Paulo César Moreira, da Comissão Pastoral da Terra, observa que comunidades camponesas e povos originários, que já sofrem ameaças por ocupar áreas de interesse do agronegócio e mineração, ficam ainda mais à mercê durante a quarentena do coronavírus
Enquanto 84,72% dos brasileiros praticam a quarentena em zonas urbanas de alta densidade populacional, em um território de mais de 8 milhões de quilômetros quadrados, as populações rurais do Brasil — isoladas do contexto urbano e invisíveis para quem vive nas megalópoles — sentem-se ainda mais ameaçadas pela pandemia do coronavírus.
Em entrevista ao De Olho nos Ruralistas, um dos membros da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) revela preocupação com investidas violentas contra populações indígenas. Segundo Paulo César Moreira, elas podem ser contaminadas propositalmente pelo coronavírus. Ele diz que os camponeses, neste momento ainda mais isolados, correm o risco de sofrer violências mais intensa e constante.
Leia a entrevista concedida a Ludmilla Balduino.
Joka Madruga / CPT
Paulo César Moreira discursa no Congresso Nacional da CPT, em Porto Velho, julho de 2015.
De Olho nos Ruralistas — O trabalho da CPT foi afetado com a pandemia?
Paulo César Moreira — Como estamos todos em quarentena, a própria CPT não consegue visitar as comunidades com a frequência que fazíamos antes. Mantemos contato com as populações e líderes locais por telefone e mensagens. Estamos preparando o lançamento virtual do Relatório Conflitos no Campo Brasil 2019 [que traz detalhes sobre as violências cometidas contra comunidades tradicionais], no dia 17 de abril. Esse relatório vai ser mais uma prova de que o aumento da violência nos últimos anos tem sido exponencial. Com base nas conversas mais recentes com as comunidades, posso dizer que o momento é propício para que essa violência seja praticada com facetas e dimensões diferentes.
Qual é o cenário atual da violência no campo, com a chegada da pandemia no Brasil?
As agressões na quarentena têm uma característica peculiar pelo fato de os órgãos públicos também estarem em quarentena. Por isso, os agressores têm aproveitado esse momento para ameaçar famílias. Ao mesmo tempo em que vivemos um cenário de recomendação de total isolamento, este isolamento tem provocado o agravamento de algumas situações.
Quais?
Os indígenas Xavante, no Mato Grosso, têm sofrido mais agressões justamente pelo cenário do afastamento dos órgãos. Em Goiás, as 25 famílias da comunidade Macaúba, no município de Catalão, estão em risco de serem despejadas por uma mineradora [a Mosaic/Vale Fertilizantes S/A]. Em Alcântara, no Maranhão, o risco de despejo ainda é muito grande, apesar de o governo ter adiado a data, justamente por causa da pandemia. De acordo com as comunidades quilombolas de lá, as pessoas ainda têm muito receio de que a possibilidade de despejo volte com força.
Neste início de abril, mesmo na situação de pandemia, o governo federal liberou mais 46 agrotóxicos. A MP da Grilagem continua em andamento, as mineradoras e os pistoleiros não entraram em quarentena. Existe muita notificação de atuação de pistoleiros em várias comunidades do Mato Grosso, no Nordeste, no Pará, em Rondônia, no Maranhão. Todas essas situações são a continuação de um longo processo de escalada de violência institucional drástica e que tem sido colocada nas costas do povo.
Entre as comunidades tradicionais, quais correm mais riscos?
Uma situação muito grave é a dos povos indígenas. Por ter um modo de vida bem diferente nas aldeias, o contato com a civilização pode levar a situações extremamente graves. As igrejas evangélicas continuam atuando em algumas aldeias, a despeito da obrigatoriedade da quarentena, e existe um alto risco de madeireiros e pistoleiros provocarem situações de contágio, facilitando o processo de contaminação de forma intencional, para atacar essas populações e acelerar o processo de destruição do meio ambiente.
Quais as principais preocupações entre as comunidades camponesas?
As falas do Bolsonaro contra a quarentena têm provocado insegurança nas comunidades rurais. Elas dão aval para os que praticam violências no campo respeitem ainda menos o período de isolamento. Por outro lado, essas comunidades, que já vivem isoladas por questões históricas, políticas e geográficas, agora são orientadas a isolarem-se ainda mais. Tem muita comunidade que vive do que produz, e neste momento, não consegue vender seus produtos. Há uma diversidade de situações, mas um dos maiores problemas com base no contexto do coronavírus é a possibilidade de subnotificação por morte da doença entre a população do campo. Existe uma falsa ideia de que os camponeses estão protegidos, mas o isolamento pode agravar a epidemia e ampliar as ameaças.
As listas de pessoas marcadas para morrer, divulgadas veladamente pelos grupos que ameaçam, ficaram maiores com a pandemia?
Não há dados concretos, mas o que posso adiantar é que essa estratégia foi muito utilizada em 2019, um ano de investida grande sobre povos e comunidades. Muitas vezes a informação sobre a existência de uma lista vem junto com ameaças feitas com ajuda de fazendeiros, polícias e poder judiciário. As listas são gatilhos que provocam um ambiente de terror, medo e paralisação entre os ameaçados. É muito penoso para uma pessoa dormir sem saber se vai acordar, de não ter paz para viver sua vida e continuar atuando na comunidade.
Esse tipo de ameaça é uma estratégia comumente utilizada por fazendeiros, grileiros e ruralistas do Pará. A morte da irmã Dorothy fez com que, em um momento pontual, esses mandantes fossem impactados pelas denúncias. Depois de um tempo, essa prática voltou a tomar força, mas agora com estratégias adaptadas, com a criminalização e as ameaças às pessoas mais frágeis no processo de luta camponesa. Isso imobiliza essas pessoas, e a atuação comunitária corre o risco de ser paralisada — o que causa ainda mais desamparo na comunidade. Em tempos de coronavírus, a imobilização é ainda maior, porque a pandemia também provocou um contexto ameaçador.
Como foram os últimos meses, aqueles anteriores à chegada da pandemia ao Brasil?
O ano de 2019 foi extremamente violento. Os dados a respeito de violações de direitos vêm crescendo não só entre as comunidades que lutam pelo direito de acesso à terra, como também nas que lutam pelo acesso à água. Neste ano aconteceu mais um assassinato de um indígena Guajajara. O Maranhão passa por uma violência absurda, o Pará também, e a Amazônia é o foco atual da investida dos grileiros e fazendeiros contra os povos e a natureza. Já existem dados que comprovam o aumento do desmatamento da Floresta Amazônica só nestes primeiros meses de 2020.
E sobre os próximos meses?
Não há perspectiva de diminuição da violência, porque os órgãos que fiscalizam desapareceram ou foram sucateados. Os que conseguem atender minimamente uma demanda estão em quarentena, sem previsão de retorno às atividades normais. Toda essa situação é impulsionada pelo governo, principalmente na figura do presidente, que não tem escrúpulo, não se sente responsável em salvaguardar o direito dos povos, muito pelo contrário.