Há pouco mais de 70 dias o Brasil assinava um compromisso histórico. Era dia 3 de novembro de 2021. A Conferência do Clima, a COP26, que ocorria em Glasgow, na Escócia, acabara de começar. Ainda no segundo dia do encontro da ONU, 140 países assinavam um acordo internacional para zerar o desmatamento até 2030. O Brasil era um dos signatários do acordo de florestas. Publicamente, o país assumia o compromisso de proteger seus ecossistemas críticos, entre eles o Cerrado. O bioma é considerado a savana mais biodiversa do mundo, onde nascem as principais bacias hidrográficas do país.
Na calada da noite do dia 31 de dezembro, o Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais (Inpe) anunciava que o Cerrado havia sofrido um desmatamento de 8.531,44 quilômetros quadrados (Km2) entre agosto de 2020 e julho de 2021, um aumento de 7,9% em relação ao índice dos 12 meses anteriores. Desde 2015, o bioma não era alvo de uma taxa de desmatamento tão alta. Denunciando a falta de recursos financeiros desde meados do ano passado; na primeira semana de janeiro deste ano, o Inpe anunciou que, por falta de verba, será obrigado a descontinuar o monitoramento, por satélite, do desmatamento no Cerrado já a partir de abril desde ano. As equipes responsáveis pelo Prodes, que trabalha com as taxas anuais de desmatamento, e pelo Deter, que faz o monitoramento em tempo real, já começaram a ser desmobilizadas.
“Solicitamos que o governo federal assegure os recursos necessários para a continuidade do programa de monitoramento do Cerrado e de todos os biomas brasileiros. É uma questão de legalidade, transparência e credibilidade”, cobrou, em nota de repúdio, a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, um movimento multissetorial que congrega mais de 300 empresas, organizações da sociedade civil, setor financeiro e academia.
O risco de um apagão de dados sobre o desmatamento do Cerrado vem engrossar a lista de desmontes da área ambiental no governo Bolsonaro. Enquanto o mundo está de olho nas florestas, o Brasil dá às costas para a Ciência, levando o Inpe ao sucateamento. O orçamento do órgão em 2021 foi de R$ 75,8 milhões, uma redução de 85% em relação a 2010, quando o instituto tinha em caixa R$ 487,6 milhões.
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Entre agosto de 2020 e julho de 2021, o Cerrado sofreu um desmatamento de mais de 8 mil Km²
Mais uma vez a reputação do país está em jogo, num momento em que as mudanças climáticas ocupam a centralidade das discussões mundiais e dominam a lista de maiores riscos globais do planeta. Não à toa, o risco climático, que se agrava à medida que cresce o desmatamento de biomas como o Cerrado, tende a ser o foco das discussões do Fórum Econômico Mundial, que começa no próximo dia 17, em Davos.
A nota da Coalizão chama atenção ainda para o fato de que o governo “demonstra incoerência e desalinhamento entre os compromissos que assumiu – tanto para o enfrentamento da crise climática quanto para a perda de biodiversidade – e as ações que implementa”. Diversos países, como os Estados Unidos, além da União Europeia, já indicaram que o cuidado socioambiental é um tema central para a agenda diplomática e as transações comerciais.
Monitorando o desmatamento do Cerrado desde os anos 2000, o apagão de dados do Inpe interrompe uma trajetória de indicadores fundamentais para o bioma. Os últimos dados divulgados pelo Inpe mostram, por exemplo, que as maiores taxas de desmatamento ocorreram no Maranhão, Tocantins e Bahia, que juntos com o Piauí formam a principal fronteira agrícola do país, o Matopiba. Usados em pesquisas científicas e na formulação de políticas públicas para controle de desmatamento, o programa de monitoramento do Cerrado é considerado uma referência mundial.
Cálculos feitos pela Coalizão dão conta de que o sustento do projeto ameaçado é irrisório. Segundo a nota de repúdio assinado pela entidade, o monitoramento do Cerrado custa R$ 2,5 milhões por ano. A multa por desmate ilegal de um hectare é R$ 1,5 mil. Logo, pelos cálculos da entidade, as infrações relacionadas à devastação de 1,7 mil hectares já seriam suficientes para bancar o monitoramento do desmatamento do bioma.
“O apagão de dados do Cerrado era uma possibilidade real desde o ano passado. O governo sabia do risco e decidiu não agir, o que só permite concluir que, mais uma vez, se trata de uma ação deliberada do regime Bolsonaro para impedir que a sociedade tenha acesso a informações cruciais, como fez com os dados de Covid”, criticou Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima.
Mesmo que o governo consiga enterrar o sistema de monitoramento do Inpe, vai ser muito difícil esconder o processo acelerado de desmatamento do Cerrado. “Atenta aos sinais de que tal cenário pudesse acontecer, a equipe do MapBiomas vem desenvolvendo um Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) específico para o Cerrado, que pode ser ativado a qualquer momento para garantir o monitoramento do desmatamento no bioma”, concluiu Astrini.
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O desmatamento no Cerrado gera uma efeitos colaterais em série. “Os sucessivos recordes de desmatamento na região e dados históricos sobre a diminuição da superfície natural de água mostram que essa conta não fecha: além dos impactos à biodiversidade e ao bem-estar humano, a própria produtividade agrícola e a geração de energia hidrelétrica também sofrerão as consequências no médio prazo”, analisou Dhemerson Conciani, pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) no MapBiomas.
Ao se debruçar sobre os dados do Inpe, os técnicos do Ipam constataram que as bacias hidrográficas especialmente atingidas no país foram a do Rio Tocantins e a do Médio São Francisco, que concentraram 23% e 15,9% do do desmatamento respectivamente. “O monitoramento das condições da cobertura e uso do solo nas bacias hidrográficas do Cerrado é essencial para a gestão de recursos hídricos e para a elaboração de estratégias adequadas de restauração de paisagens funcionais”, complementou Mercedes Bustamante, presidente do Conselho Deliberativo do IPAM e professora da Universidade de Brasília (UnB).
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