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Chile: A Pós-Modernidade em Questão

Theotônio dos Santos

Tradução:

Theotonio dos Santos*

theotonio_dos_santos1O Chile tem sido citado insistentemente como um caso de sucesso do neoliberalismo, não somente no plano econômico, como no plano, poderíamos dizer, “cultural”. A sociedade chilena teria superado o marco do modernismo e ingressado na pós-modernidade, superando os confrontos ideológicos e colocando os objetivos pragmáticos do bem-estar por cima das diferenças de classe e as tendências políticas. Um exemplo dessas mudanças era a superação negociada da ditadura sangrenta de Pinochet com a sublimação das chagas da ditadura.

pos-modernidadeApesar disso, diante da morte de Pinochet, não somente as pessoas se debatem entre as lamentações dos que cultuam a ditadura (as velhas cocotas dos bairros altos) e os que vão às ruas comemorar a morte do ditador. Mas nada é mais expressivo da presença das chagas históricas que o discurso do neto do ditador, por um lado (expulso das Forças Armadas por sua insubordinação), e a cuspida do neto do general Pratts (assassinado por Pinochet na Argentina) sobre o cadáver do ditador, por outro lado.

A luta de classes e a luta ideológica continuam latentes e se expressam nos gestos mais entranháveis, mais profundos. Isto me recorda minhas impressões sobre os confrontos étnicos na Iugoslávia que, apesar de que a ideologia oficial pretendia superá-las, se expressavam subitamente num gesto, numa lamentação, numa recordação das violências dos croatas durante a guerra contra os sérvios, nas reclamações dos árabes a respeito do maltrato da herança muçulmana na Bósnia etc.

Lembra-me também alguma coisa que não desabrochou ainda: a violência das reações dos japoneses quando se pretende justificar o uso da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki. Ou a firme determinação dos indígenas mexicanos ao reivindicar a superioridade cultural de suas pirâmides ou dos mexicanos ao reivindicar suas terras invadidas pelos Estados Unidos.

Quanta ilusão têm gerado os estruturalistas que pretendem negar a força da História, o papel da memória étnica e cultural, a força das humilhações com as quais tem se construído a História, particularmente no período moderno e contemporâneo. Estas meditações são muito sugestivas para demonstrar a profundidade do renascimento histórico das forças da esquerda nacionalista latino-americana no período atual.

Sob um novo signo ideológico, de caráter socialista (em plena época do “fim da História” proposto por Fukuyama), vemos renascer a gesta de Bolívar a partir da Venezuela, com efeitos imediatos sobre o Equador e o Panamá, sem esquecer do aparecimento de uma esquerda eleitoral relativamente bem sucedida na Colômbia.

O reaparecimento do Sandinismo na Nicarágua. Do peronismo na Argentina. E, desejem-no ou não os herdeiros do socialismo chileno, o reaparecimento de Allende e?da bandeira da Unidade Popular no Chile. Ou o ressurgimento da Apra no Peru, apoiada inclusive pela direita para deter um mal que lhes parece ainda maior: o?nacionalismo indigenista e militar, muito inspirado em Velasco Alvarado.

Ao mesmo tempo, assistimos à ascensão de um movimento indígena boliviano, que retoma as lutas da revolução boliviana e que substitui um antiimperialismo?democrático de forte inspiração classista que predominou neste país por um contexto ideológico novo extremamente rico culturalmente.

E que dizer da retomada da gesta de Emiliano Zapata, associada fortemente a suas origens indígenas, propondo superar o enfoque ocidental eurocêntrico por um?novo paradigma intelectual, ético e político? O México do Nafta é também o México do questionamento das eleições duvidosas que deu origem à Revolução Mexicana de 1910. O que acontece? Trata-se de um poderoso movimento de desenvolvimento e ascensão de uma consciência popular na região que tem uma vasta história de enfrentamentos, humilhações e fracassos, com pequenas vitórias que servem de referência para orientar as lutas contemporâneas. E essas vitórias estão associadas aos períodos de ascensão da massa esmagada por violentos golpes de Estado e regimes de terror acompanhados de políticas liberais no passado e neoliberais em nossos dias.

O horror político e o horror econômico – expressados nos mais violentos índices de desigualdade econômica e social, em exclusão, miséria e pobreza que as?organizações internacionais e ONGs reconhecem como o grande problema de nosso tempo – estão associados entre si. O mais importante da situação atual é a?constatação generalizada de que se alcançou um nível mais alto de consciência e de organização obtido nas lutas pelo reestabelecimento da democracia na região.

Por outro lado, a perda de consenso em relação ao centro do sistema mundial, que coloca em risco a hegemonia dos Estados Unidos, diante da aventura econômica?e política em que se envolveram os dirigentes deste país e seu fracasso militar incitam os povos por ele oprimidos a manifestar organizadamente sua vontade de transformação social.

E o mais importante é registrar como os setores de baixíssima renda têm desenvolvido uma argúcia política impressionante e como têm sabido utilizar a arma ?do voto universal que recentemente conquistaram os analfabetos, os indocumentados, os excluídos, os jovens e as mulheres.

Era possível prever estas mudanças como o temos feito sistematicamente em nossos artigos e livros. Para isso deve-se somente desenvolver um pensamento social ?autenticamente entranhado em nossa história e numa análise econômica e política estrutural e histórica como os grandes pensadores da região têm cultivado em?sucessivos anos de profunda elaboração teórica e esforço analítico.

* Do núcleo de fundadores de Diálogos do Sul – Autor da trilogia A Teoria da Dependência: Balanço e Perspectivas (Civilização Brasileira), Economía Mundial e Integración Latinoamericana (Plaza y Janés, México) e Do Terror à Esperança: Auge e Declínio do Neoliberalismo (Ideias & Letras)

 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Theotônio dos Santos

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