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Foto publicada no livro Refúgio do Olhar: A Fotografia de Kurt Klagsbrunn no Brasil dos Anos 1940

CAFÉ COM VODKA | A vitória não cabe no rodapé: memória histórica apaga papel de URSS e Brasil na Segunda Guerra

Luan Scliar, secretário-geral do Cicral BR, discute a disputa do campo da memória: "De um lado, temos o esquecimento; de outro, os projetos políticos e as narrativas fantasiosas"

Luan Scilar
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

A cada ano, quando se celebra o fim da Segunda Guerra Mundial — ou Grande Guerra Patriótica — se revive não apenas a história, mas uma batalha ainda da ordem do dia: aquela entre a verdade histórica e o esquecimento fabricado.

Todos que já se aventuraram pelo campo da história oral provavelmente já viram um gráfico sobre a evolução da opinião pública a respeito de quem teria vencido a guerra. São os números do Instituto Francês de Opinião Pública (Ifop), que revelam essa distorção progressiva: em 1945, 57% dos franceses acreditavam que os soviéticos na vivenceram o nazismo; hoje, apenas 13% mantêm essa convicção, enquanto 54% acreditam no protagonismo estadunidense. Entre os jovens de 18 a 24 anos, o abismo é ainda maior: 59% para os EUA, míseros 8% para a URSS.

Essa inversão não é acidental. É fruto de décadas de bombardeio cultural — ora hollywoodiano, ora “casualmente” russofóbico. Em 1998, Steven Spielberg e Robert Rodat lançaram seu clássico “O Resgate do Soldado Ryan”, filme que conquistou o Globo de Ouro, o Oscar e o prêmio da Academia Britânica de Artes do Cinema e Televisão (Bafta).

A intensificação da propaganda na virada do milênio trouxe ilusões com um novo Século Americano e também uma distorção histórica que, associada ao revisionismo da Guerra Fria, transformou o Dia D no epicentro imaginário da guerra, apagando os 27 milhões de soviéticos que deram seu sangue para esmagar 88% do exército nazista — uma carnificina que, somando feridos e mutilados, ultrapassa 40 milhões de vidas.

O “campo da memória” e sua preservação é um campo em eterna disputa. De um lado, temos o esquecimento característico do passar do tempo; de outro, os projetos políticos e as narrativas fantasiosas. Esse projeto não visa apenas diminuir o papel heroico e decisivo do socialismo para prover um lampejo de liberdade à humanidade, mas criar uma confusão deliberada.

Registro fotográfico feito por Luan Scliar do livro “Refúgio do Olhar: A Fotografia de Kurt Klagsbrunn no Brasil dos Anos 1940”.

Todos os anos, em memória às vítimas das bombas de urânio e plutônio que caíram, respectivamente, em Hiroshima e Nagasaki, há uma mitificação e manifestações políticas contemporâneas, muitas das quais acusam a Rússia de ser uma “ameaça nuclear”. Mas aquelas bombas de agosto de 1945 vieram de uma decisão política de Washington. As centenas de milhares de vidas afetadas pelo Little Boy e Fat Man nada têm a ver com os soviéticos.

Nesse campo minado, até nosso país foi reduzido à nota de rodapé. Poucos lembram que o Brasil foi a única nação latino-americana a enviar tropas para combater o nazifascismo na Europa: os 25 mil pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB), mal equipados para o inverno italiano, libertaram Montese, Zocca e venceram a Batalha de Monte Castello — esta última após quatro tentativas fracassadas de forças aliadas “melhor preparadas”. Por óbvio, em termos absolutos, o papel brasileiro foi tímido, mas nem por isso menos importante. A campanha brasileira foi, nas palavras dos partisanos comunistas da Brigada Garibaldi, “antifascista não por acaso, mas por escolha”.

Os brasileiros recebiam reconhecimento por onde quer que passassem — seja por sua bravura, heroísmo, eficiência ou carisma. Campanha essa que só se tornou antifascista por pressão de organizações da sociedade civil, como a União Nacional dos Estudantes (UNE), que encabeçaram manifestações pelo combate, pelas vias de fato, ao nazifascismo. Decerto, também não podemos esquecer da influência da Conferência de Mantiqueira, em agosto de 1943, puxada pelo então Partido Comunista do Brasil (PCB), que viria a adotar a política soviética de Frente Única (ou de “União Nacional”, no Brasil).

Essa campanha incentivou os militantes do partido a se alistarem na FEB para combater o nazismo, o que garantiu uma maior legitimidade dos comunistas ante a sociedade e, consequentemente, uma abertura da ditadura varguista — que viria a se concretizar em 1945, quando foi aprovada a anistia de abril daquele ano e a legalidade para o antigo PCB, em outubro. Parte dessa história se perderia, em grande medida, em função da reestruturação das Forças Armadas após o golpe militar de 1964, mas também das péssimas práticas de preservação arquivística do Brasil à época.

Ao refletir sobre o papel do Brasil naquela que os comunistas chineses viriam a chamar de “Guerra Mundial Antifascista”, lembrei-me de uma foto que foi exposta no Museu de Arte do Rio (MAR) durante uma mostra das fotografias da década de 1940 de Kurt Klagsbrunn, médico austríaco de origem judaica que saiu de sua terra natal em 1938, após a anexação de Viena pela Alemanha Nazista, e se descobriu um fotógrafo de exímia sensibilidade por essas terras.

Vasculhei toda a internet tentando encontrar a foto, e nada. Acervos públicos, privados, Wayback Machine e similares. Nem no site do MAR, onde a foto está categorizada, o arquivo da imagem está disponível. Trata-se de uma foto de 1943, em meio à campanha antifascista no Brasil, em que quadros de Vargas, Churchill, Stalin, Jiang Jieshi e Roosevelt são exibidos na entrada do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.

Após inúmeras buscas — e uma rotina pouco receptiva a esse tipo de aventura — finalmente consegui encontrar o livro Refúgio do Olhar: A Fotografia de Kurt Klagsbrunn no Brasil dos Anos 1940, no Sebo Liberdade, em São Paulo. E a foto, finalmente, estava lá.

Registro fotográfico feito por Luan Scliar do livro “Refúgio do Olhar: A Fotografia de Kurt Klagsbrunn no Brasil dos Anos 1940”. Quadros de Vargas, Churchill, Stalin, Jiang Jieshi e Roosevelt são exibidos na entrada do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1943

Acredito que essa busca ilustra o apagamento aqui mencionado. Assim como as fotos da década de 1940 são raras, tornaram-se também um material escasso em ambientes escolares e jornalísticos, podendo ser associado aos feitos da FEB e ao papel da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Reivindicar os 27 milhões de soviéticos e os 454 brasileiros mortos na Itália não é exercício de saudosismo: é reconhecer que o fascismo não foi derrotado por discursos ou filmes, mas por sangue, fuzis e uma heroica luta pela sobrevivência do que é humano, do que é comum.

Nossa memória é mais resistente do que supõem os fabricantes de esquecimento. Nas ruas de Montese, todos os anos ainda ecoam os versos que as crianças italianas cantam aos soldados brasileiros do passado: Sono arrivati i nostri liberatori! (Nossos libertadores chegaram!).

Enquanto houver quem lembre que o Brasil não foi “à guerra”, mas sim à luta contra o nazismo; e que os tanques soviéticos libertaram Auschwitz muito antes de os EUA pisarem em Berlim — a luta contra o esquecimento não terá fim. Continuaremos erguendo nossas taças, não aos generais de celulose, mas para os heróis que escreveram a mais trágica — e nem por isso menos bela — página da história moderna: a derrota do fascismo.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Luan Scilar Luan Scliar é secretário-geral do Centro de Integração e Cooperação entre Rússia e América Latina no Brasil (Cicral-BR). Atua desde 2019 na aproximação entre Brasil e China, com foco em comunicação, relacionamento institucional e desenvolvimento de projetos. Também assessora a presidência da Câmara Brasil-China de Desenvolvimento Econômico e é fundador e atual secretário executivo do Instituto de Integração Cultural e Desenvolvimento Econômico do BRICS+.

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