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Foto: RedCardOrders

“Cartão vermelho”: entidades nos EUA distribuem lista de direitos a indocumentados

Documento visa conscientizar imigrantes para que resistam a possíveis violações do governo Trump, que prepara rondas massivas contra indocumentados
David Brooks, Jim Cason
La Jornada
Nova York

Tradução:

Beatriz Cannabrava

“Deverão sentir medo”, repete o próximo “czar fronteiriço”, deixando claro que semear temor entre indocumentados está no centro da estratégia anti-imigrantes de Donald Trump. A retórica já está surtindo efeito por todo o país antes mesmo de ele chegar à Casa Branca.

Pais de família se veem obrigados a preparar planos de contingência para suas famílias. Por todo o país, repetem-se conversas com seus filhos sobre o que fazer se os agentes de migração chegarem, ou se os pais não voltarem para casa após o trabalho, ou se não puderem buscar os filhos na escola porque foram detidos. Ao que parece, o governo entrante está dedicado a assustar crianças.

Tom Homan, designado como “czar fronteiriço” de Trump, propôs na semana passada uma linha telefônica direta para que cidadãos denunciem imigrantes que acreditam ser “ilegais” e que tenham cometido delitos (já existe um canal semelhante), como mais uma iniciativa para gerar temor, juntamente com a ameaça de rondas massivas e outras formas de perseguição. Homan deixa claro o objetivo: que “os imigrantes sintam medo”.

Uma professora do ensino fundamental em uma escola pública de Nova York conta como se viu obrigada a alertar seus alunos de terceiro ano — ou seja, de oito anos de idade — de que poderia chegar um dia em que ela se ausentasse. “Queria que ouvissem de mim, e não de outra pessoa que teria de explicar por que desapareci.” Ela trabalha legalmente sob o programa DACA, que beneficia mais de meio milhão de indocumentados trazidos ao país por seus pais quando ainda eram crianças, mas Trump e sua equipe ameaçam anular essa medida.

Uma equatoriana que trabalha como diarista brinca que, depois que Trump voltar ao poder, muitas casas ficarão sujas, pois “pode ser a última vez que me veem”. Seu filho, de cerca de nove anos, nasceu nos Estados Unidos, e o que mais a preocupa é o que fazer com ele “se me levarem”.

Trabalhadores rurais indocumentados na costa leste do país se perguntam se este será o último ano em que trabalham nos campos de tomate e outros cultivos, e se talvez já devam considerar voltar a seus países.

Aqueles que se dedicam às entregas de alimentos, medicamentos e outros itens — os “delivery” —, que, junto com cozinheiros, garçons, trabalhadores de supermercados e do setor de distribuição, foram classificados como “trabalhadores essenciais” durante a pandemia e foram fundamentais para manter cidades inteiras funcionando, de repente enfrentam um futuro cada vez mais ameaçador e cheio de perigos potenciais. Os agradecimentos podem se transformar em uma ordem de deportação.

O ambiente gerado pelo constante ataque verbal do governo entrante, repetido ao longo de mais de um ano de campanha eleitoral, torna-se cada vez mais sombrio para todo migrante sem documentos — segundo novos cálculos, cerca de 13 milhões no país, sendo o maior grupo composto por mexicanos.

Advogados de imigração por todo o país se preparam para a ofensiva contra seus clientes, que expressam ansiedade e angústia sobre o que se espera para suas famílias. José Pertierra, veterano advogado de imigração em Washington, comenta ao La Jornada que a estratégia de Trump e sua equipe é “semear terror na comunidade imigrante… E a estratégia funcionou, estão aterrorizados. E é isso que ele vai tentar fazer com as ordens executivas que pretende assinar: semear terror”.

Pertierra afirma que, a longo prazo, isso não prosperará. “O que eu tento fazer quando chegam aterrorizados ao escritório é dizer: ‘Isso vai levar tempo, ele não vai conseguir deportar massivamente todos aqueles que diz querer deportar. As pessoas ainda têm o direito de ir à corte e apresentar seus casos… Com o tempo, o próprio povo estadunidense se voltará contra essas medidas desumanas, sejam empresários que precisam dos trabalhadores em seus restaurantes, hotéis e campos agrícolas deste país, como na construção – quem vai reconstruir Los Angeles? Há uma necessidade econômica que vai gerar apoio aos migrantes. É preciso ter confiança de que isso acontecerá e trabalhar para fomentá-lo, enquanto continuamos litigando nos tribunais para nos defendermos contra essa barbaridade’”.

O “cartão vermelho” aos indocumentados

Gaspar Rivera-Salgado, diretor do Centro de Estudos Mexicanos da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e assessor de organizações de migrantes, incluindo a Frente Indígena de Organizações Binacionais (FIOB), comentou que a comunidade está se preparando para enfrentar as ameaças de Trump.

“Estava em Oxnard trabalhando com a comunidade indígena migrante, a maioria mixtecos de Oaxaca e Guerrero, onde se organizou um fórum comunitário para informar à comunidade o que fazer para resistir às rondas que estão por vir. Sem dúvida, as pessoas estão muito preocupadas, mas há uma resposta incrível. Nesse fórum, essa organização comunitária contou com advogados e realizou um treinamento, como a distribuição massiva do conhecido cartão vermelho, que traz impressos os direitos das pessoas sem documentos, incluindo a orientação de não abrir suas portas às autoridades de imigração sem uma ordem de busca, entre outras informações. Também se discutiu o que fazer caso sejam deportados, para que estejam preparados”, informou em entrevista ao La Jornada.

“O sentimento é de que isso está para acontecer […] e é preciso estar preparado… A migração está muito visível. Diante disso, está se formando uma rede de observação e medidas para proteção. As pessoas estão muito atentas, com grande disposição para se informar”, acrescentou, sublinhando que os agentes e funcionários do governo de Trump “não vão encontrar uma vítima passiva e desesperada, mas uma comunidade que está informada, com muitos elaborando planos específicos de como resistir…”.

Há também muita reflexão sobre o que aconteceu: essas são as consequências das eleições. Portanto, estão retomando sua convicção sobre a necessidade de mudar as coisas, de olhar para as próximas eleições e levá-las muito a sério. Falou-se muito sobre o abstencionismo, que tanto prejudicou os democratas. Tudo isso afeta toda a comunidade mexicana.

Agora, olhando para o futuro, diz Rivera-Salgado, “a visibilidade e o protesto em massa serão importantes, mas, sobretudo, como se refaz a resistência política” diante da ofensiva do governo que está por vir.

A imigração em números

Donald Trump chega à Casa Branca em um momento em que o número de imigrantes indocumentados cruzando a fronteira entre México e Estados Unidos está em seu nível mais baixo desde 2020, como resultado de severas medidas impostas pelo agora ex-presidente Joe Biden, dos esforços do México para evitar a saturação da zona fronteiriça e dos efeitos da retórica anti-imigrante do novo presidente.

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Apesar das repetidas advertências de Trump e seus aliados sobre “uma invasão de migrantes na fronteira”, dados oficiais do governo estadunidense indicam que “a invasão” está em pausa como resultado dos esforços de controle do fluxo migratório pelos dois governos. No entanto, uma das consequências é que o número de migrantes retidos no México, aguardando para ingressar nos Estados Unidos, disparou a níveis nunca vistos na história recente.

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Inicialmente, os “encontros” da Patrulha Fronteiriça com imigrantes indocumentados tentando ingressar nos Estados Unidos dispararam pouco depois da chegada de Joe Biden à Casa Branca, período que também coincidiu com o fim da pandemia de covid-19 e com um aumento da migração em escala mundial.

Embora Biden tenha deportado mais indocumentados em 2024 do que Trump em qualquer um de seus quatro anos na Casa Branca, , passando de cerca de 850 mil em 2019, durante o número de indocumentados interceptados ao tentar cruzar aumentou a cada anoa presidência de Trump, para um pico de mais de 2 milhões em 2022 e 2023.

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Os países de origem desses migrantes também mudaram. Durante o primeiro governo de Trump, 90% dos indocumentados que chegavam à fronteira com os Estados Unidos vinham do México e da América Central. Em 2023, os migrantes mexicanos e centro-americanos representavam apenas 55% do total, explicou Adam Isacson, especialista em fluxos migratórios do Washington Office on Latin America (WOLA).

Mas, em 2024, o número de indocumentados tentando cruzar a fronteira a partir do México começou a cair, e, nos dois últimos meses do ano passado, a Patrulha Fronteiriça estava interceptando menos de 50 mil migrantes por mês.

No final de 2024, o governo de Biden havia conseguido canalizar os solicitantes de asilo para vias oficiais mais seguras, os quais antes tentavam chegar de maneira clandestina. O presidente eleito Trump, longe de reconhecer essas mudanças como resultados dos esforços dos Estados Unidos e do México, continua afirmando que não há controle de uma “fronteira aberta”, argumentando que Biden está apenas facilitando o ingresso de “ilegais”, que podem viver e trabalhar durante anos enquanto aguardam as avaliações de seus casos de asilo.

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Embora seja difícil encontrar estatísticas precisas, o American Immigration Council agora calcula que o tamanho da população indocumentada nos Estados Unidos cresceu de cerca de 11 milhões para mais de 13 milhões atualmente. Além disso, cerca de 900 mil pessoas que solicitaram agendamentos pelo aplicativo CBP One, para cruzar legalmente a fronteira, conseguiram ingressar no país enquanto seus casos de asilo são avaliados.

Diante da onda de refugiados na fronteira, o governo de Biden também estabeleceu, em 2023, um programa que autorizava o ingresso de até 30 mil imigrantes por mês provenientes de Cuba, Venezuela, Nicarágua e Haiti para solicitar asilo enquanto residem no país sob uma medida humanitária. Hoje, cerca de 530 mil migrantes desses países vivem nos Estados Unidos enquanto aguardam os resultados de seus casos de asilo.

Por outro lado, também aumentou o número de refugiados autorizados a viver no país sob um programa de proteção temporária contra a deportação, o chamado TPS, já que seus países foram classificados como demasiadamente perigosos. O número de pessoas sob o TPS aumentou de 430 mil em 2021 para quase um milhão no final de 2024, em grande parte devido a um aumento dramático de venezuelanos.

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Além disso, há cerca de 500 mil adultos protegidos temporariamente da deportação por uma medida conhecida como DACA, concedida àqueles que foram trazidos ao país como menores de idade por pais ou familiares indocumentados.

No total, esses números indicam que cerca de 16 milhões de pessoas vivem nos Estados Unidos sem uma autorização legal permanente.

Durante sua campanha eleitoral, Trump ameaçou eliminar muitos desses programas de proteção temporária para indocumentados. Agora, terá que decidir o que fazer com cada um desses programas e os milhões de pessoas que atualmente estão protegidas por eles.

Relação com México

Outro desafio para o governo de Trump será como trabalhar – ou não – com o México.

Em 2024, o governo de Biden simplesmente fechou partes da fronteira e impediu que a maioria dos migrantes passasse ou solicitasse asilo – políticas que, segundo defensores de direitos humanos, violam as leis nacionais e internacionais sobre o direito ao asilo.

Além disso, desde dezembro de 2023, o governo de Biden tem trabalhado com o México para evitar que migrantes cheguem à fronteira estadunidense. Funcionários estadunidenses afirmam que os esforços do México para retirar migrantes de trens e caminhões antes de chegarem à fronteira tiveram um impacto significativo no número de tentativas de cruzamento.

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Por ora, espera-se que o número de migrantes tentando cruzar a fronteira sem documentos permaneça baixo devido às ameaças e à retórica anti-imigrante de Trump. De fato, quando Trump assumiu a presidência pela primeira vez, em 2017, o número de tentativas de cruzar a fronteira a partir do México caiu para quase zero por vários meses, antes de disparar em 2019 para o nível mais alto em uma década, e depois cair devido à pandemia.  Segundo alguns especialistas, esse ciclo provavelmente se repetirá.

No início de sua nova presidência, espera-se um fenômeno semelhante, durante o qual o presidente entrante provavelmente proclamará vitória. Mas poucos acreditam que apenas fechar a fronteira e realizar deportações em massa resolverá o problema da migração indocumentada.

Isacson, da WOLA, acredita que o governo de Trump anulará a maioria das vias legais para migrantes solicitantes de asilo nos Estados Unidos. Como resultado, afirma que o número de pessoas cruzando a fronteira com sucesso sem serem detidas pela Patrulha de Fronteira aumentará, que aqueles que conseguirem cruzar permanecerão em números mais ou menos semelhantes aos atuais, e que o número de pessoas que morrerão tentando também crescerá. “O número geral de migrantes entrando nos Estados Unidos pode ser menor do que há seis meses”, explicou Isacson. “Mas será um fluxo muito menos ordenado”.

A volta do “Fique no México”

Em seu segundo dia de governo, nesta terça-feira (21), Donald Trump reativou o programa “Fique no México”, política que determina que migrantes devem aguardar a resolução de seu processo migratório do lado da fronteira mexicana. A informação é do Departamento de Segurança Interna dos EUA.

Antes mesmo da posse de Trump, Republicanos do Comitê de Segurança Interna haviam aprovado uma resolução confirmando que, como presidente, Donald Trump teria autoridade para reinstaurar de imediato o programa.

Embora a resolução dos senadores não fosse vinculante, o voto do Comitê pressionou o novo governo a implementar a medida, além de exigir que o México tome ações ainda mais rigorosas para conter o fluxo migratório para os Estados Unidos.

“O presidente tem a autoridade de implementar o programa ‘Permaneça no México’, e o Departamento de Segurança Interna pode, de imediato, devolver migrantes a um país vizinho”, declarou o senador Rand Paul, o republicano que agora preside o comitê. Além disso, a resolução reafirma a autoridade do presidente e do secretário de Segurança Interna para tomar outras medidas com o objetivo de “assegurar a fronteira do sudoeste”. Trump já indicou que adotará essas ações.

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Embora senadores de ambos os partidos concordem que os Estados Unidos devem trabalhar de forma cooperativa com o México, alguns expressaram preocupação de que o país vizinho não está fazendo o suficiente para lidar com a migração e o narcotráfico. O senador republicano Rick Scott destacou que o México deveria aceitar solicitantes de asilo de outros países que entram em seu território, em vez de permitir que eles sigam para os Estados Unidos.

“Acredito que o México acabará desenvolvendo algum tipo de processo de avaliação para pessoas que entram no país, caso enviemos todos de volta para lá”, afirmou Ken Cuccinelli, que foi um alto funcionário de migração durante a primeira presidência de Trump. “Um dos erros que as pessoas cometem é pensar que o México é um aliado. O México não é um aliado dos Estados Unidos, é um vizinho. O México opera de muitas maneiras que são adversas ao bem-estar dos Estados Unidos”, acrescentou. Ele ainda afirmou que, se Washington endurecer sua postura com o México, o país vizinho inicialmente protestará, mas, no final, se adaptará.

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O senador Paul, aliado próximo de Trump, também sugeriu que o presidente entrante tem a autoridade para determinar que apenas pessoas provenientes de Cuba e Venezuela possam solicitar asilo nos Estados Unidos. Isso implicaria que todos os demais que chegassem à fronteira seriam rejeitados sem uma audiência.

Sobre isso, Isacson, da WOLA, manifestou-se contra a possibilidade de adotar tal medida, destacando que existem temores reais de perseguição enfrentados por pessoas que fogem de outros países.

La Jornada, especial para Diálogos do Sul Global – Direitos reservados.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

David Brooks Correspondente do La Jornada nos EUA desde 1992, é autor de vários trabalhos acadêmicos e em 1988 fundou o Programa Diálogos México-EUA, que promoveu um intercâmbio bilateral entre setores sociais nacionais desses países sobre integração econômica. Foi também pesquisador sênior e membro fundador do Centro Latino-americano de Estudos Estratégicos (CLEE), na Cidade do México.
Jim Cason Correspondente do La Jornada e membro do Friends Committee On National Legislation nos EUA, trabalhou por mais de 30 anos pela mudança social como ativista e jornalista. Foi ainda editor sênior da AllAfrica.com, o maior distribuidor de notícias e informações sobre a África no mundo.

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