Ao vislumbrar o relevo histórico da cultura peruana, se adverte em seguida que a mais alta cúpula do pensamento é José Carlos Mariátegui. E não só por seus certeiros julgamentos sobre nosso passado – dominado pelo despotismo, a hipocrisia e a corrupção, sacralizados pela plutocracia, que ele exumou e analisou – mas sim, sobretudo, pelo futuro socialista que vislumbrou para o nosso povo.
O semblante sereno de José Carlos Mariátegui e seus escuros olhos em seu rosto de perfil afilado mestiço revelavam sua exultante inteligência; e sua maneira de se expressar, com frases de elegante estilo, ditas com voz clara e estranha às estridências, levava seus interlocutores à convicção de que estavam diante de um homem de extraordinária e vasta cultura. No entanto, lhe eram alheios a altivez, a presunção e o desdém, que costumam marcar como primeiros traços os intelectuais em uso. Departia com todos com a mesma sapiência e conferindo-lhes similar atenção. Vendo-o, escutando-o ou lendo seus escritos se reconhecia nele o homem bom e, além do mais, um paradigma da decência.
Apesar disso, teve inimigos. Não porque ele os fizesse. Pessoalmente era incapaz de ofender. Viram-no e o classificaram como um acérrimo inimigo dos titulares da cúpula de dinheiro, e teve que enfrentar-se também a uma doença que acabou prostrando-o fisicamente e arrastando-o à morte.
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José Carlos Mariátegui e sua esposa Anna Chiappe
O establishment sempre considerou José Carlos Mariátegui como um perigo para sua estabilidade e subsistência, e o hostilizou, atacando-o a partir de sua imprensa e pondo a persegui-lo os sabujos da polícia. Várias vezes foi levado à prisão e, em certa ocasião, quando ele tinha vinte e três anos, um tenente do exército, enorme, ingressou na redação do jornal El tiempo, onde ele trabalhava, o esbofeteou e o derrubou, a ele que era pequeno, mirrado e com uma perna inútil. José Carlos, sem amedrontar-se e com a dignidade inalterada, desafiou seu agressor para um duelo e este aceitou, sabendo que seu adversário desconhecia o uso da pistola, mas os padrinhos impediram o encontro. Este escândalo deu lugar à renúncia do ministro da Guerra.
Mais amarga foi a luta de José Carlos Mariátegui contra a doença degenerativa que o acometeu cedo e à qual se sobrepunha com altivez, sem resignar-se à desgraça nem perder o sentido do humor.
Na mitologia da Roma antiga existiam os gênios do bem e do mal que mais tarde o imaginário popular converteu em dois pequenos duendes levados por toda pessoas sobre cada ombro, invisíveis para os demais. Segundo essa lenda, o gênio do mal se obstina em convencer à pessoa, falando-lhe ao ouvido para que cometa os atos mais perversos, conselhos que o gênio do bem combate, chamando seu protegido à reflexão. Do gênio que se imponha na discussão, depende a conduta da pessoa. Eu imagino que em José Carlos o gênio do bem triunfava sempre.
A ciência da biologia tomou dessa lenda a ideia dos gênios para denominar genes as unidades menores dos seres vivos, que dão a sua configuração e são transmitidos por herança. Há também genes bons e genes maus. Os bons podem determinar uma vida mais longa e saudável, como os maus uma vida mais curta e as doenças. É possível também que a inclinação a admitir e respeitar os valores tenha sua origem primária nos genes bons como, ao contrário, a atração pelos anti valores se deva aos maus. Em geral, a educação, as ciências e as técnicas dominam os maus e até podem neutralizá-los.
Penso que em José Carlos Mariátegui os genes maus lhe causaram a doença com a qual lutou grande parte de sua vida. Congregaram-se em uma de suas pernas e não pararam até que a cirurgia interveio, cortando-a. E seguiram seu avesso trabalho até abater sua vida à idade de trinta e cinco anos, quando estava na plenitude de suas faculdades mentais e de sua produção teórica.
Esses genes malignos — potros de bárbaros atilas, como diz um verso de nosso gigantesco César Vallejo —, que concorreram ao mesmo propósito de seus inimigos, não desapareceram. Tiveram que saltar pela herança aos seus descendentes biológico, misturados com os genes bons.
Por curiosidade intelectual é válido perguntar-se onde foram parar esses genes malignos. Não é verossímil que se detivessem em seus filhos. Talvez tenham se reunido na geração seguinte, formando uma colônia e ocupando o cérebro de alguns deles. Mas, qual?
Jorge Rendón Vásquez é colaborador da Diálogos do Sul de Lima, Peru.
Traduzido por Beatriz Cannabrava
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