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ToggleNo dia 6 de maio de 2025, uma comitiva brasileira partiu em direção à capital russa, Moscou, em três aeronaves da Força Aérea Brasileira (FAB). A visita teve duas finalidades centrais. A primeira foi a participação nas comemorações dos 80 anos da vitória na Grande Guerra Patriótica — conforme mencionado em nossa coluna anterior —, evento fundamental para as disputas pela memória, contra o esquecimento e o revisionismo. O Brasil foi o único país da América Latina a enviar um contingente significativo, com mais de 25 mil combatentes, além de ter desempenhado um papel essencial nas operações de suporte no Atlântico Sul.
A segunda finalidade foi o fortalecimento da parceria estratégica entre Brasil e Rússia, com base nos interesses nacionais nas áreas política, comercial, cultural, científica, tecnológica, de defesa, aeroespacial e educacional. Essa cooperação visa reposicionar o Sul Global no sistema internacional em uma lógica multipolar, fortalecendo o multilateralismo. A composição da comitiva reflete esses objetivos:
- Luiz Inácio Lula da Silva (presidente da República)
- Janja da Silva (primeira-dama)
- Mauro Vieira (ministro das Relações Exteriores)
- Alexandre Silveira (ministro de Minas e Energia)
- Luciana Santos (ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação)
- Celso Amorim (assessor especial da Presidência para Assuntos Internacionais)
- Davi Alcolumbre (União-AP – presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional)
- Elmar Nascimento (União-BA – 2º vice-presidente da Câmara dos Deputados)
Durante sua visita à Rússia, Lula destacou o interesse do Brasil em aprofundar a cooperação com o país nas áreas política, comercial, cultural, científica, tecnológica, de defesa, aeroespacial e educacional. Segundo o presidente, esses setores são estratégicos para fortalecer a parceria bilateral e consolidar o papel do Brasil como ator relevante nos interesses russos no Sul Global.
Controle de informação contra a própria soberania
A visita brasileira à Rússia foi precedida pela chegada da primeira-dama, Janja da Silva, em 3 de maio, atendendo a convite do governo russo para compromissos nas áreas de cultura, educação e combate à pobreza, além de um encontro com professores de língua portuguesa e alunos na Biblioteca de Literatura Estrangeira fortalecendo a presença, inclusive, da língua brasileira na Rússia.
No entanto, sua ida antecipada foi alvo de distorções na mídia e no parlamento, com alegações de gastos indevidos, culminando em requerimentos de informação por parte de deputados oposicionistas. Esses questionamentos ignoram o contexto diplomático da visita e sua contribuição para o papel do Brasil no avanço de pautas importantes da política internacional.

O presidente Lula também enfrentou tentativas de descredibilização por parte da mídia brasileira, com manchetes que distorciam o caráter da visita, como, por exemplo: “‘Colegas’ ditadores de Lula na Rússia rendem moção de repúdio na Câmara”, da revista Veja, ou “’Lula apareceu ao lado não apenas de ditadores, mas também de criminosos de guerra’, afirma pesquisador”, do jornal O Globo.
No entanto, sob a ótica do Sul Global, sua presença ao lado de figuras como Ibrahim Traoré representa um gesto simbólico de que o mundo caminha para novas configurações de poder que, primeiro, não podem ser ignoradas e, segundo, são imprescindíveis para a inserção do Brasil na nova realidade em construção.
Resultados concretos da visita
Foram assinados dois memorandos de entendimento durante a visita, que reforçam o grau de parceria estratégica entre Brasil e Rússia. É importante esclarecer para o leitor que o conceito de parceria estratégica, de acordo com a profissional de Relações Internacionais Jéssica Grassi, refere-se a relações bilaterais prioritárias, com profundidade e abrangência, baseadas em fatores históricos, geopolíticos e identitários. Já os Memorandos de Entendimento (MoUs, na sigla em inglês) são instrumentos não vinculativos que expressam a intenção de cooperação e estabelecem bases para negociações futuras.
Isto exposto, o real resultado da visita pode ser avaliado com mais substância: primeiro, por indicar iniciativas de médio e longo prazo; segundo, por se tratar do estabelecimento de bases para cooperação futura.
Memorando sobre pesquisa científica
O primeiro memorando prevê cooperação em áreas estratégicas como clima, biodiversidade, biotecnologia, pesquisa nuclear, ciência e tecnologia espacial, tecnologias quânticas, astrofísica, física de astropartículas, pesquisa polar (que pode se referir ao Ártico, mas principalmente à Antártida), pesquisa marinha e geodésia. Essas áreas são fundamentais para o desenvolvimento soberano no atual tempo histórico, em que o domínio tecnológico determina a posição de um Estado nas dinâmicas globais.
Memorando sobre energia nuclear
O segundo memorando foi assinado com o Instituto Conjunto de Pesquisas Nucleares (Joint Institute for Nuclear Research – JINR) e trata da construção conjunta de pequenas usinas nucleares (Small Modular Reactors – SMR) e da mineração de urânio, especialmente voltadas a regiões isoladas do Brasil, como a Amazônia e o Nordeste, onde a falta de uma fonte perene de água não inviabiliza o projeto, já que o resfriamento pode ser realizado com uso de metais alcalinos. A cooperação entre Brasil e Rússia na área nuclear já vem sendo gestada com mais afinco desde dezembro de 2024, quando foi organizado o cronograma para viabilizar a cooperação técnica.
Benefícios esperados com a implementação de SMRs:
- Redução da dependência de combustíveis fósseis
- Energia confiável para desenvolvimento de regiões remotas
- Avanços na pesquisa científica e tecnológica
- Fortalecimento da segurança energética nacional, sobretudo com relação à instabilidade climática, que pode ocasionar longos períodos de seca – risco relevante para um país cuja matriz é majoritariamente hidrelétrica

Diálogo com a comunidade acadêmica brasileira na Rússia
A ministra Luciana Santos reuniu-se com estudantes brasileiros na Rússia após a assinatura dos memorandos, que propuseram a criação de um Grupo de Trabalho Brasil–Rússia para Avaliação e Indexação de Publicações Científicas. Essa iniciativa é vital para fomentar a cooperação acadêmica e construir uma perspectiva descolonizada do conhecimento, fugindo do viés eurocêntrico e do preconceito estrutural – fenômeno frequentemente associado à russofobia.
As conversas também trataram de recomendações para a melhora do corpo consular brasileiro, educação, pesquisa e cooperação científico-acadêmica (como, por exemplo, a validação de diplomas), acesso aos portais oficiais do governo, ampliação da conectividade aérea Brasil–Rússia em um contexto de aumento do fluxo recíproco turístico e profissional, e abertura de canais de transações financeiras, em consonância, inclusive, com as atividades do Brics.
Conclusão
A visita do presidente Lula à Rússia simboliza uma inflexão estratégica rumo à consolidação de uma política externa altiva e soberana, menos dependente dos ditames ocidentais, baseada em cooperação, tecnologia e independência, com ênfase no emergente reposicionamento do Sul Global. Os acordos firmados demonstram o comprometimento com a inovação, a superação de assimetrias e a construção de uma ordem internacional multipolar centrada no desenvolvimento dos povos – com vistas para o futuro, mas combatendo a manipulação ideológica da história.
Viva os 80 anos do fim da Grande Guerra Patriótica.