Os cidadãos do Chile rejeitaram firmemente neste domingo (17) um projeto de Constituição escrito sem contrapesos pelo ultraconservador Partido Republicano, com o apoio da direita tradicional, e que aprofundava a institucionalidade neoliberal vigente, um desfecho que imediatamente põe fim ao debate constitucional, depois do fracasso de dois processos desde 2019.
Com 99.3% do escrutínio, o “a favor” obtinha 44.24% dos sufrágios (5 milhões 443 mil e 201), enquanto a opção “em contra” alcançava 55.76% (6 milhões, 860 mil e 719), com uma participação de 81,4%. Das 15 regiões do país, só em três ganhava por mínima diferença o “a favor”. A vitória do “em contra” pareceu clara mal iniciado o escrutínio, estabelecendo uma vantagem de oito pontos que foi progressivamente ampliando-se ao ponto de que, uma hora depois, transcendeu no comando do “a favor”, que desmontava o cenário de rua que havia preparado para celebrar uma hipotética vitória.
Para a centro-esquerda, incluída a presidência de Gabriel Boric, trata-se de um bálsamo e um alívio depois da esmagadora derrota que sofreu em setembro de 2022, quando o projeto radical escrito pelas forças progressistas então majoritárias, foi rejeitado por 68% dos eleitores. Trata-se também de um respiro ante o avanço esmagador da ultradireita e, sobretudo, uma oportunidade para que o governo de Boric retome certa iniciativa política.
A “vitória” deste domingo tem também sabor a fel para o progressismo, porque afinal de contas, depois da revolta social de 2019 que pareceu cavar sua tumba, permanecerá vigente o texto escrito em 1980 durante a ditadura de Augusto Pinochet, institucionalizando o neoliberalismo, a privatização dos direitos sociais e, em geral, a mercantilização de toda a vida cidadã. Parece uma ironia feroz que depois de uma desgastante experiência de quatro anos iniciada em outubro de 2019, quando milhões saíram às ruas para exigir mudanças, com várias dezenas de mortos e centenas de feridos, tudo volte ao ponto de partida; não há reformas estruturais, não há ampliação da democracia, não há ajustes nos sistemas individualistas de aposentadoria e de saúde, tampouco um aumento de imposto de renda dos mais ricos que se requer para financiar os mais pobres.
A vitória do “em contra” pela sua ampla diferença supõe um certeiro golpe às pretensões presidenciais de José Antonio Kast, o líder dos ultraconservadores republicanos, que foram a força política majoritária no Conselho Constitucional que redigiu a proposta derrotada. Kast, um confesso admirador de Pinochet, ganhou em dezembro de 2021 o primeiro turno a Boric e desde então seguiu projetando suas intenções presidenciais.
“Esta noite uma grande maioria de chilenos rejeitou a proposta constitucional que nós propusemos desde o Conselho Constitucional e reconhecemos essa derrota com muita clareza e também com muita humildade”, disse. Agregou que “não há nada que celebrar, não só nós não podemos celebrar, senão que o governo e a esquerda tampouco podem celebrar, porque o dano que sofreu o Chile nos últimos quatro anos é gigantesco e custará muitas décadas repará-lo”. O líder republicano assegurou que “hoje os chilenos disseram de maneira clara que preferem continuar com a Constituição atual, fechando este longo debate constitucional. Essa vontade dos chilenos nos permitirá terminar com a incerteza e começar a recuperar a esperança, a ordem, a paz e o progresso que perdemos”.
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Foto: Senado Chile
"Processo constitucional não conseguiu canalizar as esperanças de ter uma nova constituição redigida para todos", afirma Boric
O processo se fecha, diz Boric
Depois das 21 horas, o presidente Boric pronunciou um discurso na televisão afirmando que “durante nosso mandato se fecha o tema constitucional, (porque) as urgências são outras”. E prosseguiu:
“Nosso país seguirá com a Constituição vigente porque depois de duas propostas constitucionais plebiscitadas, nenhuma logrou representar e unir o Chile em sua diversidade. O país se polarizou, se dividiu e, à margem deste contundente resultado, o processo constitucional não conseguiu canalizar as esperanças de ter uma nova constituição redigida para todos”.
Ele assegurou que “a política ficou em dívida com o povo do Chile e esta dívida se paga logrando as soluções que os chilenos e chilenas necessitam e nos exigem que alcancemos”, aludindo assim à impossibilidade de sua administração para avançar em reformas, pela teimosia opositora que as bloqueia, aproveitando sua maioria parlamentar.
Foi também uma forma de propor desbloquear o diálogo, ao qual a oposição se mostra intransigente se não for em troca de aceitar suas posições. A esse respeito, disse: “não me cabe nenhuma dúvida que o que demanda a cidadania é maior capacidade de diálogo, de consensos, mas sobretudo de ação e resolução, de abandonar as trincheiras e a imposição de versões parciais para concentrar-nos em dar solução aos problemas mais urgentes que enfrentam chilenos e chilenas em sua vida diária e que continuam causando um legítimo mal-estar com suas soluções parciais”.
Aldo Anfossi | La Jornada, especial para Diálogos do Sul – Direitos reservados.
Tradução: Beatriz Cannabrava
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