Já repararam? Toda vez que a aprovação do presidente começa a, digamos, perder potência, ele convoca uma motociata. Tivemos uma quarta (ou quinta?), no ano que corre — o que indica que a força do homem que desgoverna o país anda bastante ameaçada. Nessas horas, nada como ter uma máquina possante entre as pernas.
Afinal, o que é uma motociata? Um monte de homens que, montados em objetos barulhentos, tentam intimidar seus opositores e ostentar a própria potência. Verdade que o sólido “corpo” da motocicleta tem que ficar firme entra as pernas de quem as pilota. Compreendo a ilusão de potência causada, mesmo entre mulheres, por essa inocente conjunção.
Além disso, motos fazem barulho, a depender do uso do acelerador de quem pilota. Mas, ora essa: a potência das motocicletas não necessariamente se transfere a quem está em cima delas. As motociatas do presidente são um recurso que lembra a birra da criança contrariada: esperneia e berra o quanto pode, mas não consegue convencer o adulto a fazer o que ela quer.
No caso, os supostos “adultos” disponíveis não são lá muito confiáveis. A oposição, num congresso liderado por Lira e Pacheco, lembra a mãe que dá logo o doce à criança para não ter que enfrentar a tal birra. Cabe a nós, os 64% de brasileiros que desaprovam o presidente, o papel dos adultos na sala.
Não sei se estamos preparados para tanto. Ainda nos vemos atônitos, tentando entender como isso foi acontecer e como devemos agir. Intimidar o birrento é inoperante. Não somos capazes de imaginar maldades e ameaças à altura das que ele e de seus seguidores já praticam há quase dois anos.
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Como foi mesmo que ele foi parar no posto para o qual não estava preparado? Ah, claro: a corrupção. Quem leu Brasil, uma Biografia, de Heloisa Starling e Lilian Schwarz, sabe que a corrupção está incrustada no Estado brasileiro desde a monarquia.
Foi o pretexto (não a causa justa) para prender Luís Inácio e tentar desmoralizar o Partido dos Trabalhadores. Então me expliquem por que agora, com dezenas de indícios na família Bolsonaro, ninguém mais se importa com a corrupção? Gente hipócrita.
Palácio do Planalto
Toda vez que a aprovação de Jair Bolsonaro começa a perder potência, ele convoca uma motociata.
Ora, senhores. Seria ofensivo chamá-los de desinformados ou pouco inteligentes. Talvez prefiram que eu os considere apenas de má-fé. Por uma feliz coincidência, isso é exatamente o que me parece: má-fé. Lula, extremista?
Talvez não estejam se lembrando da Carta ao Povo Brasileiro, na qual Lula, na campanha de 2002, garantiu que não mexeria no lucro dos bancos. Parte de seus apoiadores de esquerda quis pular do barco naquele momento. Nosso perigoso extremista reuniu-se com o grupo (ao qual fui agregada, embora não quisesse pular do barco) e nos deu uma aula de materialismo histórico.
Conhecia o país que queria governar. Não sonhava com uma sociedade pronta para o socialismo — o qual, vale esclarecer, nunca esteve no seu horizonte — e sim com uma sociedade que, de conservadora e vergonhosamente desigual, pretendia em seu governo começar a transformar atacando (perdão: não consigo nenhum substituto a altura para o bom e confiável gerúndio) seu pilar mais podre: a tremenda desigualdade social. Resumiu seu projeto – lembram-se? – assim: em meu governo quero conseguir que cada brasileiro tome café da manhã, almoce e jante. Perigosíssimo, não?
Bem, talvez a modesta proposta do candidato do PT cause algum desconforto, alguma instabilidade emocional, digamos, para o 1% dos brasileiros que detém 50% da riqueza que o Brasil produz.[2]
Para um país que escravizou africanos durante três séculos, isso parece tão extremista quanto propor uma revolução. Para um país que aboliu a escravidão, sem conceder nenhuma reparação aos descendentes de africanos trazidos para cá a força, mantidos em cativeiro e punidos a chicotadas, pareceu ameaçador a uma parte da elite o fato de o governo Lula promover — através da lei das cotas — que parte dessa gente estudassem nas mesmas universidades que seus filhos.
E o Bolsa Família, então, que elevou milhões de pobres às classes médias? Escutei mais de uma vez, em várias filas de embarque, pessoas reclamando das famílias de aparência modesta que faziam sua primeira viagem de avião. “Esse aeroporto está parecendo uma rodoviária”!
A sucessora de Lula, Dilma Roussef — ex-presa política e vítima de tortura — ainda teve o desplante de conseguir que o congresso votasse pela instauração de uma Comissão Nacional da Verdade. Sim, o Brasil foi o único país, dentre os que sofreram ditaduras militares na América Latina — a só aprovar a criação de uma CNV três décadas depois da redemocratização. Não conseguimos apurar quase nada, pois os militares que convocamos a depor tinham direito de não falar nada — e assim fizeram.
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Mesmo assim, a CNV incomodou muita gente. Em uma das audiências da Comissão na Câmara dos Deputados o atual presidente fez uma performance macabra ao homenagear o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. O mesmo que torturou a presidente. Os colegas não acharam que o gesto tenha ferido o decoro parlamentar. Talvez tenham perdoado o que teria sido só uma reação emocional diante do extremismo da presidenta que criou uma Comissão para apurar, com três décadas de atraso, os crimes cometidos pelo Estado Brasileiro no período 1964-85. A homenagem de Bolsonaro ao Ustra ficou por isso mesmo. Tudo o que sofremos hoje terá começado ali?
Dilma não conseguiu aprovar que a Comissão da Verdade — como na Argentina, Uruguai e Chile — fosse também da Justiça. Teve que abrandar seu projeto. Mesmo assim, incomodou. Pessoas desinformadas perguntavam se não investigaríamos “o outro lado”. O lado dos “terroristas”.
Não adiantava esclarecer que este “lado” não era simétrico ao outro, pois crimes comuns não devem ser equiparados a crimes de Estado. Nem adiantava argumentar que componentes do “outro lado” já tinham sido presos, torturados e, em muitos casos, assassinados na prisão. Corpos de 126 desses jovens nunca foram encontrados. São, até hoje, desaparecidos políticos.
Diante de tais “extremismos”, não é de se espantar que depois de 14 anos de governos petistas o Brasil fosse à forra elegendo um capitão reformado (por indisciplina) adepto da tortura. Isso não escandalizou a maioria dos seus eleitores. O problema é que, bem… ele não tem a menor ideia do que significa governar um país. O rictus cada vez mais tenso de sua expressão revela que está desnorteado e amedrontado.
Não, essa não uma notícia alvissareira.
Depois do fracassado desfile de tanques de guerra tentando intimidar os deputados que votariam contra a proposta do voto impresso, Bozo conclama “seu” exército, as polícias militares [3] e a multidão de apoiadores de bota e berrante a manifestar, dia 7, seu apoio a outro projeto de golpe. O congresso continua bovino. Talvez pensem que seja um tanto extremista a iniciativa de tentar barrar o homem que promete um banho de sangue no feriado da Independência, depois de ter sido responsável por quase 600 mil mortes por falta de providências sérias contra a Covid-19.
Sem saber o que fazer com o poder que lhe foi atribuído, o presidente tenta demonstrar força prometendo direito ao porte de fuzis para seus apoiadores. Nem por isso se considera extremista; mas alerta seus opositores de que “tudo tem limite”. Onde já se viu promover uma eleição com os mesmos métodos transparentes utilizados desde a redemocratização? Métodos que, aliás, o elegeram em 2018, com uma ajudazinha da disseminação de mentiras (chamadas, elegantemente, de fake News) contra Fernando Haddad, candidato do PT.
A investigação, antes tarde do que tarde demais, dessa fraude eleitoral, corre o risco de também ser considerada uma iniciativa extremista, a ser enfrentada com ameaças de golpe iminente. É o que trama o ex-capitão, que como mandatário da nação detém o comando do exército: o mesmo do qual quase foi expulso em 1986 por insubordinação. Salvou-se pelo temor, entre os de alta patente, de que sua punição provocasse uma insurreição entre militares de patentes mais baixas.
No outro “extremo” do cenário eleitoral encontra-se, com mais chances do que o ex-capitão, Luiz Inácio Lula da Silva. A julgar pelas pesquisas de intenção de voto, no momento que escrevo, ele derrotaria Bolsonaro por larga vantagem no segundo turno. Que perigo, pessoal. A volta dos descendentes de escravos aos bancos das universidades. A volta dos pobres nos aviões. A volta de remuneração digna para os trabalhadores. A volta de alguma leveza, alguma alegria, alguma esperança de melhora nesse país hoje dominado pelo ódio de classe, o racismo, a miséria e o desencanto.
Posso apostar que muitos de vocês anseiam pela tal terceira via. Mesmo que não tenha projeto de via nenhuma. Antes que a motociata anunciada para o 7 de setembro faça outro “Búúú!” nas nossas caras assustadas.
* Maria Rita Kehl é psicanalista, jornalista e escritora. Autora, entre outros livros, de Ressentimento (Boitempo).
Notas
[1] Certa vez vi numa banca de jornal um livro com a cara quadrada do ex-juiz com esse título: Moro, o herói do Brasil.
[2] Relatório do banco Credit Suisse sobre a riqueza global: no Brasil, 1% dos ricos detém 44% da riqueza. Citado por Marilene Felinto em sua coluna na Folha de São Paulo de 29 de agosto. A grande ameaça de um novo governo Lula seria de que a vantagem desproporcional dos ricos voltasse a cair, como em 2010, para 40,5%.
[3] Uma das recomendações da Comissão da Verdade era pelo fim da militarização das polícias – essa excrescência da Ditadura de 1964-85.
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