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Enquanto os Estados Unidos poderiam entrar em uma crise irremediável, a China poderia acelerar seu desenvolvimento (Imagem: Freepik)

China, globalização e os icebergs à frente da política protecionista dos EUA

Ao impor tarifas elevadas a produtos da China, os EUA tentam reverter déficits e proteger sua indústria, mas enfrentam o dilema do aumento de preços internos e a dependência de cadeias globais

Jorge Rendón Vásquez
Diálogos do Sul Global
Cidade do Panamá

Tradução:

Beatriz Cannabrava

O governo de Donald Trump dos Estados Unidos declarou uma guerra de tarifas a quase todos os países do mundo e, de maneira mais hostil, contra a China.

A primeira explicação seria que, ao aumentar as tarifas sobre os bens que importa, os Estados Unidos buscariam fazer com que seu aparato produtivo os produzisse. Assim, ativaria sua economia, aumentaria o emprego nacional, faria crescer os lucros de seus empresários e também, em certa medida, incrementaria as receitas tributárias. No plano teórico, essa medida seria uma aplicação da teoria do economista alemão do século 19 Friedrich List (1789-1846) sobre a proteção da indústria nacional frente à concorrência das mercadorias de outros países, cuja entrada deveria ser evitada, segundo ele, por meio da elevação dos impostos de importação, com base na soberania de cada país para legislar como desejarem seus governantes.

Essa recomendação foi útil para a Alemanha, sobretudo após sua unificação em 1870, e contribuiu para convertê-la na primeira potência industrial da Europa continental. Embora motivado mais pelo senso comum, o fundador e então presidente dos Estados Unidos, Alexander Hamilton (1755-1804), já havia defendido a mesma fórmula para favorecer o crescimento da indústria de seu então novíssimo país.

Após a década de 1980 do século passado, como uma continuação do neoliberalismo — impulsionado para reduzir o alcance do Estado de bem-estar e converter parte dos recursos destinados a financiá-lo em lucros empresariais — os ideólogos do capitalismo impuseram a mundialização econômica como um dogma baseado na redução, tanto quanto possível, das barreiras à entrada de mercadorias e capitais procedentes de outros países.

Um dos países que mais se beneficiou com a mundialização ou globalização foi os Estados Unidos, mas, contraditoriamente, não tanto para exportar suas mercadorias, e sim para adquirir mercadorias de outros países a preços baixos e satisfazer as necessidades de sua população, que, naquele momento, se aproximava dos 230 milhões de pessoas e possuía a maior renda per capita do mundo — um mercado enorme que podia absorver tudo o que lhe fosse oferecido, para alegria das cadeias de distribuição e vendas.

Portanto, os Estados Unidos importaram mais mercadorias do que exportaram. Por exemplo, em 2023, suas exportações chegaram a 2,020 bilhões de dólares, enquanto suas importações alcançaram 3,18 bilhões de dólares. Ou seja, o valor de suas importações foi 57% maior que o valor de suas exportações. Essa diferença era paga com dólares, em suas formas de moeda fiduciária e moeda escritural.

Os dólares fiduciários consistem em cédulas impressas pela Reserva Federal dos Estados Unidos com certas figuras, símbolos e elementos de segurança, e são entregues ao governo dos Estados Unidos e aos bancos para serem colocadas em circulação. O custo real do suporte de algodão e linho de cada cédula e de sua impressão é de cerca de 35 centavos de dólar, mas seu valor nominal, ou capacidade de pagamento, é de 5, 10, 20, 50 e 100 dólares. Já os dólares escriturais são registros nas contas dos bancos, correspondentes a estes e aos titulares de depósitos e empréstimos, que podem utilizá-los para realizar pagamentos ou adquirir dólares fiduciários.

Pelos acordos de Bretton Woods de 1944, o dólar foi admitido como moeda de câmbio internacional, com lastro em ouro — o chamado Padrão Ouro — fixado, na época, em 35 dólares por onça troy. Esse ouro poderia ser recuperado pelos países detentores de dólares, mediante a entrega de suas cédulas à Reserva Federal. Em 1971, o governo de Richard Nixon (1969 – 1972) decidiu abolir o Padrão Ouro do dólar e vendeu quase todo o ouro mantido como reserva para cobrir os gastos gerados pela guerra do Vietnã.

A partir de então, o dólar passou a valer apenas pelas somas impressas nas cédulas. E todos os que possuíam dólares, dentro e fora dos Estados Unidos, tiveram que aceitá-los. Mais ainda: viram-se obrigados a acreditar firmemente que essas cédulas valiam por si mesmas, como qualquer outro bem de propriedade, nutrindo a confiança de que com elas — pelas quais haviam entregue seus ativos em quantia equivalente às somas impressas — poderiam comprar e pagar qualquer coisa. E era exatamente isso o que os estrategistas econômicos dos Estados Unidos queriam e esperavam.

Em 1974, após a crise do petróleo de 1973, o governo dos Estados Unidos convenceu o governo da Arábia Saudita a firmar um acordo segundo o qual as vendas de petróleo deveriam ser pagas em dólares. A esse acordo se juntaram outros países do Oriente Médio produtores de petróleo, com o que o dólar se generalizou no mundo como a moeda com a qual devem ser realizadas as transações internacionais. Obviamente, para os Estados Unidos essa aceitação serviu para pagar suas compras do exterior, e em particular seus déficits da balança comercial, com seus bilhetes que quase nada lhe custavam. Assim, chegou-se a uma situação em que cerca de 75% dos dólares emitidos pela Reserva Federal circulam no exterior, sendo usados em quase todos os países como meio de troca e reserva de valor, como se estivessem dotados de valor por si mesmos.

Outro dado a ser considerado para compreender a política tarifária do governo dos Estados Unidos é o enorme tamanho do Estado, cuja burocracia e gastos com serviços públicos não conseguem ser totalmente financiados com as receitas provenientes dos tributos. Para cobrir seus déficits, o Estado precisa recorrer ao crédito, por meio de bônus emitidos pelo governo e comprados pela Reserva Federal e pelo público nacional (em grande parte fundos de pensão) ou internacional (países como Japão, China e outros). Esses bônus têm, como regra geral, uma duração de 10 anos e rendem até 4% de juros ao ano. São investimentos seguros, pois o governo cumpre com o pagamento dos juros e devolve as quantias indicadas nos bônus ao seu vencimento.

Ano após ano, o Estado desse país foi aumentando sua dívida pública, que agora chega a quase 37 trilhões de dólares — uma soma pela qual precisa pagar, a cada ano, cerca de 1,48 trilhão de dólares em juros e 3,7 trilhões de dólares pela devolução do capital dos bônus vencidos, ou seja, cerca de 5,18 trilhões de dólares. É muito dinheiro, e as receitas orçamentárias não são suficientes para cobrir esse montante, obrigando o Estado a contrair mais empréstimos.

Pode-se dizer que a sociedade estadunidense habituou-se a viver gastando mais do que ganha, e a pagar a diferença com bilhetes sem lastro e com empréstimos. E essa situação se tornou quase irreversível.

O que fazer, então? A fórmula protecionista de Friedrich Litz hoje é inaplicável. A situação do comércio mundial mudou muito em relação ao século 19.

Como nem o governo, nem a sociedade dos Estados Unidos estão dispostos a renunciar às duas fontes de recursos mencionadas — e tampouco poderiam fazê-lo —, só resta para eles, em perspectiva, uma desvalorização do dólar, que reduziria a dívida pública em certa porcentagem conforme o menor valor real da moeda e que, além disso, poderia baratear as mercadorias produzidas nos Estados Unidos, tornando-as mais competitivas no mercado internacional diante das mercadorias e serviços de outros países, que se encareceriam devido às tarifas mais altas. Em outras palavras, com a inflação projetada, os Estados Unidos poderiam matar dois coelhos com uma cajadada só. O prejuízo para os detentores de dólares no exterior, pela redução de seu valor real, seria um dano colateral, como se diz nos romances policiais.

O país mais afetado com a elevação das tarifas dos Estados Unidos é a China, que teve suas tarifas aumentadas até totalizarem 145% do valor de suas mercadorias enviadas para os EUA. Aos demais países foram impostas tarifas mais baixas, equivalentes a 10%, mas suspensas por 90 dias para dar tempo aos seus representantes de realizarem a peregrinação genuflexa a Washington.

Por um acordo comercial entre os dois países, as importações pelos Estados Unidos de mercadorias da China foram, em 2023, equivalentes a 7,3% do total. Parte dessas mercadorias são fabricadas na China por empresas estadunidenses instaladas ali desde a abertura da China ao capitalismo, atraídas pela mão de obra barata e pelas vantagens fiscais. Essa mão de obra foi se qualificando até alcançar o nível dos países mais desenvolvidos do Ocidente e, em certos setores, até superá-los. São essas as mercadorias afetadas pela recente elevação das tarifas, em prejuízo não só de seus fabricantes e da China, mas também dos consumidores estadunidenses.

Para determinar esse impacto, tomemos como referência o custo da força de trabalho, tanto na China quanto nos Estados Unidos, representado pelo salário mínimo em ambos os países, o que pode servir como índice comparativo das remunerações em todos os níveis.

Tomemos como exemplo o laptop Apple MacBook Pro, que é fabricado na China e vendido ao público nos Estados Unidos por US$ 1.599. Como o custo da força de trabalho é o valor determinante do preço de cada mercadoria, pode-se tomar como referência o valor do salário mínimo na China e nos Estados Unidos. O salário mínimo por hora na China é de US$ 3,60 e, nos Estados Unidos, de US$ 7,25.

Pode-se dizer, então, que US$ 3,60 (salário mínimo na China) está para US$ 1.599 (o preço desse laptop nos Estados Unidos), assim como US$ 7,25 (salário mínimo nos Estados Unidos) está para X (o preço que esse laptop teria se fosse fabricado nos Estados Unidos). Portanto, X seria US$ 3.220.

Aplicando ao preço do laptop fabricado na China, US$ 1.599, uma tarifa de 145% ao entrar nos Estados Unidos, essa tarifa seria de US$ 2.318. A soma, agregada ao preço do laptop, faria com que seu preço de venda fosse de US$ 3.917, ou seja, muito mais caro do que se fosse fabricado nos Estados Unidos: US$ 3.220.

Mas, com esse preço, que é mais do que o dobro do preço inicial de US$ 1.599, os potenciais compradores se retrairiam. Muitos deixariam de adquirir esse laptop fabricado nos Estados Unidos, apesar de sua ótima qualidade.

Com outras mercadorias procedentes da China ocorreria algo semelhante.

A solução para os fabricantes dessas mercadorias nos Estados Unidos seria barateá-las. Mas, como não é possível reduzir os preços nominais dos insumos produzidos nos Estados Unidos nem as remunerações dos trabalhadores, a solução não poderia ser outra senão desvalorizar o dólar por meio de um processo inflacionário, que se realizaria emitindo mais dinheiro do que o necessário para o conjunto de bens e serviços no mercado. Essa desvalorização implicaria na redução do poder aquisitivo real das remunerações, que é o que se estaria buscando.

Nominalmente, as remunerações continuariam sendo as mesmas, mas seu valor aquisitivo se reduziria diante do aumento dos preços. Os trabalhadores estadunidenses suportariam isso? Uma generalização desse fato empobreceria a sociedade estadunidense e faria com que empresas estrangeiras estabelecidas na China perdessem dinheiro, por estarem impossibilitadas de vender seus produtos nos Estados Unidos. A solução para essas empresas poderia ser migrar da China para algum outro país com salários baixos, que lhes oferecesse as mesmas ou melhores vantagens que a China — por exemplo, a Índia — desde que esta tivesse suas tarifas limitadas nos Estados Unidos a no máximo 10%.

No entanto, sendo os preços das mercadorias fabricadas na China e em outros países em desenvolvimento tão ostensivamente menores que os das mercadorias equivalentes fabricadas nos Estados Unidos, a inflação neste país teria que reduzir o valor aquisitivo real do dólar a menos da metade do que é agora, algo que soaria distópico.

Como um efeito adicional, é possível que o governo da China tenha que implementar certas medidas para superar com serenidade esse contratempo — por um lado, melhorando sua produção e barateando-a; por outro, ampliando seu mercado interno para incluir as centenas de milhões de pessoas que vivem no campo e ainda estão abaixo dos níveis de renda e consumo das cidades.

A elevação das tarifas imposta pela China, como represália, às mercadorias estadunidenses — de 125% — as encarecerá e as excluirá desse grande mercado, outro efeito prejudicial para os Estados Unidos.

Em resumo, os Estados Unidos poderiam entrar em uma crise irremediável, enquanto a China poderia acelerar seu desenvolvimento.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul Global.

Jorge Rendón Vásquez Doutor em Direito pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos e Docteur en Droit pela Université de Paris I (Sorbonne). É conhecido como autor de livros sobre Direito do Trabalho e Previdência Social. Desde 2003, retomou a antiga vocação literária, tendo publicado os livros “La calle nueva” (2004, 2007), “El cuello de la serpiente y otros relatos” (2005) e “La celebración y otros relatos” (2006).

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