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Toggle“O cinema segue criando homens violentos e mulheres que se sentem culpadas por aquilo ter acontecido com elas”, avalia a cineasta Deyse Reis sobre a cultura do estupro no audiovisual, fenômeno preocupante em que obras cinematográficas retratam a violência sexual de forma erotizada, muitas vezes confundindo estupro com cenas de sexo explícito.
Nesta entrevista, a jornalista, diretora, roteirista e produtora compartilha sua visão crítica sobre essa glamorização da violência sexual, os limites éticos na direção de cenas sensíveis e a importância da presença feminina em posições de liderança no audiovisual.
Baiana radicada em São Paulo, Deyse é também fundadora da Mulier Filmes, produtora dedicada a dar voz a projetos autorais, especialmente de mulheres.
“Quando você retrata tão explicitamente uma violência como a sexual, só causa repúdio e incômodo no público feminino. O público masculino não sente nada”, explica Reis, que acrescenta: “Está no imaginário masculino, inclusive nos filmes pornôs, a dominação do homem sobre a mulher. É praticamente um fetiche”.
Abordagens como essa em filmes e séries não apenas distorcem a percepção do público sobre o que constitui consentimento, mas podem também influenciar negativamente a compreensão de jovens sobre relações sexuais e violência.
Torture porn, romantização e “o rito de passagem”
Filmes do subgênero “torture porn”, como Doce Vingança (2010), A Serbian Film (2010) e o brasileiro Cama de Gato (2002), utilizam o estupro como elemento central de suas narrativas, com cenas gráficas e estilizadas de violência sexual. Além disso, o estupro é retratado como um catalisador para a transformação da protagonista em uma figura de força e vingança, perpetuando a ideia de que a violência sexual é um rito de passagem necessário para o empoderamento feminino.
“Reproduzir esse assunto de forma vazia e banal não ajuda a conscientizar as pessoas sobre a questão. Está tão enraizado na sociedade a ponto de não percebermos o quanto isso é problemático”, avalia Deyse.
Ela destaca como exemplo o filme polonês 365 Dias (2020), em que um homem sequestra uma mulher e a força a se apaixonar por ele: “É a pura romantização da violência, do relacionamento tóxico, do abuso. Não é romântico, não é legal”.
Além de trivializar a gravidade do estupro e apresentar esse crime como uma experiência que fortalece, esse tipo de representação ignora o trauma real e duradouro que vítimas enfrentam, contribuindo para a normalização da violência sexual e a perpetuação de mitos que culpabilizam as vítimas.
“O roteirista, o cineasta, o produtor e todos os envolvidos no projeto precisam estar abertos a buscar maneiras diferentes de falar sobre o assunto. Precisamos deixar a preguiça de lado e buscar saídas mais inteligentes”, sugere Reis.
Último Tango em Paris: violência real disfarçada de atuação
Um dos exemplos mais chocantes da cultura do estupro no cinema integra o longa-metragem Último Tango em Paris (1972), dirigido por Bernardo Bertolucci. Em uma cena polêmica, o personagem de Marlon Brando utiliza manteiga como lubrificante para sodomizar a personagem de Maria Schneider, então com 19 anos. Anos depois, Schneider revelou que o trecho não estava no roteiro e que não foi informada previamente sobre o que aconteceria, sentindo-se “humilhada” e “um pouco estuprada” tanto por Brando quanto por Bertolucci.
A busca por “autenticidade” artística, mostra o episódio, pode ultrapassar limites éticos, resultando em abuso real sob o pretexto de atuação. “Esse caso é absurdo em tantos aspectos!”, observa Deyse. “O ator e a atriz têm a capacidade de passar a verdade em cena quando são bem direcionados. Por isso existe a construção de personagem e os ensaios na pré-produção”, explica.
Com passagens por grandes plataformas como Discovery Plus, Amazon Prime, HBO Max e Disney Plus, a diretora também critica a falta de diálogo na cena: “Ela poderia, com absoluta certeza, colaborar com ideias e dizer como ela se sentiria melhor para trazer a verdade necessária. E um diretor consciente ouve e preza pelo seu elenco. Tem que ser uma troca, uma construção conjunta”.
Atualmente, mecanismos de proteção vêm sendo implementados para evitar episódios semelhantes. “O movimento Me Too trouxe uma coisa positiva para os sets de filmagem: a criação do coordenador de intimidade”, explica Deyse. “Tudo é conversado e estabelecido previamente para não haver surpresas na hora do ‘ação’. Além disso, o coordenador ou coordenadora acompanha as gravações para garantir que está tudo bem, tudo seguro e que nada será ultrapassado”, assinala.
Caminhos para uma representação responsável
Outros impactos da representação recorrente e descontextualizada do estupro no cinema é a dessensibilização do público. Ao tornar o estupro um elemento narrativo comum e, por vezes, esteticamente agradável, essas histórias dificultam o reconhecimento da violência sexual na vida real, tanto por parte das vítimas quanto da sociedade em geral.

Nesse sentido, Reis assevera: “Está faltando no cinema atual o fator questionador, a necessidade de fazer algo fora da casinha que se diferencie de todos os outros filmes sobre o tema”. Ainda para a cineasta, o caminho é buscar a humanização e a conexão com o público: “Podemos chocar de outras maneiras… se formos abordar a temática do estupro, podemos fazer algo mais inteligente, que traga debate, sem necessariamente mostrar”.
Deyse cita como exemplos a série Adolescência (2025): “Não precisou, em momento algum, mostrar o personagem matando a menina ou mostrar qualquer coisa gráfica. Entretanto, abalou o público por mostrar uma análise psicológica do garoto em um simples diálogo”. E conclui: “Humanizar e trazer para nossa realidade choca muito mais do que você colocar uma cena gráfica”.
Com uma trajetória marcada pelo compromisso com narrativas que buscam sensibilidade, responsabilidade e diversidade, Reis soma a Adolescência o longa Bela Vingança (2020): “Ambos valem ser assistidos. Bela Vingança toca na ferida de maneira inteligente, precisa, sem mostrar nada sobre estupro ao espectador. Você sabe o que acontece, mas vai além”.
Mulheres no audiovisual
A presença de mulheres em posições de liderança no cinema, como diretoras, roteiristas e produtoras, é fundamental para promover representações mais autênticas e respeitosas das experiências femininas. “Por ser um assunto que nos afeta diretamente, conseguimos trazer um outro olhar para o problema. Um olhar de quem sabe a dor real daquela situação”, afirma Deyse.
Ela, no entanto, alerta: “Ainda assim, existem mulheres que não têm a consciência de que estão reproduzindo um diálogo estereotipado. Por isso, temos que estar alertas sempre”.
Sobre as barreiras impostas às cineastas mulheres, a fundadora da Mulier Filmes é direta: “Creio que é o mesmo tipo de desafio que enfrentam para produzir qualquer coisa. A indústria é massivamente masculina, com homens de mentalidade arcaica, que não dão atenção às nossas pautas ou nossa visão”.
Para transformar esse cenário, ela defende mudanças estruturais: “A diversidade deve existir. Só conseguiremos contar histórias mais contundentes se tivermos pessoas de todos os tipos trabalhando no processo, validando e normalizando o que precisa ser de fato normalizado”.
A chave, reforça a entrevistada, é que o cinema e a literatura sirvam para construir a consciência de que o estupro é algo errado: “Cinema é entretenimento. Mas… cinema também gera mudança, gera debate. Quantos filmes não me ajudaram a me moldar como mulher, como ser humano. E essa é a beleza da arte para mim: criar opinião, trazer pontos de vista diferentes, que te façam refletir”.
A seguir, confira a entrevista completa com a cineasta Deyse Reis.
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George Ricardo Guariento — Deyse, para começar, gostaria que você se apresentasse para os nossos leitores. Poderia nos falar um pouco sobre sua trajetória profissional e como chegou às áreas de jornalismo, produção, direção e roteiro?
Deyse Reis — Eu sou jornalista de formação. E, ainda na faculdade, tive o primeiro contato com o cinema, de maneira mais profissional. Precisávamos estudar a fundo o cinema para termos conhecimento necessário para escrever críticas de filmes.
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Anos mais tarde, já morando em São Paulo (eu sou baiana), decidi estudar cinema e realizar o sonho de trabalhar com o que amo. Comecei fazendo curtas e web séries, mas logo passei para longas e séries para produtoras e canais maiores, a exemplo da Discovery Plus, Amazon Prime, HBO Max e Disney Plus. Adquiri a experiência e decidi montar a minha própria produtora (a Mulier Filmes) e dar voz a projetos autorais meus e de novos artistas, especialmente mulheres.
Quais foram os projetos ou experiências que mais marcaram sua visão sobre a representação da violência no cinema?
Não tenho um projeto em específico porque existem inúmeros filmes e séries violentos, seja no quesito físico ou emocional. O que me marca, particularmente, é o excesso e a banalização do tema. Tem um filme chamado Bela Vingança, que considero uma obra-prima. Toca na ferida de maneira inteligente, precisa, sem mostrar nada sobre estupro ao espectador. Você sabe o que acontece, mas vai além. A autora disseca a cultura do estupro com genialidade e acho que todo mundo deveria assisti-lo e refletir sobre o final.
Na sua opinião, por que o cinema ainda recorre tanto à erotização de cenas de estupro para chocar ou “atrair” o público?
Não sei se a ideia é bem “chocar”. Eu usaria mais o termo “causar”, pois não tem uma finalidade aparente. Quando você retrata tão explicitamente uma violência como essa, só causa repúdio e incômodo no público feminino. O público masculino não sente nada. Está no imaginário masculino, inclusive nos filmes pornôs, a dominação do homem sobre a mulher. É praticamente um fetiche.
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Lembro que fui assistir a uma montagem de Bonitinha, mas ordinária no teatro com uma amiga e seu marido. Eu saí bem incomodada porque era simulado o estupro no palco e comentei isso com o esposo dela. Ele simplesmente me respondeu: “Ah, não vi problema. Não me incomodou em nada”. Claro que não o incomodou. Para ele, era algo comum. É algo que “acontece o tempo todo”. Homens violentos e dominadores são vistos como viris, como machões alpha, pegadores.
O cinema, assim como tantas áreas, é muito masculino e reproduz a visão dos homens sobre os assuntos dos quais eles não têm conhecimento. Ou nem procuram se aprofundar sobre e só reproduzem o senso comum. E retratar esse assunto de forma vazia e banal não ajuda a conscientizar as pessoas sobre a questão. Está tão enraizado na sociedade a ponto de não percebermos o quanto isso é problemático e cineastas mulheres também não sabem como abordar o tema. Isso porque acaba também sendo normalizado para nós. Um tempo atrás, saiu um filme chamado 365 dias, em que um homem sequestra uma mulher e a força a se apaixonar por ele. É a pura romantização da violência, do relacionamento tóxico, do abuso. Não é romântico, não é legal.
Você acredita que exista uma linha tênue entre retratar a violência sexual como denúncia e transformá-la em algo “esteticamente atraente”? Como os cineastas podem encontrar esse equilíbrio?
Creio que a melhor maneira de se tratar qualquer tema complexo como esse é buscar a humanização, a conexão entre público e história. Buscar entender de fato o assunto e fazer com que o espectador olhe e pense: “nossa, eu sou essa pessoa”. Ou: “caramba, nunca tinha pensado sobre isso”.
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Podemos chocar de outras maneiras. A Substância, por exemplo, choca visualmente pela degradação da personagem para mostrar a mutilação que os procedimentos estéticos causam nas mulheres, que sofrem a pressão social para estarem sempre jovens, mas choca também em cenas tão simples. Quando Demi Moore está de frente para o espelho e começa a borrar a maquiagem, mostra claramente a dor daquela mulher em estar se sentindo velha e pouco atraente.
E muitas mulheres se identificaram com aquele momento. Têm filmes de terror tão assustadores que não precisam mostrar o vilão arrancando braços ou estripando alguém. Você pode causar muito mais terror só insinuando algo. Por isso, acho que… se formos abordar a temática do estupro, podemos fazer algo mais inteligente, que traga debate, sem necessariamente mostrar. Isso gera gatilho e nada mais. Creio que está faltando no cinema atual o fator questionador, a necessidade de fazer algo fora da casinha que se diferencie de todos os outros filmes sobre o tema.
Como futuros cineastas que crescem vendo essas cenas nas telas podem acabar confundindo estupro com sexo consensual?
É função do cineasta ser questionador. Nós somos quase que psicólogos, observadores da vida alheia. Temos que entender o que se passa na mente do nosso personagem, para criar algo verossímil. Por isso, bato na tecla de que todo texto, todo projeto, precisa ter pesquisa. Você tem o dever de pesquisar e entender sobre o que você vai falar ou o seu discurso fica pobre e vazio.
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Lembro de um aconselhamento que dei a um jovem roteirista que era finalista em um festival. O texto dele era bem bacana, mas ele havia inserido o trauma do abuso sexual na vida da personagem. Só que não havia um objetivo para aquilo. E eu o questionei sobre a necessidade e ele não soube me explicar. Os homens sabem que um abuso, um estupro, destrói qualquer mulher, pois é o maior pesadelo para todas nós. E simplesmente inserem porque facilita para tornar o personagem machucado.
Logo, continuam reproduzindo os estereótipos sem pensar nas consequências, sem pensar no que aquilo acarreta. Não há mais espaço na sociedade para machismo, muito menos para cineastas e produtores. É preciso ter alguém na equipe que seja capaz de ler e fazer alertas se houver alguma problemática. Mas o roteirista, cineasta, produtor e todos os envolvidos também precisam estar com a mente aberta para aprender. Hoje, com a informação que temos e de forma acessível a todo instante, não há mais desculpas para ainda confundirmos estupro com sexo consensual.
O que o episódio de Último Tango em Paris — em que Maria Schneider foi surpreendida por uma cena não combinada — ensina sobre os limites éticos entre direção e proteção do ator?
Esse caso é absurdo em tantos aspectos! O ator e a atriz têm a capacidade de passar a verdade em cena quando são bem direcionados. É por isso que existe a construção de personagem e os ensaios na pré-produção.

O elenco tem que usar a emoção do personagem em cena e não a sua própria emoção, porque isso cria gatilhos. Essa cena deveria ter sido ensaiada, dissecada milimetricamente, até para que Maria fosse ouvida. Ela poderia, com absoluta certeza, colaborar com ideias e dizer como ela se sentiria melhor para trazer a verdade necessária.
E um diretor consciente ouve e preza pelo seu elenco. Tem que ser uma troca, uma construção conjunta. Bertolucci e Marlon Brando só mostraram que eram inescrupulosos e maus profissionais. Mas… ainda são louvados e aplaudidos pelo público, enquanto ela caiu no esquecimento e teve a carreira prejudicada. Como sempre, a vítima vilanizada.
Na sua experiência, quais práticas de set garantem que o consentimento dos atores seja sempre respeitado, especialmente em cenas de violência sexual?
O movimento Me Too trouxe uma coisa positiva para os sets de filmagem: a criação do coordenador de intimidade. Ainda que, em cena, seja o personagem que toma conta, é o corpo do ator e da atriz que está sendo usado. Logo, o elenco precisa estar satisfeito com a conduta da coreografia da cena.
O diretor até pode pensar que seria legal o ator colocar a boca no seio da atriz, por exemplo, mas se ela não estiver confortável, o coordenador ou coordenadora de intimidade pode criar alternativas para manter o que a cena precisa e deixar os atores satisfeitos. Tudo é criado em conjunto, com a aprovação de todos. Tudo é conversado e estabelecido previamente para não haver surpresas na hora do “ação”. Além disso, o coordenador ou a coordenadora acompanha as gravações para garantir que está tudo bem, tudo seguro e que nada será ultrapassado.
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Isso se faz extremamente necessário para as cenas de intimidade. E, em cenas de abusos, ter uma psicóloga no set também é fundamental. Dependendo da densidade da cena, é importantíssimo. Hoje, vivemos outros tempos, ainda bem! Quanto mais consciente é o set, mais fluido e harmonioso é o trabalho.
Quais impactos psicológicos e sociais você enxerga em jovens e no público geral quando cenas de estupro são apresentadas de forma banal ou fantasiosa?
A gente continua criando homens violentos e mulheres que se sentem culpadas por aquilo ter acontecido com elas. Acho que temos que ter o entendimento de que tudo aquilo que normalizamos vira uma verdade. Vira algo comum.
Nos anos 1980, por exemplo, todo filme e toda novela tinham personagens fumando o tempo todo. Logo, todo mundo achava aquilo normal. Existiam muitos fumantes naquela década. Quando surgiu a conscientização sobre o quão prejudicial aquela prática poderia ser, os projetos passaram a ter uma redução nos personagens fumantes. Hoje, temos muito menos pessoas que se interessam pelo fumo.
Não se extinguiu, mas diminuiu. E por quê? Porque se não é mais mostrado, deixa de ser normalizado. Então, enquanto os estupros continuarem sendo mostrados de forma banal nos filmes e na literatura, não se gera a consciência de que aquilo está errado.
Que estratégias narrativas e técnicas de filmagem você recomendaria para tratar o tema com a sensibilidade que exige, sem recorrer à violência gráfica gratuita?
Como falei anteriormente, o roteirista, o cineasta, o produtor e todos os envolvidos no projeto precisam estar abertos a buscar maneiras diferentes de falar sobre o assunto. Recentemente, tivemos a série Adolescência. É o tipo de projeto que exigiu pesquisa para identificar o que está acontecendo com os jovens: homens que acreditam precisar da masculinidade tóxica para se sentirem viris, potentes, poderosos e, para isso, precisam subjugar as mulheres para se sentirem superiores — só mostra o quão inseguros eles são.
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Homens que não conseguem expressar emoções são reprimidos porque a sociedade não permite que os homens sintam. Os aprisionam no machismo e ninguém se dá conta. A consequência disso é termos homens limitados e violentos.
Adolescência não precisou, em momento algum, mostrar o personagem matando a menina ou mostrar qualquer coisa gráfica, entretanto, abalou o público por mostrar uma análise psicológica do garoto em um simples diálogo. E, naquele diálogo, cheio de camadas, mostrava TODA a problemática.
Então, precisamos deixar a preguiça de lado e buscar saídas mais inteligentes. A série gerou um debate tão grande e só mostrou a verdade nua e crua. Por isso, foi muito mais eficaz. O espectador conseguiu se conectar com a situação e com os personagens. Eles eram extremamente reais. Você conseguia ver aquele menino em um parente, em um vizinho facilmente. Humanizar e trazer para nossa realidade choca muito mais do que você colocar uma cena gráfica.
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Muita gente considera Adolescência apenas como um alerta sobre os perigos da internet, mas vai além. Ele aborda a misoginia e como começa a cultura do estupro. Ambos valem ser assistidos.
Como a presença de mulheres em cargos de direção, roteiro e produção influencia a forma como cenas de violência sexual são concebidas e retratadas?
Por ser um assunto que nos afeta diretamente, conseguimos trazer um outro olhar para o problema. Um olhar de quem sabe a dor real daquela situação. É o velho “lugar de fala”. Quando a gente passa por aquilo ou tem pessoas próximas que passaram, quando a gente tem a experiência da vivência ou da convivência, a gente tem mais propriedade para falar do que alguém que só “imagina”. Entretanto, ainda assim, existem mulheres que não têm a consciência de que estão reproduzindo um diálogo estereotipado. Por isso, temos que estar alertas sempre.
Quais são os maiores desafios que cineastas mulheres ainda enfrentam ao tentar produzir obras que questionem a cultura do estupro?
Creio que o mesmo tipo de desafio que enfrentam para produzir qualquer coisa. A indústria é massivamente masculina, com homens de mentalidade arcaica, que não dão atenção às nossas pautas ou nossa visão. E para nos fazermos ouvidas, temos que ser insistentes para furar a bolha.
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Que mudanças estruturais na indústria audiovisual você acredita serem urgentes para garantir narrativas mais seguras e respeitosas para todos os gêneros?
Não podemos deixar as decisões criativas e narrativas nas mãos de um só grupo. A diversidade deve existir. Só conseguiremos contar histórias mais contundentes se tivermos pessoas de todos os tipos trabalhando no processo, validando e normalizando o que precisa ser de fato normalizado.
Assim, precisamos de mais mulheres, negros, pardos, indígenas, pessoas trans, etc. Para que as histórias sejam fiéis e plurais. É muito bom a gente ir ao cinema e ver um monte de explosão e não precisar pensar, só se divertir. Cinema é entretenimento. Mas… cinema também gera mudança, gera debate. Quantos filmes não me ajudaram a me moldar como mulher, como ser humano… E essa é a beleza da arte para mim. Criar opinião, trazer pontos de vista diferentes, que te façam refletir.
Edição: Guilherme Ribeiro