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Hans Ertl: o cineasta que escalou a nona montanha mais alta do mundo

Alfonso Gumucio

Tradução:

O personagem de Hans Ertl é um dos mais curiosos na história do cinema na Bolívia. Nós que trabalhamos com cinema sabemos, e os vinculados à Guerrilha do Che também conhecem o vínculo, mas o grosso de desmemoriados e ignaros deste país não têm ideia de quem era ele.

O jovem Hans Ertl foi um dos 47 câmeras de Leni Riefenstahl, a realizadora predileta de Hitler, em Olympia, do documentário sobre os Jogos Olímpicos de 1936. Embora seja difícil saber com certeza, teria aportado a essa obra tomadas subjetivas muito audazes e com algumas proezas técnicas e artísticas. Provavelmente era o câmera mimado de Riefenstahl por sua habilidade técnica, mas também por sua relação pessoal com a diretora, seis anos mais velha que ele. “Leni foi o grande amor de sua vida, meu pai o contou até seus últimos dias”, confessou ao jornalista Alfonso Daniels em 2008 sua filha Beatriz.

Com a mesma câmera Arriflex (um dos primeiros modelos da fábrica), com que Hans Ertl filmou na Alemanha, chegou a Bolívia por volta de 1954 ou 1955 para filmar com sua filha Mónica, Hito-Hito (1958, 94 minutos) na Amazônia boliviana, e depois Vorstoß nach Paititi (1962, 95 minutos), em castelhano simplesmente Paititi, um filme de exploração.

Tenho em algum lugar um livro publicado por Hans Ertl com fotografias da Bolívia, intitulado “Arriba Abajo”, uma edição cujos textos estão em castelhano, alemão e inglês. Na introdução, Hans Ertl se diz maravilhado pelos contrastes geográficos e as belezas naturais. “Meu desejo – diz – foi buscar maravilhas e retê-las nas minhas fotografias. Mas nem sequer a seleção mais escolhida pode dar uma imagem justa dessa natureza grandiosa na qual se faz patente a Criação”. Junto a uma fotografia de si mesmo escreve: “Radiantes de otimismo brilham os olhos desse jovem que encontrou uma nova pátria nesta terra hospitaleira”. Outra foto o mostra barbudo, sulcando as águas de algum rio do oriente em um pequeno bote sobre o qual instalou sua famosa Arriflex.

Hans Ertl decidiu ficar na Bolívia, comprou uma fazenda em Concepción no norte de Santa Cruz, deixou o cinema e entregou sua câmera Arriflex para sua filha Mónica, que a vendeu a Jorge Ruiz e Nicolás Smolij quando eles formavam parte do Instituto Cinematográfico Boliviano (ICB) e tinham planos de fundar a empresa “Socine”. A câmera foi vendida mais tarde a cineastas peruanos.

Mónica Ertl era militante do Exército de Libertação Nacional (ELN) e justiçou o cônsul da Bolívia em Hamburgo, Coronel Roberto Quintanilla, o responsável pela ordem de cortar as mãos do cadáver do Che. Em 12 de maio de 1973, Mónica morreu em um enfrentamento com as forças de repressão do governo do General Banzer.

Tudo isso nós já sabíamos, ou sabem aqueles que se interessam por esses temas. No entanto, é menos conhecida a aventura de Hans Ertl no Himalaia.

Contrariamente ao que conhecíamos, Hans Ertl não veio diretamente da Alemanha para ficar na Bolívia com a queda do nazismo, mas realizou em 1953 no Himalaia um longa-metragem documental sobre a Nanga Parbat, a nona montanha mais alta do mundo (8.125 metros) acompanhando a expedição austríaco-alemã integrada por vários cientistas e alpinistas, entre eles Peter Aschenbrenner, Karl Maria Herrligkoffer, Walter Frauenberger, Fritz Aumann, Albert Bitterling, Otto Kempter, Kuno Rainer e Hermann Buhl.

Este filme é importante por várias razões. É a primeira obra dirigida por Hans Ertl, que assumiu além da fotografia, a montagem, o desenho geral e tudo o mais, menos a música que foi composta por Albert Fischer. A trilha sonora é muito rica, porque inclui sons dos ambientes e som sincrônico nos diálogos dos expedicionários, nas cenas de convivência nos acampamentos, as comunicações por rádio, e outros momentos em cada etapa da escalada. Muitas são cenas dramatizadas, que implicam direção de atores e encenação, o que contribui para sublinhar o dramatismo.

Até então Hans Ertl havia trabalhado em meio a grandes equipes de produção, junto a dezenas de técnicos, mas desta vez enfrentaria um duplo desafio: ser o único técnico e responsável artístico do documentário, e por outro lado filmar em condições extremas de frio e de altitude com um equipamento muito reduzido, carregando as latas de filme (com a ajuda dos sherpas até certo ponto) através de uma empinada e difícil subida.

Me atrevo a pensar que depois de semelhante experiência Hans Ertl decidiu viver em uma zona quente pelo resto dos seus dias: o norte de Santa Cruz.

Nanga Parbat (90 minutos) começa com uma homenagem às expedições de 1895, 1934, 1937 e 1950 que tentaram alcançar, sem ter conseguido, o topo da montanha. Nessas tentativas morreram 31 alpinistas. Os expedicionários de 1953, apresentados no princípio do filme com seu nome, foto e função, embarcaram no “Victoria Roma” com destino a Karachi. A partir dali o relato transcorre segundo a cronologia da viagem, pois não havia melhor maneira de converter o espectador em um cúmplice da aventura.

Depois de desembarcar em Karachi, os expedicionários atravessam em trem uma parte do Paquistão, até Rawalpindi, onde tomam um avião que os levará até Gilgit, aos pés do colosso. São interessantes as tomadas feitas por Hans Ertl da arquitetura milenar e da população, à qual filma com admiração e respeito, muito longe daqueles preceitos da raça ariana “pura” que era promovida pelo nazismo poucos anos antes.

Por causa do peso que significava levar os rolos de filme e o material de filmagem, Hans Ertl foi muito cuidadoso com tudo o que filmava. Cada plano foi meticulosamente pensado e preparado. A montagem era feita na câmera à medida que filmava o percurso. Como se sabe, é o trajeto que importa e não apenas a chegada à meta.

O documentário inclui cenas do recebimento caloroso do presidente e outras autoridades do Paquistão, que apoiam com uma caravana de jipes para levar a carga (711 caixas de madeira) até Talichi e depois em mulas até o primeiro acampamento ao pé do Nanga Parbat, que se converterá na base de operações.

A partir dali tudo é esforço humano, tanto dos expedicionários como dos sherpas que os acompanham e que conhecem o caminho, embora não haja propriamente caminho, mas um pesado manto de neve que cobre tudo e refulge com tanta intensidade que queima a vista e também as tomadas do filme. A habilidade técnica de Hans Ertl é bem calibrada em todo momento com o uso de filtros especiais que ele às vezes troca no curso de uma mesma tomada.

À  medida que a expedição salta obstáculos topográficos, Hans Ertl mostra em um gráfico a altitude de cada etapa e a distância até o seguinte acampamento (cinco em total, o último a 6 900 metros), e em alguns descansos aproveita para descrever a cultura dos sherpas (sua música, suas danças) e a  convivência cotidiana com eles, embora a partir de certo momento os sherpas já não aparecem e apenas ficam diante do colosso do Himalaia os expedicionários alemães e austríacos. Hans Ertl aparece pouco, mas graças a essas aparições podemos deduzir que levava duas câmeras Arriflex 35mm e várias lentes especiais.

É a partir do 30º minuto que o grupo entra na parte mais desafiante da expedição, e a cada metro que avança se multiplicam os riscos e o esforço. Nessa imensidade branca, os homens aparecem como pequenos pontos escuros e frágeis. Não são menores as proezas do próprio Hans Ertl para filmar desde lugares de difícil acesso e em ângulos que mostram a periculosidade do trajeto. Há planos magníficos que é difícil explicar como ele conseguiu. Inclusive há cenas com montagem em paralelo, perfeitamente coordenadas.

Passo a passo, afundando na neve até os joelhos, a expedição assenta etapas de avanço nos acampamentos no caminho de subida. Quando as avalanches de neve se precipitam sobre eles, Hans Ertl não deixa de filmar, se expõe. De alguma maneira organiza sua própria expedição individual, para conseguir tomadas do grupo desde longe. Consegue transmitir assim, com a composição de primeiros planos abertos da paisagem, a sensação de imensidão esmagadora.

A última etapa é dramática e aparece como ficção em um estilo expressionista. Exaustos e afetados severamente pelo frio e a altitude, os expedicionários desistem de chegar à meta que têm à frente, a 1.300 metros de distância, aparentemente muito perto, mas na realidade muito longe no esforço necessário para coroá-la. Enquanto todos regressam aos acampamentos mais seguros, só Hermann Buhl persiste até o final e consegue chegar ao cume às 7 de noite, sem oxigênio, mas ajudado por metanfetaminas e mate de coca (que Hans Ertl havia trazido de uma primeira visita à Bolívia), gravando assim seu nome na história como o único homem a coroar um pico de oito mil metros sozinho e sem oxigênio. Tardaria depois 24 horas para regressar ao acampamento, com os dedos dos pés necrosados. Perdeu dois dedos para culminar sua façanha.

Hans Ertl narra de maneira magistral esta aventura do homem diante da natureza. Encontro um grande paralelo entre essa atitude diante do cinema e da vida, com Werner Herzog, que costuma encarar desafios similares. Ambos cineastas alemães que teriam tido muito do que falar.

Dado curioso: em 1986 foi feito The Climb um largo-metragem de ficção dirigido por Donald Shebib, no qual se reconstrói a expedição de 1953. O personagem de Hans Ertl foi interpretado por Guy Bannerman, ator canadense de televisão.

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O cume é a metade do caminho.

*Colaborador de Diálogos do Sul, de La Paz-Bolívia


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Alfonso Gumucio Boliviano. Cineasta e documentarista. Especialista em comunicação para o desenvolvimento com experiência mundial em comunicação participativa, mobilização social e desenho da estratégia. Foi Diretor de Comunicação da UNICEF na Nigéria e no Haiti

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