Alguém nas redes acertou ao considerar Dina Boluarte como “A comandante Zero”. A ideia foi de César Hildebrandt.
A alusão não se referia a Edén Pastora, o Comandante Zero, dirigente da Frente Sandinista de Libertação Nacional que em 1978 tomou de assalto o Parlamento da Nicarágua Somozista, nem à sua adjunta Doris Téllez, mas sim ao número – o zero – referente ao paupérrimo nível de aceitação cidadã alcançado por Dina Boluarte na recente pesquisa da Ipsos Apoyo em boa parte do Peru (a mandatário alcançou, literalmente, 0% de aprovação no norte do país). Também se referiu ao tom autoritário com o qual se dirige à população sempre que tem um microfone à frente.
Porque, de fato, essa “comandante Zero” o é em toda a sua dimensão. Poderíamos dizer um Zero à Esquerda, ou simplesmente um zero – ou seja, uma nulidade – quando se trata de ouvir a opinião das pessoas, enfrentar as tarefas que lhe cabem ou encarar os desafios que a situação impõe. Fato é que, na verdade, ela não acerta uma.
Para ela, ser Presidente da República significa ler discursos de cinco horas para fazer seus ministros dormirem no recinto de um Congresso medíocre; nomear seu filho para um posto diplomático do Peru nas Nações Unidas; usar relógios Rolex e pulseiras Cartier; trocar diariamente de vestidos de gala; eliminar as rugas do rosto com dinheiro público; derramar incenso sobre a cabeça de comandantes policiais e militares de forma cotidiana para garantir seu apoio; duplicar seus rendimentos; viajar pelo mundo sempre que tem vontade; ser recebida por mandatários estrangeiros em cidades importantes e declarar com voz estrondosa guerra a todos que a criticam, desconfiam dela ou duvidam de sua capacidade governativa.
Recentemente esteve em apuros. Teve que enfrentar uma crise de Gabinete que poderia ter lhe causado uma frustração inconsolável. Fez de tudo para evitá-la. Inclusive cortou a cabeça de três ministros para ver se agradava seus adversários momentâneos, mas não conseguiu. No fim, teve que aceitar a renúncia do presidente do Conselho de Ministros e, em seguida, a queda de seu Gabinete inteiro.
E aí começou a segunda parte da comédia. Adrianzén foi trocado por Arana e o Gabinete anterior foi ratificado. Em outras palavras, evocou-se Giuseppe di Lampedusa em “Il Gattopardo” e optou-se por mudar tudo, para que nada mudasse.
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Ciente de sua descomunal falta de habilidade, e desesperada por seu isolamento político, ela então tentou embarcar em um avião e voar ao Vaticano para ver se Leão XIV lhe dava uma bênção. Tudo isso, no entanto, resultou em uma paródia. A questão é que a crise que o país vive é muito mais profunda do que comumente se admite.
Porque é isso mesmo: quando a comandante Zero visitou Pataz em meio a uma Operação Militar sem precedentes, não falou com ninguém. Nem com o prefeito da cidade, nem com as autoridades locais, nem com os familiares dos 13 trabalhadores assassinados em 30 de abril. Tampouco, evidentemente, compartilhou um minuto com a população, que a observava assustada por detrás de suas janelas ou cortinas.
Foi apenas para lançar um falatório, acusando um suposto “Cuchillo” (Faca) pelos crimes horrendos cometidos nos túneis da empresa mineradora “La Poderosa”. Não disse, porém, que seu governo permitiu que Miguel Rodríguez, o tal “Cuchillo”, saísse do país pelo Aeroporto Internacional de Lima no mesmo dia dos acontecimentos, zombando dos “controles migratórios”.
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Depois, as autoridades competentes tiveram que admitir que o acusado pela presidenta não teve nada a ver com os fatos denunciados. E ainda, no meio disso tudo, ocorreu um fato inaudito: o suposto assassino apresentou uma denúncia judicial contra a comandante Zero exigindo que ela provasse suas acusações ou se retratasse. Foi isso último que ela fez, no meio de um silêncio estrondoso. No entanto, Rodríguez foi detido em Medellín pela polícia colombiana. E é que cometeu o grave erro de sair do país. Se tivesse ficado no Peru, não teria sido capturado, como ocorre com todos os foragidos que escapam da justiça: ninguém os encontra.
O que Dina Boluarte não fez foi reconhecer que a empresa que fornece serviços “terceirizados” à “La Poderosa” – ou seja, a empresa R & R, para a qual trabalhavam os assassinados – é formada por policiais na ativa, que contratam pessoas para oferecer “segurança” e “proteção” à contratante do serviço, isto é, à “La Poderosa”. O crime, certamente, tem outra conotação. Em breve, se fará luz sobre isso.
E o que ela fez ainda menos foi esclarecer a denúncia apresentada por alunos da Escola Superior de Guerra do Exército, que fazem cursos para promoções militares, e que acusam o diretor da escola, o general Juan Valverde, de cobrar propinas obrigatórias; ou seja, por praticar extorsão em estado puro. Outra denúncia semelhante atinge a Escola Superior de Polícia. A corrupção está dentro.
Tampouco mencionou a estranha e suspeita morte do general PNP Roger Arista, ex-chefe da DINI no governo de Boluarte – subitamente substituído por ela – e com cujo filho tentaram “plantar” armas e drogas – típico procedimento policial – para manchá-lo e talvez silenciá-lo.
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A crise governamental chegou ao seu ponto crítico no último dia 13, com a queda do Gabinete Adrianzén. A senhora nem se preocupou com o assunto. Só pensava em sua passagem aérea. Ainda assim, nomeou um novo titular na pasta de Transportes, e o escolhido foi imediatamente contestado: tinha antecedentes penais. Isso não mudou nada. Parece que, neste regime, ter tal requisito faz parte do currículo de qualquer aspirante a ministro.
Isso é confirmado pelo novo presidente do Conselho de Ministros e ex-titular da Justiça, Eduardo Arana, acusado de conluio com “Los Cuellos Blancos”. Lembram dele?
Sem um antecedente – ainda que fosse só um – não se pode aspirar a nenhum cargo. Por isso, um foi ratificado e o outro nomeado para um nível mais alto. E na quinta-feira, já a comandante Zero – depois de ratificar seus méritos – estava pronta para partir rumo a Roma com a cumplicidade de um Congresso cúmplice. Queria se banhar em água benta.