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ToggleEm 21 de fevereiro, enquanto o exército ruandês intensificava sua invasão da República Democrática do Congo (RDC), John Legend subiu ao palco em Kigali, a capital de Ruanda. Lá, o cantor e compositor estrelou um concerto do Move Afrika, produzido pela Global Citizen, a ONG internacional que representa as elites globais, a Otan e a ordem mundial corporativa, e que se autodenomina “o movimento que está mudando o mundo”.
O futuro que a Global Citizen apregoa é uma rede sem fronteiras de alianças público-privadas, onde oligarcas, corporações globais e a Organização Mundial do Comércio administram o mundo de forma lucrativa em nome da equidade, da sustentabilidade e da defesa do clima. É o futuro prometido na Agenda de Davos e no Pacto para o Futuro da ONU, aprovado pela Assembleia Geral da ONU em 2024. (Rússia, Bielorrússia, Irã, Nicarágua, Coreia do Norte, Sudão e Síria se opuseram ao pacto por considerá-lo uma ameaça à soberania nacional).
A Global Citizen não arrecada nem distribui recursos; realiza campanhas globais de “conscientização” para gerar consenso global — neste caso, para a guerra indireta que o Ocidente trava há décadas pela incomparável riqueza em recursos da República Democrática do Congo, que já deixou milhões de congoleses mortos e o restante da população do país com uma das rendas anuais per capita mais baixas do mundo.
Entre os parceiros corporativos da ONG estão gigantes tecnológicos como PayPal, Cisco, WorldWide Technology, Verizon e YouTube (Alphabet/Google), todos eles amplamente dependentes dos minerais extraídos da RDC. Outros, como o Citibank, são pouco conhecidos por seu compromisso com os direitos humanos; de fato, o Citibank é citado no relatório de 2001 de investigadores da ONU sobre o tráfico ilegal de recursos na RDC.
O Conselho Diretor Global da Global Citizen inclui executivos do Citibank, Cisco, Delta e uma longa lista de administradores de ativos globais, junto a ex-primeiros-ministros da Noruega e da Suécia, altos funcionários de agências da ONU e representantes de ONGs estreitamente aliadas e apoiadas por bilionários, como a Open Society Foundations, de George Soros, e a Fundação Bill e Melinda Gates.
Seus Conselhos Nacionais e Regionais demonstram um interesse especial na África, o continente mais rico em recursos do mundo. As elites da Europa, Canadá, Austrália e África estão bem representadas, mas figuras da América Latina e da Ásia não, apesar da crescente presença da Global Citizen nesses continentes. Em novembro de 2025, a ONG viajará ao Brasil com o evento “Global Citizen: Amazônia, o primeiro concerto de impacto mundial na Amazônia”, durante a COP25 da ONU.
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Um concerto de impacto? Que tipo de impacto? Até agora, foi prometido aos participantes uma seleção de “artistas globais e locais” que “celebrarão os principais compromissos da COP, destacarão os líderes indígenas e amplificarão as campanhas de ação climática”. Fora isso, os detalhes são vagos. “Mais informações em breve”, declara a Global Citizen.
A linguagem extremamente insossa e vazia que preenche o site da ONG parece claramente destinada a disfarçar qualquer conflito ou contradição. Mas o pano de fundo ensanguentado do concerto da Global Citizen em Kigali era impossível de ignorar.
John Legend: o “Cidadão Global” como líder da elite
Não deveria surpreender que John Legend tenha se apresentado em Kigali enquanto as tropas ruandesas avançavam na República Democrática do Congo, continuando o genocídio de 30 anos contra o povo congolês. Assim como Kagame, o cantor foi cultivado por mais de uma década como um líder de alto nível da elite neoliberal global. Em 2012, o Fórum Econômico Mundial, com sede em Davos, nomeou Legend como membro de seu Fórum de Jovens Líderes Globais. Em fevereiro, a Global Citizen anunciou em sua página no Instagram que três artistas incríveis, incluindo John Legend, a acompanharam em Davos.
Embora em algumas ocasiões tenha se manifestado a favor dos direitos humanos dos palestinos, Legend optou por se apresentar na Convenção Nacional Democrata de agosto de 2024 em apoio à então vice-presidente Kamala Harris, enquanto ela assumia a responsabilidade pela política genocida da administração Biden em relação à sitiada Faixa de Gaza.
Durante sua visita em 22 de fevereiro ao Memorial do Genocídio de Kigali, Legend denunciou a desumanidade do homem para com o homem, comparando o Genocídio de Ruanda com o Holocausto e com o genocídio dos nativos americanos, mas omitiu qualquer menção a Gaza ou ao Congo — genocídios que não receberam o status oficial conferido pelas acusações penais e pelos tribunais internacionais controlados pelo Ocidente.
A “lenda” emprestou seu prestígio a inúmeras produções insossas da Global Citizen. Em 2020, se apresentou e atuou pelo segundo ano consecutivo no Prêmio Global Citizen de Ativismo, que homenageou o movimento Black Lives Matter, o filantropo bilionário Warren Buffett e a Sesame Workshop de Vila Sésamo. O que mais poderia fazer qualquer organização para apoiar o status quo?
Diante das críticas por sua atuação em Kigali, Legend insistiu que não queria limitar as oportunidades econômicas de nenhum país por discordar de seu governo. No entanto, em 2019, apoiou uma proposta de boicote de Hollywood aos estados dos EUA que haviam promulgado restrições ao direito ao aborto. Como democrata leal, fez campanha ativamente por Barack Obama, Joe Biden, Kamala Harris e muitos dos candidatos do partido nas eleições de menor escala, ao mesmo tempo em que rompeu vínculos pessoais com seu ex-colaborador artístico, Kanye West, por seu apoio a Donald Trump. “O dinheiro manda”, disse Legend sobre seu boicote aos estados com líderes republicanos antiabortistas.
Colocando seu talento a serviço da Otan na cerimônia do Grammy de 2022, Legend estreou seu hino de libertação dos escravos, “Free”, em uma apresentação coreografada que contou com músicos ucranianos e com o presidente Volodymyr Zelensky pedindo apoio militar em uma tela de fundo maior que a própria vida.
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No site oficial do Grammy, a Academia Nacional de Artes e Ciências da Gravação promoveu simultaneamente a campanha da Global Citizen, Stand Up for Ukraine, que incentivou seus milhões de seguidores a participarem de “uma das maiores campanhas digitais nas redes sociais, compartilhando por que apoiam a Ucrânia e os refugiados em todos os lugares”.
Alguns dias após a cerimônia de premiação, a Global Citizen organizou uma manifestação online de propaganda a favor da guerra por procuração na Ucrânia, apresentando uma série de mensagens em vídeo de uma longa lista de celebridades, entre elas Julian Lennon interpretando o hino pacifista de seu pai, “Imagine”, em uma sala iluminada por velas — a serviço da máquina militar da Otan.
Um dia depois da manifestação nas redes sociais, a Global Citizen concluiu seu festival de propaganda com uma manifestação presencial na Polônia, um dos países mais entusiásticos defensores da guerra dos Estados Unidos contra o capital ocidental e as corporações globais.
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Convocada pela presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e pelo primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, a ação terminou com uma grande cúpula global de promessas de doações, na qual governos e empresas comprometeram-se com 4,6 bilhões de dólares em subsídios e 5,5 bilhões de dólares em empréstimos para ajudar refugiados e deslocados internos ucranianos. Entre os doadores estavam a Comissão Europeia, o Canadá e uma série de países europeus. Entre os credores, figuravam o Banco Europeu de Investimentos e o Banco de Desenvolvimento do Conselho da Europa. Não estava claro a quem seriam destinados os empréstimos, quem os pagaria nem como.
Coca-Cola, Nestlé, Cisco, Google e Bridgewater Associates — o maior fundo de hedge do mundo — estavam entre as corporações globais que contribuíram para demonstrar que também podiam ser bons cidadãos globais.
Por tudo isso, a Global Citizen ganhou um Prêmio Anthem, sendo uma ONG global autoproclamada que faz o bem e cuja missão é “amplificar as vozes que provocam mudanças globais” em apoio a “uma sociedade movida por propósito”.
Claro, não poderia haver maneira melhor de promover uma missão tão nobre do que apoiar a guerra por procuração da Otan na Ucrânia, que deixou um país em ruínas, enquanto se musicaliza uma guerra por recursos no coração da África — uma guerra que já deixou milhões de mortos e uma nação em caos, enquanto seu principal instigador dançava ao som de John Legend, banhado em luz vermelha e azul, com as palavras “Global Citizen” estampadas em seu peito.

Paul Kagame dirige um laboratório para a elite ocidental
O presidente ruandês, Paul Kagame, é um dos favoritos da elite global. Ele se reúne com ela anualmente no Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, embora neste ano tenha permanecido à margem da tertúlia neoliberal, presumivelmente para gerir a última fase de sua guerra na República Democrática do Congo. Sob a direção de Kagame, Ruanda tornou-se um verdadeiro laboratório de experimentos tecnocráticos em governança global, impulsionados por Davos — desde identificações digitais e “cidades sustentáveis” até vacinação obrigatória ou mesmo forçada. Em 2022, um ruandês declarou à Deutsche Welle que foi algemado para ser vacinado. Outros fugiram do país para evitar serem injetados contra a própria vontade.
Em 2022, Kagame iniciou negociações com os primeiros-ministros do Reino Unido — Boris Johnson, Liz Truss e, posteriormente, Rishi Sunak — para terceirizar a transferência de migrantes oriundos de zonas do Oriente Médio devastadas pela guerra para Ruanda, onde seriam processados, solicitariam asilo e seriam reassentados. Dessa forma, demonstrou sua disposição em oferecer seu país como depósito para o excedente humano do Ocidente. Em 2023, após dois anos de protestos e litígios, um tribunal do Reino Unido decidiu que Ruanda não era um destino seguro para deportar solicitantes de asilo, e o primeiro-ministro Keir Starmer declarou o plano “fracassado” em seu primeiro dia de mandato.
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Kagame também colocou a Força de Defesa de Ruanda a serviço de objetivos militares ocidentais no continente africano — mais visivelmente agora como executor armado dos interesses da TOTAL Energies da França em Moçambique.
Em 2017, a Rede de Valores Mundiais do influenciador sionista e vendedor de brinquedos sexuais, o “rabino” Shmuley Boteach, entregou a Kagame um prêmio por sua Amizade Destacada com o Povo Judeu, em nome do magnata dos cassinos e financiador pró-Netanyahu, Sheldon Adelson, e sua esposa, Miriam. Um ano depois, Israel abriu uma embaixada em Ruanda, e o Times of Israel anunciou a iniciativa como “uma tentativa de fortalecer sua presença diplomática na África”. Desde 1995, Israel e Ruanda entrelaçaram e reforçaram narrativas que usam as violações das quais foram vítimas em décadas passadas para justificar os crimes que operam atualmente.

Assim como Israel, o grupo de Davos ignora décadas de documentação sobre os crimes de Kagame na República Democrática do Congo, desde que ele continue impulsionando sua agenda. Essa fascinação também sobrevive a inúmeros relatórios sobre seus extremos repressivos em Ruanda, incluindo o uso do software de vigilância israelense Pegasus, sua repressão transnacional, seus assassinatos de críticos dentro e fora do país, e suas vitórias eleitorais completamente inverossímeis — como sua eleição com 99% dos votos em 2024.
Em contrapartida, Vladimir Putin foi proibido de comparecer à reunião anual de Davos em 2022, e a embaixada de fato da Rússia em Davos foi fechada depois que o Fórum Econômico Mundial baniu a participação de autoridades e empresários russos.
A Corte Penal Internacional acusou duvidosamente Putin de evacuar milhares de crianças quase exclusivamente russófonas da zona de guerra no leste da Ucrânia para território dentro da Federação Russa, mas jamais chegou perto de Kagame.
A guerra de Ruanda na República Democrática do Congo
John Legend afirmou estar a par do que ocorre na República Democrática do Congo, mas o que ele realmente sabe sobre o conflito? Por que nem ele, nem a Global Citizen estão tão preocupados com as tropas ruandesas na República Democrática do Congo quanto estão com as tropas russas na Ucrânia?
Será que sequer se deram ao trabalho de considerar a vasta documentação produzida por investigadores da ONU sobre a invasão, ocupação, massacres e atrocidades cometidas por Ruanda na República Democrática do Congo — grande parte das quais foi resumida pela própria imprensa tradicional?
Genocídio silencioso: ONU denuncia catástrofe infantil na República Democrática do Congo
No dia anterior ao concerto de Legend em Kigali, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução que exige que a milícia ruandesa M23 cesse imediatamente as hostilidades, retire-se de todas as zonas sob seu controle e revogue por completo o estabelecimento de administrações paralelas ilegítimas no território da República Democrática do Congo. Também instou Ruanda a retirar todas as Forças de Defesa de Ruanda (FDR) da República Democrática do Congo e a deixar de apoiar o M23.
O presidente Kagame continua negando a presença de tropas ruandesas na República Democrática do Congo, mas o exército invasor e ocupante de Ruanda está sob o comando direto do M23. Além disso, o relatório do Grupo de Especialistas da ONU de maio de 2024 sobre a República Democrática do Congo documentou a presença de 4 mil tropas ruandesas no Congo — mais do que o próprio M23. Esse relatório também declarou:
“As intervenções e operações militares da RDF nos territórios de Rutshuru, Masisi e Nyiragongo foram além do simples apoio às operações do M23, tornando-se uma intervenção direta e decisiva, o que permitiu à RDF e ao M23 dominar militarmente o Petit Nord e expandir-se rapidamente até as margens do lago Edward. O uso de tecnologia e equipamento militar avançados fortaleceu as operações conjuntas do M23 e da RDF, alterando a dinâmica do conflito, inclusive com a imobilização de todos os ativos aéreos militares das FARDC”.
Já o relatório do Grupo de Especialistas de dezembro de 2024 afirmou:
“O M23 permaneceu sob o comando militar geral do ‘General’ Sultani Makenga, que continuou recebendo instruções e apoio da RDF e da inteligência ruandesa… Cada unidade do M23 contava com a supervisão e o apoio das forças especiais da RDF… O comando de operações específicas e o manuseio de armamento de alta tecnologia por parte da RDF foram cruciais para a conquista de novos territórios. O apoio sistemático da RDF ao M23 e seu controle de fato sobre suas operações continuaram.”
Um fluxo constante de relatórios de atrocidades da RDF e do M23
Os relatos sobre as atrocidades do M23 vêm surgindo continuamente desde que a milícia começou a devastar o Congo entre 2012 e 2013. O relatório de especialistas da ONU de 2012 afirmava que o Chefe de Defesa de Ruanda, James Kabarebe, estava no topo da cadeia de comando do M23.
Em 2014, um relatório do Conselho de Segurança das Nações Unidas afirmou que o M23 foi responsável por assassinatos em massa de civis, estupros, homicídios e mutilações de mulheres e crianças, deslocamentos forçados e recrutamento forçado de crianças.
Em 26 de janeiro, Vivian van de Perre, Representante Especial Adjunta para a Proteção e Operações da missão de manutenção da paz das Nações Unidas na República Democrática do Congo, informou que o M23 e as Forças de Defesa de Ruanda haviam lançado um ataque contra a cidade estrategicamente importante de Goma e que “esses ataques continuam devastando a cidade, matando, ferindo, traumatizando e deslocando civis, além de agravar a crise”.
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Durante a primeira semana de fevereiro de 2025, o vice-chefe da missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo informou que quase 3 mil pessoas haviam morrido depois que o M23 tomou Goma, capital da província de Kivu do Norte da República Democrática do Congo.
Em meados de fevereiro de 2025, depois que o M23 tomou Bukavu, capital da província de Kivu do Sul da República Democrática do Congo, o escritório de direitos humanos da ONU acusou o grupo de execuções sumárias de crianças, ataques a hospitais e armazéns de ajuda humanitária, violência sexual, recrutamento infantil e forçado, além de ameaças a jornalistas, defensores dos direitos humanos e membros de organizações da sociedade civil.
Esta é apenas uma breve lista das atrocidades cometidas pelo M23 — e elas não são novidade. Pesquisadores da ONU vêm documentando atrocidades e saques de recursos cometidos por tropas ruandesas e ugandesas e suas sucessivas milícias “congolesas” desde que Ruanda e Uganda invadiram a República Democrática do Congo (então Zaire) em 1996 e, posteriormente, em 1998.
Entre esses documentos estão o Relatório das Nações Unidas sobre os abusos de direitos humanos na República Democrática do Congo de 1993 a 2003, o Relatório Garreton de 1998, os Relatórios das Nações Unidas sobre a exploração ilegal dos recursos naturais e outras formas de riqueza na República Democrática do Congo de 2001, 2002 e 2003, além de outros relatórios bienais produzidos entre 2004 e 2024.
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O Relatório de Mapeamento das Nações Unidas de 2010 afirmou que sua documentação poderia ser usada por um tribunal competente para julgar Ruanda por genocídio contra refugiados hutus na República Democrática do Congo.
Em 2007, a Comissão Internacional de Resgate estimou 5,4 milhões de mortes adicionais desde a invasão de Ruanda e Uganda em 1998, sendo a maioria causada por deslocamento e doenças.
Em novembro de 2024, a Organização Internacional para as Migrações (OIM) da ONU estimou um total de 6,9 milhões de deslocados internos na República Democrática do Congo, a grande maioria localizada nas províncias orientais, fronteiriças com Ruanda e Uganda. Em meados de janeiro, a agência da ONU para refugiados estimou que outras 230 mil pessoas haviam sido deslocadas desde o início do ano e, durante a primeira semana de fevereiro, o Programa Mundial de Alimentos relatou 700 mil deslocados apenas na cidade de Goma.
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* Imagens na capa:
– Campo de deslocados internos na República Democrática do Congo: Eskinder Debebe / ONU
– Global Citizen: Mark Garten / ONU
– Paul Kagame: Reprodução / Flickr