E ainda no mesmo dia, um mundo respeitosamente comovido recebeu a notícia de sua morte.”

“Morrer, isto significa realmente perder de vista o tempo, viajar para além dele, trocá-lo pela eternidade e pelo presente e, em consequência, pela vida. Pois a essência da vida é o presente e só num sentido mítico seu mistério aparece nas formas temporais do passado e do futuro” (“A Montanha Mágica”).


Em 1971, uma genial produção de Luchino Visconte, tendo como protagonista Dick Boguarte, levou às telas “Morte em Veneza”. O “leitmotif” musical foi a terceira e a quinta sinfonia de Mahler (cujo filho morrera de cólera em Veneza). Levar uma novela filosófica ao cinema foi um dos maiores desafios do mestre italiano. 

Que nós, em tempos dos Mensageiros da Morte do século XXI, devemos procurar rever!


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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