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Toggle“Já não se fazem médicos como antigamente”. Esta frase é ouvida no Brasil repetidas vezes, sempre que alguém quer se referir às mudanças da prática da medicina na segunda metade do século 20, principalmente na relação médico-paciente. Na época dos nossos pais, o médico visitava o doente em sua casa, mesmo depois da cura, demonstrando uma atenção pessoal para cada cliente.
A confiança e o respeito no médico da família extrapolava os limites da profissão, era como pai, padre, conselheiro, amigo — alguém que exercia o seu ofício com total ética e respeito humano e de forma recíproca lhe confiávamos nossas vidas. À medida que a sociedade foi crescendo e se tornando mais complexa, a medicina foi se especializando e o paciente deixando de ser visto como um ser humano habitando um corpo que interage, que é cambiante e sujeito a uma infinidade de emoções que alimentam ou destroem sua organização interna e o seu sistema imunológico.
O clínico geral cedeu espaço ao especialista e, assim, nos esquartejaram em dezenas de partes. Nosso corpo perdeu a unidade, deixou de ser um sistema coeso para se tornar um sistema caótico. Na esteira da especialização, o médico abdicou das suas antigas funções e não sabe mais chegar sequer a um diagnóstico, caso não tenha em mãos resultados de modernos exames que desvendem o interior do corpo com uma visibilidade até então ignorada.
O laudo não é do clínico, e sim do radiologista, patologista, laboratorista, “ressonancista” ou todo aquele que tenha uma poderosa máquina em suas mãos capaz de vasculhar e deixar visível todas as nossas vísceras e órgãos. A aparente evolução da medicina, cada vez mais tecnológica, abandona gradativamente práticas sociais ligadas à saúde pública. Essa é a razão pela qual, de um lado, apresenta grande sucesso e, de outro, um verdadeiro fracasso.
Hábitos nocivos
A área não consegue resolver nem evitar os males modernos propagados por novos vírus, bactérias ou problemas derivados da industrialização de alimentos, que, ao invés de serem nutritivos e protegerem a saúde, conseguem arruiná-la, eliminando tudo o que o alimento tem de saudável e substituindo por vetores que canalizam doenças.
Falo do excesso de sal, de açúcar, de gorduras, ministrados em inocentes “tira gostos” que induzem não só adultos, mas também jovens e crianças, ao comer compulsivo. Abrem-se as portas para o caminho, de difícil retorno, da obesidade, com a sua constelação de novos problemas como hipertensão, diabete e altas taxas de colesterol.
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Falo também do uso das drogas, incluindo neste rol as farmacológicas, com seus efeitos colaterais e até viciantes. Falo dos alimentos contaminados pelos agrotóxicos, as infecções hospitalares e ambientais, os vírus — dengue, zika, hepatites, gripes, HIV, a recente covid-19. Falo dos crescentes índices de acidentes. Falo das doenças provocadas pelo estresse.
Falo das depressões por péssimas condições de trabalho, de trânsito e em muitos outros ambientes. Se encerro aqui, é para evitar que a cruel realidade nos leve ao desespero. Entretanto, mais grave do que tudo isso é assistir ao desmonte do Sistema Público de Saúde, o SUS, para privilegiar os planos privados que atendem apenas à parcela mais aquinhoada e minoritária da população, algo que acontece na maior parte do mundo.
Em Cuba, a medicina é “como antigamente”
A Revolução Cubana priorizou, desde a sua implantação, duas questões básicas: a educação e a saúde da população. Quando os guerrilheiros assumem o poder, em 1959, a evasão em massa de 3 mil médicos cubanos, atraídos pelas altas propostas salariais do governo dos Estados Unidos, poderia ter sido motivo para retardar e complicar o projeto de implementação de uma Medicina Social que atendesse ao conjunto da população em toda a ilha.
Os percalços, no entanto, longe de arrefecerem o entusiasmo, foram ingredientes importantes para manter a coesão e o firme propósito de fazer de Cuba um celeiro inacreditável de profissionais da medicina. Nesta fonte, se plasmaram médicos com uma “nova mentalidade antiga”, longe do individualismo atual e capazes de exercer sua profissão com o foco voltado não ao enriquecimento pessoal, mas ao social.
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Médicos com o compromisso de servir à coletividade, orientados à prevenção de moléstias de todo o tipo. Médicos que veem o paciente de forma integrada e holística, dando suporte emocional para acelerar seu processo de cura durante as doenças, se preocupando com as situações de risco no seu entorno, interagindo com o meio ambiente.
É verdade que as novas gerações de galenos tiveram belos exemplos, como o Dr. Che. Num discurso em 1960, Che Guevara afirmou: “Muitas vezes devemos modificar nossos conceitos. Não somente conceitos gerais, sociais e filosóficos, mas também conceitos médicos”. Por sua vez, Halfdan T. Mahler, diretor da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 1973 a 1988, declarou: “Para atingir seu objetivo de saúde, Cuba tomou medidas coerentes”.
“Fábrica” de médicos
Cuba produziu mais médicos por habitantes que qualquer país do mundo. Em 2013, o país tinha 78 mil médicos com uma população de 11 milhões de habitantes, uma média de quase oito médicos para cada mil cidadãos — o dobro da proporção nos EUA e quatro vezes mais que no Brasil, onde mal se chega a dois médicos por mil habitantes.
Como os médicos e seus alunos estão operando em um contexto de radical mudança social, foi possível desenvolver um singular currículo médico e transmitir o conhecimento científico de maneira totalmente nova.
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Os novos profissionais aprendem a mesma ciência médica ensinada em todo o mundo, porém, com uma formulação que dá ênfase à interrelação entre as distintas ciências médicas tradicionais, integradas por sua vez a cursos amplos de morfofisiologia e morfopatologia.
Concomitante ao estudo formal, há o contato diário com os pacientes e com as questões práticas da atenção primária à saúde, habituando os médicos a unirem seu crescente conhecimento científico à complexidade do diagnóstico e tratamento.
O médico da família
Fico a pensar se o “médico da família” seja uma espécie de resgate da noção de medicina tribal, onde a saúde da tribo estava nas mãos do pajé. No caso de Cuba, o médico da família cuida da nova tribo comunitária. Convive no mesmo habitat. Partilha seus problemas. Observa as relações de trabalho, os hábitos, a alimentação. Acompanha e protege crianças, idosos e gestantes. Orienta, previne, fiscaliza. Ouve queixas, administra, diagnostica, receita. Acompanha os doentes a hospitais por ocasião de internação ou alta. Por isso, em muitas comunidades, são adorados e colocados só abaixo de Deus.
Em um vídeo publicado no YouTube, Flávia Rodrigues de França — uma brasileira que estudou na Escola Latino-Americana de Medicina (Elam), em Havana, em 2013 — dá seu depoimento à TV Comunitária de Minas Gerais sobre sua formação na ilha caribenha.
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Flavia fala do currículo de seis anos, compatível com o brasileiro, além de outros três de especialização, com ênfase em pequenas cirurgias, clínica geral, saúde pública, pediatria e ginecologia. Desde o primeiro ano, os alunos já frequentam os consultórios do médico da família e, a partir do terceiro, já atuam de forma integrada em consultórios e hospitais.
👩🏻⚕️| Allí el mandatario, en diálogo con el personal de la institución médica, reconoció su labor en beneficio de la salud del pueblo. pic.twitter.com/zZ9Awg1E1P
— Presidencia Cuba 🇨🇺 (@PresidenciaCuba) June 22, 2024
Flávia enfatiza o papel do médico da família: a cada duas quadras habitacionais de qualquer cidade, há um profissional como esse. Todo cubano tem o seu. Não há fila para atendimento. O médico interage cotidianamente com os moradores, vive na comunidade e tem a missão precípua de mudar os indicadores de problemas na área da saúde. Assim, o foco é a prevenção.
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A uma pergunta do repórter sobre o significado da atenção primária à saúde, Flavia responde que a experiência cubana lhe permitiu ver a correspondência intrínseca entre saúde e desenvolvimento social. É um todo que interage, ela frisa.
O acesso à cultura, ao trabalho, ao lazer, aos recursos e aos bens, de forma igualitária, favorece o entendimento da população quanto à forma de preservar a saúde. No caso de uma epidemia, por exemplo, a articulação é fácil e imediata. Qualquer campanha de vacinação atinge quase 100% de participação, razão pela qual os índices de diferentes doenças permanecem em níveis muito baixos.