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ToggleA capital da Rússia se distinguia por ter o que muito poucas cidades podem presumir: uma ampla e diversa oferta cultural – museus, exposições, teatros, concertos, cinemas, livrarias –, o que já não é igual desde que, há cinco meses, começou a “operação militar especial” do outro lado da fronteira.
O conhecedor público moscovita – orgulhoso de suas raízes através do legado que deixaram seus ilustres antepassados na música, na literatura, nas artes plásticas ou na arte dramática –, já não poderá assistir à estreia das mais recentes criações de alguns de seus mais reconhecidos contemporâneos como Kiril Serebrennikov, cuja encenação do Monje Negro com atores alemães e russos inaugurou este ano o Festival de Aviñón, exilado ele em Berlim e clausurado seu Gogol –Tsentr (Centro Gogol), que tinha a fama de ser um dos melhores teatros desta capital.
De fato, o Museu Pushkin ou a Galeria Tretyakov, por mencionar só dois imprescindíveis templos da arte universal, continuam abertos ao público para que se possa admirar seus valiosos quadros, mas como consequência da guerra já não poderão intercambiar, como antes, exposições temporárias com museus de outros países.
O Pushkin continua habilitando uma de suas salas para os já tradicionais velados musicais e a seguinte está dedicada a Antonio Vivaldi, com o quarteto de cordas Capriccio, formado por jovens mulheres, autênticas virtuosas que ganharam numerosos concursos internacionais e que vão interpretar As Quatro Estações.
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Durante a primeira semana de agosto, o Teatro Bolshoi foi anfitrião da turnê do Teatro Acadêmico de Ballet “Leonid Yakobson”, de São Petersburgo, que ofereceu peças magistrais. Ela deram a volta ao mundo nos melhores palcos com O Lago dos Cisnes, A Bela Adormecida ou Dom Quixote, na leitura de um dos maiores coreógrafos da Rússia no século XX, que dá nome à companhia que cumpriu, em 2022, 50 anos desde a sua fundação.
Mas aqueles que preferem uma música menos clássica puderam deleitar-se com a magia de Aleksei Arjipovsky, uma espécie de Ludovico Einaudi sem piano e com balalaica… elétrica. O acontecimento teve lugar há alguns dias no teatro ao ar livre da VDNJ (sigla desse imenso centro de entretenimento que na época soviética foi fundado como exposição nacional de conquistas econômicas e agora se vangloria de que logo, quando começar a funcionar, terá a maior roda da fortuna do mundo, inclusive uns metros mais alta que o Ain Dubai, o chamado Olho da cidade dos Emirados que se levanta entre o deserto de Rub-al-Jali e o golfo Pérsico).
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Agosto não é o melhor mês para ir ao teatro, já que as companhias financiadas pelo Estado descem a cortina e ficam fechadas até setembro. Mas quem quiser ver uma obra, pode selecionar entre as quatro seguintes, em dois locais: o musical Jesus Cristo Superstar, no teatro Mossovieta; Hamlet – Crônica de uma noite, no teatro Sobitiye; Um homem em um quarto fechado, no Mossovieta; e, por último, Oneguin, no Sobitiye.
Também há a opção de acudir ao Teatro.doc, mal visto por não estar de acordo com a política do Kremlin. Por isso não recebe nem um centavo do orçamento federal e sobrevive com a renda dos ingressos. Oferece um espetáculo diferente quase todos os dias e, esta semana, estreia O que você fez ontem à noite? do dramaturgo Dimitri Danilov, chamado pela crítica de gênio do absurdo, que debuta também como diretor de sua própria obra.
Antonio Marín Segovia – Flickr
Alguns afamados diretores como Konstantin Bogomolov, à frente do Teatro Malaya Bronnaya, de fato procuram não falar de política
Cancelamento nos EUA e na Europa
A política de cancelamento de tudo o que é russo que se pratica nos Estados Unidos e na Europa desde 24 de fevereiro é, sem dúvida, uma aberração. Inexplicável por qualquer ângulo e contraproducente. Serve de exemplo a grotesca decisão das autoridades espanholas de fechar o Museu Russo de Málaga, filial do de São Petersburgo, e de suspender as conversações para abrir uma sucursal do Hermitage, também de São Petersburgo, em Barcelona.
Não menos afortunada é que aqui, na Rússia, se aplique outra variedade dessa mesma política de cancelamento: contra tudo o que cheire à Ucrânia e contra seus próprios criadores que se atrevem a expressar uma opinião diferente da do Kremlin.
Assim, em Moscou, foi fechada a Biblioteca de Literatura Ucraniana porque era um “foco de difusão de ideias nacionalistas e nazistas”. Também se retirou dos murais que adornam as passagens subterrâneas da praça central Pushkin a inscrição de que era um presente de um banco da… Ucrânia.
E na Rússia, prestigiados diretores de teatro e atores ficam sem trabalho, afamados músicos veem como são cancelados sem razão seus concertos, destacados escritores não podem publicar seus livros e alguns optam pelo exílio ou por deixar de opinar.
Isto afeta inclusive os roqueiros, muitos dos quais não têm papas na língua, soltam o que acreditam e estão sendo apartados de seus seguidores. O portal de notícias Fontanka elaborou uma lista de 35 grupos e cantores que estão proibidos de celebrar concertos na Rússia, seu próprio país, e alguns como Yuri Shevchuk, líder do grupo DDT, podem acabar na prisão por “desacreditar o exército russo”.
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As autoridades, que parecem empenhadas em fechar a boca daqueles que estão contra a guerra, pouco a pouco estão despejando o campo da cultura, da arte e do entretenimento daqueles que pretendem ter uma opinião própria.
O teatro é um eloquente exemplo do que está acontecendo: nestes meses, destituíram os diretores do já mencionado Gogol-Tsentr e também do Teatro Vajtangov, Teatro Mayakosvky, Teatro Escola de Obras Contemporâneas, Centro Meyerhold, Teatro Sovremennik, Teatro Viktiuk e outros.
Os novos diretores se somam aos que formam parte da monotonia cinzenta de leais. Também há diretores que respaldam por convicção a “operação militar especial”. Entusiasta partidário da invasão à Ucrânia é o ator Vladimir Mashkov, agora diretor do Teatro de Oleg Tabakov – antes chamado pelo público com o carinhoso apelido de Tabakerka, em honra ao seu fundador já falecido. Sem que ninguém pedisse, Mashkov ordenou pendurar uma enorme faixa com a letra Zeta, distintivo usado pelo exército russo em solo ucraniano, na fachada do teatro, como amostra de apoio à campanha militar.
Alguns afamados diretores como Konstantin Bogomolov, à frente do Teatro Malaya Bronnaya, de fato procuram não falar de política. Outros, como Yevgueni Mironov, diretor do Teatro das Nações, se veem forçados a mudar de opinião: primeiro criticou a invasão e, posto ante a disjuntiva de emigrar ou expressar seu respaldo, aceitou ir a Mariupol como parte de uma delegação de funcionários moscovitas que inauguraram um monumento aos “libertadores do nazismo”.
O teatro que vem
Para a temporada teatral que começa em setembro, já se está publicizando como grande acontecimento a estreia de Einstein e Margarita, no Teatro Taganka – famoso mais por nostalgia, pois salvo a lembrança, nada se mantém da longa e frutífera etapa em que o dirigiu Yuri Liubimov –, um espetáculo que tem como eixo a história de amor do egrégio físico e uma mulher russa, tão formosa como casada.
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Nos tempos de Liubimov, o Teatro Taganka se situou na vanguarda dos melhores teatros do mundo por, entre outras obras, O Maestro e Margarita. Mas a semelhança dos títulos pode atrair só aqueles que não tenham lido a novela de Mijaíl Bulgakov. Margarita também se chamava a esposa do escultor russo emigrado Serguei Konenkov que, em 1935, recebeu em Princenton a encomenda de fazer um retrato em bronze do autor da teoria da relatividade.
Quando os personagens se conheceram, surgiu um amor à primeira vista que terminou dez anos depois quando ela – de acordo com o estereótipo de fidelidade da mulher soviética que satisfez o ministério de Cultura que autorizou a encenação – comunica a seu amado que seu marido decidiu que o casal nada tinha a fazer nos Estados Unidos e voltaria para a União Soviética.
O dramaturgo Aleksandr Gelman não esclarece se a universalmente conhecida foto de Einstein com a língua de fora foi feita no dia em que Margarita, sua amante, lhe comunicou a triste notícia.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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