Ao tentar declarar a lei marcial, o presidente da Coreia do Sul, Yoon Suk Yeol, tentou ressuscitar fantasmas que o restante do país acreditava estarem enterrados para sempre. A última vez que a lei marcial foi decretada, em 1980, centenas de pessoas morreram nas mãos do ditador militar Chun Doo-hwan, que enviou manifestantes a um campo de concentração para receber “educação purificadora”.
Durante sua meteórica ascensão ao poder, de procurador a presidente, Yoon indignou grande parte do país ao fazer comentários elogiosos sobre Chun, afirmando, há três anos, que muitas pessoas achavam que o general tinha feito um bom trabalho em termos políticos, apesar de seu golpe de Estado e da repressão violenta aos protestos.
Yoon, advogado e recém-chegado à política, viu-se obrigado a pedir desculpas e a visitar, em Gwangju, o monumento em memória do maior massacre da era Chun. No entanto, muitos de seus críticos questionaram a sinceridade de sua retratação. Eles também se alarmaram com o fato de Yoon ter promovido a altos cargos membros do Movimento Nova Direita, grupo que combina a defesa da economia de mercado com uma visão revisionista sobre o período colonial japonês e as ditaduras anteriores.
A breve declaração de lei marcial feita por Yoon parece ter sido uma aposta desesperada diante de uma popularidade em queda livre — com índices positivos que mal superam os 10% — em meio a uma greve de médicos e a uma forte oposição política, que inclui cada vez mais membros de seu próprio partido, Poder Popular. O líder do partido, Han Dong-hoon, afirmou que a declaração de lei marcial foi um “passo equivocado”.
Os partidos da oposição sul-coreana anunciaram nesta quarta-feira que apresentaram uma moção para destituir o presidente devido à declaração de lei marcial, segundo a AFP. “Apresentamos uma moção de censura elaborada com urgência”, declararam representantes de seis partidos de oposição, incluindo o principal, o Partido Democrático, em uma entrevista coletiva transmitida ao vivo. Eles acrescentaram que discutiriam quando submetê-la a votação, o que poderia ocorrer já nesta sexta-feira.
O erro de cálculo de Yoon Suk Yeol
É possível que Yoon tenha pensado que sua nostalgia pelo autoritarismo encontraria eco em pelo menos parte do espectro político sul-coreano, mas a votação unânime na Assembleia Nacional para revogar sua declaração, inclusive com apoio de seu próprio partido, sugere que ele calculou mal. Em questão de horas, foi forçado a recuar, e a lei marcial foi formalmente revogada após uma reunião do gabinete.
John Nilsson-Wright, diretor do programa sobre Japão e as Coreias da Universidade de Cambridge, afirma: “O fato de ter agido dessa forma é um sinal de que o governo está em uma situação de crise. Não acredito que reflita uma forte nostalgia da direita pelo autoritarismo; penso que é um reflexo da personalidade de Yoon. O impulso político já estava escapando de suas mãos, e talvez por isso ele tenha decidido agir assim. Mas foi uma decisão temerária e profundamente equivocada”.
O chefe do Estado-Maior do Exército, general Park An-su, chegou a declarar a proibição de toda atividade política e a imposição do controle militar sobre “todos os meios de comunicação e publicações”, mas essas declarações foram completamente ignoradas. A Assembleia Nacional estava em ebulição, as ruas cheias de manifestantes, e os meios de comunicação da Coreia do Sul continuaram informando sobre os acontecimentos à medida que se desenrolavam.
Não está claro se as declarações iniciais de Park se deveram à mera incerteza sobre a legalidade constitucional de uma situação sem precedentes ou a um autêntico entusiasmo golpista. Em seu discurso noturno, Yoon afirmou que as tropas retornariam aos quartéis, mas, historicamente, exércitos que experimentaram o poder político raramente se curam totalmente do vício.
A invocação por Yoon de uma ameaça estrangeira, representada por “forças comunistas norte-coreanas” e seus supostos simpatizantes no Sul, parece extremamente frágil, mas corre o risco de se tornar uma profecia autorrealizável.
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Em Pyongyang, Kim Jong-un está desfrutando de um ressurgimento, saindo do isolamento graças à necessidade de ajuda militar de Vladimir Putin na Ucrânia. É altamente provável que ele tente explorar o momento de fraqueza de Seul. Qualquer movimento agressivo do Norte poderia oferecer uma justificativa retrospectiva para Yoon e os militares.
“Para um presidente que se concentrou tanto na reputação internacional da Coreia do Sul, isso faz com que o país pareça muito instável”, disse Mason Richey, professor da Universidade Hankuk de Estudos Estrangeiros de Seul, à agência Reuters: “Isso terá um impacto negativo nos mercados financeiros e cambiais, além de prejudicar a posição diplomática da Coreia do Sul no cenário global”.