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ToggleEm nove nações na Amazônia, os povos indígenas enfrentam sozinhos a pandemia do novo coronavírus. Eles têm criado seus próprios protocolos, fechado seus territórios com guardas indígenas comunitárias e se tratado com medicina ancestral. Mas sem apoio efetivo das autoridades as ações são insuficientes. “Não há políticas transfronteiriças entre os governos. E o Brasil, por ter fronteiras com quase todos os países da Amazônia, tem sido um fator de transmissão”, denunciou Gregorio Mirabal, do povo indígena Kuripaco da Venezuela e coordenador geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (Coica).
O novo coronavírus já matou 1.086 indígenas no Brasil, Equador, Peru, Suriname, Venezuela, Bolívia, Colômbia, Guiana e Guiana Francesa. A Coica e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) levantaram 21.847 casos confirmados de Covid-19 entre 172 dos mais de 390 povos indígenas desses países.
Organizações indígenas participaram, na sexta-feira (17), da série de diálogos El Grito de La Selva, que antecedeu a Primeira Assembleia Mundial pela Amazônia, evento online que debateu os impactos da doença nas comunidades indígenas. Na série, as lideranças se mostraram preocupadas com o avanço da doença na região.
OPAS
Evento com representantes de nove países da região discute o impacto da Covid-19, que já matou 1.018 indígenas e infectou mais de 21 mil
“O que vemos é uma ausência total das autoridades nos territórios indígenas. Os governos não têm um plano para os povos indígenas, só subnotificações, não têm transparência no manejo de recursos da pandemia”, afirmou Mirabal em entrevista à agência Amazônia Real. “Além disso, vemos o colapso total da infraestrutura de saúde e, em muitas comunidades, ela sequer existe. Os povos em isolamento voluntário são os mais vulneráveis nesse contexto.”
A pandemia tem sido oportuna para ataques contra os indígenas, criticou a brasileira Valéria Payer Kaxuyana, representante da Coiab, entidade integrante da Coica e comandada pela amazonense Nara Baré. Invasões por garimpeiros, o desmatamento e agora o processo das queimadas têm potencializado a chegada do vírus nos territórios, colocando em xeque o respeito aos direitos dos povos indígenas, como o isolamento social. “Tudo isso sendo incentivado pelo atual governo do Brasil, que também legaliza ocupações promovidas pelas invasões através do Cadastro Ambiental Rural (CAR)”, disse Valéria.
O Brasil, país que conta com o maior número de povos indígenas isolados, deveria estar ainda mais preocupado. Segundo o Instituto Socioambiental, são 115 registros de povos indígenas vivendo em isolamento, sendo 28 confirmados, outros 86 permanecem em investigação. São esses povos os mais vulneráveis à invasão de não indígenas em suas terras.
Dos países que foram a Amazônia, o mais afetado pela Covid-19 é o Brasil, com 12.655 casos confirmados e 480 mortos, segundo a Coiab em relatório divulgado em 21 de julho.
Depois, vêm Peru com 3.987 indígenas infectados e 379 mortes; Colômbia, 2.748 casos e 113 óbitos; Equador, 1.435 casos e 37 mortes; Bolívia, 792 casos e 73 mortes; Venezuela, 139 casos e 1 morte; Guiana, 72 casos e 2 mortes; Suriname, 19 casos e 1 morte; e Guiana Francesa com 1 morte.
“A situação na Amazônia peruana é muito crítica. Estamos há 120 dias em situação de emergência, mas os povos indígenas estão em abandono sanitário. Temos usado a medicina tradicional para nos proteger desse vírus, que tem levado tanta gente”, protestou o presidente da Associação Interétnica para o Desenvolvimento da Selva Peruana (AIDESEP), Lizardo Cauper, do povo Shipibo.
“Quando o governo decretou estado de emergência e isolamento social, foi uma confusão generalizada, pois os povos indígenas não entenderam nada, não sabiam do por quê e nem do que se tratava. As organizações indígenas que fizeram o papel do governo de esclarecê-los”, relatou a coordenadora de Ciência e Educação da Coica, Tabea Casique Coronado, do povo Ashaninka do Peru.
Diante das dificuldades e do impacto cultural que a pandemia tem provocado, o presidente da Organización Regional de los Pueblos Indígenas del estado Amazonas (Orpia), Eligio Da Costa Evaristo, da Venezuela, defendeu que os indígenas deveriam participar da elaboração de protocolos de saúde. “Acho que devemos ter um protocolo indígena próprio, um que fosse menos geral. Temos que ter um que considere os nossos conhecimentos ancestrais”, disse.
A emergência na fronteira
Uma iniciativa conjunta entre instituições de pesquisa do Brasil, Colômbia e Peru, incluindo a brasileira Fiocruz, criou a Rede Transfronteiriça Covid-19, liderada pelo biólogo de la Universidad Nacional de Colombia e pesquisador em Medicina Tropical, José Joaquín Carvajal. A rede armazena notas técnicas, boletins epidemiológicos, análises de áreas críticas e resultados de grupos de pesquisa, com documentos português e espanhol.
“Já nos reunimos com o Ministério da Saúde do Brasil e apresentamos uma proposta de intervenção do Alto Rio Negro, Alto Solimões e Alto Javari, que vai abranger também o lado colombiano e o departamento de Loreto, no Peru”, informou Carvajal à reportagem da Amazônia Real. Um dos objetivos da rede é impulsionar a participação dos Estados, com as prefeituras de Tabatinga e Letícia, para a criação de uma sala situacional entre Brasil e Colômbia com a produção de informes epidemiológicos dos países.
A Colômbia chegou a declarar emergência sanitária na fronteira com o Brasil, entre as cidades de Letícia e Tabatinga, por causa do número de casos e da situação do Brasil. Em maio, a cidade de Letícia chegou a ter proporcionalmente, o maior número de casos de coronavírus da Colômbia (94 a cada 10 mil habitantes). Muitos eram importados do Brasil. Com isso, o país vizinho reforçou a presença de militares no local e tornou mais rígidas as regras de trânsito de pessoas no local.
“Em Letícia, o diferencial é que existe uma testagem mais eficiente na população, daí o índice de infectados ser bem maior. Aqui, em Tabatinga, voltou ao ‘normal’ e não se tem uma testagem como lá. Se em uma casa existe uma pessoa contaminada, toda família é testada. Isso fez a grande diferença no número de casos. Em Tabatinga, podemos ter muito mais contaminados do que Letícia, porém, não se tem esse registro eficaz de testagem”, avaliou a a bióloga Taciana de Carvalho Coutinho, colaboradora do Núcleo de Estudos Socioambientais do Amazonas (Nesam), da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
“Parece que do dia para noite o vírus arrumou a mala e foi embora de Tabatinga. Quando você passa pela fronteira, a visão é de outro panorama. Do lado brasileiro, não se tem mais controle das ações, fiscalização nenhuma. Em Letícia, para entrar, é preciso explicar o porquê você está indo e o que vai fazer lá. São duas dinâmicas de combate e enfrentamento totalmente diferentes e que, na verdade, deveriam caminhar juntas, porque estamos em constante contato”, acrescentou Taciana Coutinho.
Ainda na Colômbia, 44 povos indígenas foram afetados pela covid-19, sendo que os Tikuna, também presentes no Brasil, concentram o maior número de casos, totalizando 311, de acordo com o último boletim da Coica. Entre os afetados ainda estão, Witoto, Kokama, Desano, Tukano, Kuripako, Piratapuya, Tuyuca e Wanano, todos com registro no Brasil. De acordo com a Organizacion Nacional Indígena de Colombia, mais de 400 mil famílias indígenas seguem em risco de contágio.
As situações em outros países também são alarmantes. No Peru, o sistema de saúde enfrentou no início de junho escassez de oxigênio, comprometendo o tratamento de doentes graves. O governo peruano declarou o oxigênio como “recurso estratégico”. O país entrou em confinamento três meses, com toque de recolher noturno e fronteiras fechadas.
O Equador, foi o primeiro país da América Latina a entrar em colapso sanitário e, no dia 11 de março, o governo do presidente Lenín Moreno declarou estado de emergência sanitária, pois o sistema de saúde estava sobrecarregado e as funerárias não conseguiam mais dar conta dos enterros. Imagens de caixões e cadáveres sendo abandonados nas ruas da segunda maior cidade do país, Guayaquil, foram exibidas mundialmente. Foi preciso o governo intervir para recolher e enterrar os mortos do novo coronavírus e outras doenças.
O contexto urbano na fronteira
Para a bióloga Taciana de Carvalho Coutinho é importante entender que para os indígenas Kokama não existe uma fronteira de divisão entre os povos brasileiros, colombianos e peruanos. Segundo ela, esse povo faz parte da etnia que mais teve mortes não contabilizadas de maneira correta, além de não serem incluídas no boletim oficial do Distrito Sanitário (Dsei) do Alto Solimões. “A luta deles tem sido diária para a distribuição de alimentos, acompanhamento das lideranças e uso com medicamentos caseiros”, disse.
Atualmente, o trabalho do Núcleo de Estudos Socioambientais do Amazonas (Nesam) da UEA, que forma uma rede de pesquisa sediada no Alto Solimões desde a sua criação, em 2014, envolve a parceria com mulheres indígenas Tikuna em Benjamim Constant. São elas que distribuem álcool em gel em comunidades. “Como são indígenas, a entrada delas é permitida. O próximo passo é iniciar a distribuição de 300 cestas básicas durante seis meses para 300 famílias e estudantes indígenas, que são os mais necessitados. A UEA atende a mais 500 alunos indígenas das etnias Tikuna, Kokama, Kambeba, Kaixana, Marubo, Matis e Kanamari. Eles não recebem nenhum apoio do governo federal e, infelizmente, são invisíveis aos projetos de políticas públicas, daí a distorção nos registros”, disse Taciana Coutinho.
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