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Albert Camus (Arte: Bruno Gonçales / Flickr)

Camus e a luta contra “a peste” da estupidez, da loucura e do nazifascismo

"A Peste" de Camus revela como a estupidez e a loucura humanas, simbolizadas pelo bacilo da peste, podem se normalizar e corroer a sociedade
Carlos Russo Jr
Diálogos do Sul Global
Florianópolis (SC)

Tradução:

A estupidez é prima-irmã da loucura. Não com a loucura dos lunáticos inofensivos que dançam a valsa da sem-razão em nuvem de algodão. Não, a loucura em sua versão torpe, em sua capacidade finita é infinita de subversão de tudo que é reto e de corrosão de tudo que é sutil.

Este foi um fenômeno do século 20 e que também é contemporâneo: a normalização da violência cega e do ódio sem limites. A loucura, o ódio, a vilania e a estupidez tem um poder imediato de sedução, de tal forma que é sempre preciso se proteger de uma união imediata entre estultícia, truculência, loucura e normalidade.

Albert Camus termina seu romance “A peste” com uma menção clara ao fato de que não é possível erradicar de uma vez por todas a grande peste, e que ela sempre estará sempre à espreita, aguardando oportunamente um motivo para vir à tona. Efetivamente, a peste mas o bacilo intoxicante do nazifascismo, germe invencível da estupidez humana. E seu instrumento da loucura é o medo!

Os oligarcas, que sustentam a morte, só pensam em poder, em dinheiro, não têm respeito por nada, não procuram senão se locupletar, destroem o país, aviltam as crianças, desencaminham os adolescentes, degradam a família. Os nazifascistas encarnam tudo aquilo que devemos combater em nossas vidas!

70 anos sem Albert Camus

Sessenta anos são transcorridos da morte prematura de Albert Camus. Ao escrever “A Peste”, ainda sob o impacto dos horrores da Segunda Guerra e da luta de libertação argelina contra o colonialismo francês, ele associa o absurdo, “que não se encontra no homem e nem no mundo, mas na coexistência entre ambos”, a uma surpreendente solidariedade que surge entre os seres humanos exclusivamente em momento de extremo estresse, como aquele vivenciado em situações de guerra e de peste, o que nos leva à atualidade da sociedade humana, a arma fundamental da luta antifascista.

Numa epidemia como a de “A Peste”, para Camus todas as ideias gerais soam falsas e o mundo agredido e agressor não lhe parecia nem explicado ou explicável. Oran, uma cidade imaginária na costa argelina, é acometida por suposta impossibilidade: um surto de peste bubônica na segunda metade do século XX!

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Antes da praga a cidade que o homem a tornara inóspita, previsível nos negócios e nos costumes. “Oran é feia… Como imaginar, por exemplo, uma cidade sem pombos, sem árvores e sem jardins, onde não se encontra o rumor de asas e nem o sussurro de folhas. Apenas nos céus se lê a mudança das estações. A primavera só se anuncia pelos cestos de flores que trazem dos subúrbios: é uma primavera que se vende em mercados. ”

E assegura que uma forma cômoda de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como nela se morre. “Na nossa cidade tudo se faz ao mesmo tempo, com o mesmo ar frenético e distante. Nossos concidadãos trabalham muito apenas para enriquecerem… Os homens e as mulheres se devoram rapidamente, no que se convencionou chamar de ato de amor, ou se entregam a um longo hábito a dois… O doente fica muito só, dada a importância dos negócios e a qualidade dos prazeres. O que dirá o ato de morrer! ”

Contemporaneidade de Oran

Logo, Oran é uma cidade absolutamente contemporânea ao século XXI! Poderia ser qualquer cidade média do nosso mundo. Um primeiro rato morre com hemorragia, depois outros e outros, aos milhares; por fim, os ratos moribundos desaparecem da cidade. Logo a seguir morre o primeiro ser humano. “A imprensa tão indiscreta no caso dos ratos, não mencionava nada (a respeito dos humanos). É que os ratos morrem na rua e os homens em casa (ou são recolhidos). E os jornais só se ocupam das ruas. ”

A descrição dos sintomas, das dores, das mortes que se acumulam é realizada minuciosamente e sem “piedade”. Mas a administração pública insiste em esconder o flagelo até que não seja mais possível fazê-lo e a cidade inteira entra em quarentena, como se sitiada fosse e os isolamentos internos são instituídos. “Os flagelos, na verdade, são coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós… Os flagelos não estão à altura do homem: disse-se então que o flagelo é irreal, um sonho mau que irá passar.”

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“Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções”.

Em “A Peste” o que mais interessa ao autor é mostrar como se comportam as pessoas quando começa a ruir tudo o que elas acreditavam ser sólido: as relações familiares, as comunicações, a saúde, num transformar dos habitantes em exilados do mundo. “Como poderiam ter pensado na peste que suprime o futuro, os deslocamentos, as discussões? Julgavam-se livres e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos”.

E como se comportam os “oranianos”?

Inicialmente, quando os portões das cidades são fechados pelo isolamento do mundo, “A partir de então, reintegrávamo-nos, à nossa condição de prisioneiros e estávamos reduzidos ao nosso passado e ainda que alguém fosse tentado a viver no futuro, logo dele renunciava ao experimentar as feridas que a imaginação finalmente inflige aos que nela confiam… Assim, experimentavam o sofrimento profundo de todos os prisioneiros e exilados, vivendo com uma memória que não servia para nada… Impacientes com o presente, inimigos do passado e privados do futuro”.

Quando as pessoas julgavam a peste uma doença qualquer, a religião tinha muito prestígio, os sermões do Padre Paneloux eram extremamente concorridos e ele convocava todos a se arrependerem, a buscarem o perdão divino. “Mas quando viram que o caso era sério, lembraram-se do prazer e toda a angústia que se pinta durante o dia nos rostos, dissolve-se ao crepúsculo, numa espécie de excitação desvairada, numa liberdade desajeitada que inflama todo um povo”.

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Camus presta muita atenção ao amor entre os amantes e ao valor da amizade: “A peste, é preciso que se diga, tirara de todos os seres o poder do amor e até mesmo da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para nós só havia instantes… Ao mesmo tempo, a peste suprimia juízos de valor”.

E quando “já não havia destinos individuais, mas uma história coletiva que era a peste, os sentimentos eram compartilhados por todos”. E é essa dor que devolve o valor e a força aos sentimentos. “Há sempre alguém mais prisioneiro que eu- essa era a frase que resumia a única esperança possível”.

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Quando casas de empesteados foram fechadas ou incendiadas por motivos sanitários, começaram também os saques. “Foram incidentes que forçaram as autoridades a assimilar o estado de peste ao estado de sítio e aplicar as leis decorrentes”. Na peste e no isolamento tudo se sacrifica à eficácia de medidas que evitem a disseminação do mal.

Mas existe ainda a solidariedade humana!

O comportamento de determinado grupo de pessoas que se dedicará à luta contra a peste será o da mais estrita solidariedade. “Era uma luta resignada, mas persistente, ao mesmo tempo ilimitada e sem ilusões”, aquela travada pelos homens que providenciavam o isolamento sanitário dos doentes e a quarentena dos familiares, assim como um mínimo de atendimento às vítimas da peste.

A solidariedade humana é simbolizada por pessoas como o Dr. Rieux (que ao final se identifica como o narrador do episódio), um ateu que dá tudo de si no combate ao flagelo apenas por “estar bem consigo mesmo”; um “Rieux que julgava estar no caminho da verdade, lutando contra a criação tal como ela era”. Quando um popular lhe diz que ele não tinha coração, Rieux para e reflete que coração ele o tinha, pois lhe servia para suportar as vinte quatro horas por dia, nas quais via morrer homens que haviam sido feitos para viver. “O que eu odeio é a morte, é o mal. E quer queira, quer não, precisamos estar juntos para combatê-lo”.

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Para o narrador o heroísmo tem sempre um papel secundário perante a necessidade de luta pela felicidade, e o hábito do desespero é pior que o próprio desespero. O que restava ao médico ao qual não era dado salvar vidas, pois a peste era mortal? Tão somente “descobrir (o flagelado), ver, descrever, registrar, depois condenar e ordenar o isolamento”.

A solidariedade também é encarnada no padre Paneloux. Ele, inicialmente, acreditava que a peste havia sido enviada por Deus para o castigo dos pecadores. Quando ocorre a morte, sob intenso sofrimento, do pequeno filho do juiz Othon, se dará o momento da ruptura do padre com o tradicionalismo da aceitação e da submissão. Paneloux diz a Rieux: “Isto é revoltante, mas talvez devamos amar o que não conseguimos compreender”. Retruca-lhe Rieux: “Eu vou recusar até a morte esta criação divina em que as crianças são torturadas”, numa reprodução do diálogo sobre a revolta, entre Aliosha e Ivan Karamazov.

Um estrangeiro em Oran

Tarrou é um estrangeiro em Oran, um artista revoltado que atua lado a lado com Rieux criando brigadas sanitárias; ele deseja trabalhar pelo próximo como “um santo”, mas um santo sem Deus, sem a fé. “Já que a ordem do mundo é regulada pela morte, talvez convenha a Deus que não acreditemos nele e que lutemos com todas as forças contra a morte, sem erguer os olhos para os céus, onde ele se cala”.

Em determinado momento, Tarrou confessa a Rieux que a epidemia não lhe ensinava nada. “Sei de ciência certa que cada um traz dentro de si a peste, porque ninguém no mundo está isento dela”. “O que é natural é o micróbio. O resto, saúde, integridade, a pureza, é um efeito da vontade. É bem cansativo ser-se empestado, mas é ainda mais cansativo não se querer sê-lo… pois, é necessário, tanto quanto possível, permanecermos fora do flagelo”. “Eu me coloco no lado das vítimas em todas as ocasiões, apenas para limitar os prejuízos. Por meio das vítimas que auxilio, posso procurar a paz”.

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“A Peste” é um livro humanista feito por quem se recusa a aceitar a injustiça do Universo. No silêncio eterno dos espaços infinitos, ouvem-se somente os gritos das vítimas. Os homens devem permanecer uns ao lado dos outros, quer por egoísmo, quer por santidade, mas tomando consciência dos sentimentos essenciais de amor, amizade, solidariedade.

Uma solidariedade que se traça como uma ponte entre moribundos e condenados. A mesma solidariedade que une os homens em perigo e que se desfaz como bruma em tempos de paz. Chega um ponto em que a epidemia regride, a cidade começa a se recuperar, o isolamento é levantado e tudo se esquece.

Destruir ou reconstruir?

Os ratos voltam a surgir vivos e espertos. “Pode-se dizer que, a partir do momento em que a mais ínfima esperança se tornou possível para a população, o reinado efetivo da peste havia terminado”. Entretanto, “todos os cidadãos estavam de acordo em pensar que as comodidades da vida passada não voltariam e que era mais fácil destruir que reconstruir”.

De qualquer forma, a libertação que se prenunciava tinha um semblante misto de sorriso e de lágrimas. Tarrou será a última vítima a morrer de peste. “Tarrou perdera a partida como ele mesmo dizia, mas o que Rieux ganhara afinal? Lucrara apenas por ter conhecido a peste e lembrar-se dela, conhecer a ternura e lembrar-se dela também. Tudo o que o homem podia ganhar no jogo da peste e da vida era o conhecimento e a memória”.

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Depois da peste, que metaforicamente teria sido a Gripe Espanhola, a Segunda Guerra Mundial, os Campos de Concentração, os Gulags, os Estados de Sítio, quantos heróis da luta não voltaram para suas fraquezas?

“Rieux queria fazer como todos à sua volta e crer que a peste poderia chegar e voltar a partir, sem que o coração dos homens mudasse com isso”.

Camus

“Não era cristão, talvez agnóstico, não era marxista, nada! Era Albert Camus, filho do sol, da miséria, da morte”, dizia Sartre. Um intelectual que gostava de viver e observar o viver. Participou da Resistência Francesa ao nazismo até a libertação em 1944. Foi editor do jornal O Combate. Em 1951, rompe com Sartre, ataca o socialismo real e a própria perspectiva do comunismo. Em 1957, durante a guerra de libertação argelina onde ele que defendia uma saída negociada, recebe o Prêmio Nobel de Literatura. Morre em um acidente automobilístico em 1959, aos 46 anos de idade.

Ao receber o Nobel, ressaltou: “Perante tantos horrores, um artista não pode conformar-se com uma diversão sem alcance, com a perfeição formal. Ele falará no vazio se não se voltar para as misérias da História”. O artista moderno é um rebelde que pinta a realidade vivida e sofrida. Mas se sua rebelião for extremamente destrutiva, não chegará aos homens, será um “Calígula de café”. Para falar a todos, é necessário falar do prazer, do sol, da necessidade, do desejo, da luta contra a morte, mas falar a verdade! O “realismo socialista” nunca foi realista, pois o academicismo, quer seja de direita ou de esquerda, esquece o sofrimento dos homens.

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A arte, para Camus, espelha a rebelião contra o mundo tal como ele é. Nem negativa total, nem consentimento total. O objetivo da arte não é julgar, mas compreender. “Advogo por um verdadeiro realismo contra uma mitologia talvez ilógica e mortífera e contra um niilismo romântico, burguês ou pretensamente revolucionário”. Questionado se não teria deixado de ser um homem de esquerda ele responde: “Tradicionalmente a esquerda tem sempre lutado contra o obscurantismo, a injustiça e a opressão”.

De todo modo, a peste dos corpos sobrevive na alma! Mas aqueles que têm consciência podem se autovigiar e evitar causar danos ao próximo e, quem sabe, proporcionar um pouco do bem, lutando contra o mal! Afinal, acreditava Rieux: “há nos homens mais coisas a admirar que a desprezar”.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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