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Rumba, conga, mambo e chachachá: Em Cuba, todo mundo dança?

Na ilha, há aqueles que têm as condições de exibir a dança com valores culturais e aqueles que, talvez não intencionalmente, a deformam
Ismael S. Albelo
La Jiribilla

Tradução:

* Atualizado em 07/06/2022 às 14h01.

É mundialmente sabido que Cuba é um país de música e dança. A fusão do espanhol e do africano produziu esse fértil resultado do cubano musical e dançante que em apenas dois séculos entregou ao patrimônio mundial o danzón, a rumba, a conga, o mambo e o chachachá, entre outros ritmos e danças populares.

Depois de 1959, quando o Estado começou a se preocupar com a verdadeira cultura nacional, a dança foi privilegiada com o surgimento de três companhias profissionais de diferentes linhas estéticas: o Ballet Nacional de Cuba — que se reestruturou depois da dissolução do anterior Ballet de Cuba — o Departamento de Dança Moderna, hoje Dança Contemporânea de Cuba; e o Ballet Folclórico de Oriente.

Com a passagem do tempo e o lógico desenvolvimento social, o surgimento das Escolas de Arte e o apoio ao movimento de artistas amadores, os grupos de dança proliferaram por todo o país, surgiram novos ritmos como o mozambique e o pilón, expandiu-se o cassino havanês por todo o país, os carnavais regionais multiplicaram suas comparsas, e tanto o talento profissional como o espontâneo tiveram cabida e avanços significativos, em qualidade e – sobretudo – em quantidade. 

Mas os embates da sociedade contemporânea fizeram com que proliferasse a formação de grupos liderados por entusiastas bailadores —não bem “bailarinos”— que, aproveitando essa congênita habilidade do cubano de mover-se no ritmo da dança, foram aglutinando outros bailadores e bailadoras em grupos de dança plenos de espontaneidade e frescor, mas deficitários em códigos verdadeiramente artísticos, onde primam manifestações tendentes ao erotismo, a escassez de vestuário e o movimento desordenado com a intenção de provocar no espectador – basicamente forâneo – desejos de diversa índole… menos cultural.

Na ilha, há aqueles que têm as condições de exibir a dança com valores culturais e aqueles que, talvez não intencionalmente, a deformam

Wikimedia Commons
Um fenômeno que prolifera é o de muitas companhias profissionais ou semiprofissionais que estão solicitando e fundando academias próprias

Por outra parte, a falta de recursos materiais e às vezes até humanos, tratada de paliar pelo Estado com uma proteção social que cobre a maior parte das necessidades dos artistas para seu trabalho e suas vidas, incidiu em que os mais de 60 grupos profissionais adscritos ao Ministério de Cultura não possam se desenvolver amplamente, vendo reduzidas suas apresentações cênicas, suas produções, seus locais de ensaio e outras necessidades para conseguir refletir tudo o que é necessário para a formação de um bailarino profissional durante seis ou oito anos de estudos em nossas Escolas de Arte.

Dada a condição socialista de tratar de garantir o desenvolvimento espiritual de nossa população, os números foram crescendo protegidos pelo Estado e, enquanto que os resultados em quantidade subiram, em muitos casos a qualidade foi baixando, o que não corresponde ao interesse fundamental das instituições reitoras da vida cultural nacional.

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Outro fenômeno que prolifera é o de muitas companhias profissionais ou semiprofissionais que estão solicitando e fundando academias próprias, que outorgam credenciais profissionais aos que nela se formam, que podem ingressar depois nesses mesmos grupos ou em outros de todo tipo…, ou no exterior.

Do mesmo modo, um empreendedor interessado em servir-se de nossas habilidades dançantes encontra um destro bailador, capaz de organizar junto a outros bailadores uma “roda de cassino”, transformada em “coreografia pseudo-profissional”, propô-lo a um hotel, um centro noturno ou a uma festa privada, e vendê-la como “produto cultural cubano”, em especial ao visitante estrangeiro, que ao ver a paixão de nossos dançantes, e sem reparar demasiado nos desenhos coreográficos, no vestuário ou na propensão ao obsceno, aplaude muito e leva essa imagem distorcida do que é a “cultura cubana”.

Há que discernir, em primeiro lugar, o que pode ser uma dança profissional de uma amadora. A primeira possui códigos estéticos e artísticos que devem diferenciar com evidência um trabalho que contém valores culturais mostrados com arte, enquanto que o amador – que também tem sua dose de talento a partir dos instrutores de arte de nossas  Casas de Cultura ou centros docentes, de trabalho ou militares— pratica a dança como ação colateral aos seus interesses vitais, motivo pelo qual a espontaneidade está muito mais à tona que nos artistas cênicos.

O Estado cubano não discrimina nem desampara nenhum dos seus cidadãos, mas deve observar que se pode chegar – se já não chegou! – a sobrecarregar seus orçamentos, que não são muito amplos, para satisfazer todas as propostas dançarias sem levar em conta, em primeira instância, dois fatores fundamentais para o desenvolvimento próspero e sustentável que propomos: produção e qualidade.

Nossos teatros não podem satisfazer todas as propostas de dança criadas no país, mas há ocasiões em que se desperdiçam oportunidades propostas por esses “empreendedores por conta própria”, que vendem qualquer bagatela como “cultura” e que distorcem o verdadeiro empenho nacional.

Por que não aproveitar o talento de nossos grupos profissionais, que muitas passam meses sem produzir espetáculos e promover sua inserção suplantando esses “mercenários culturais”?  Isto não só beneficiaria a imagem de nossos verdadeiros valores culturais, mas também aos nossos artistas nos tão necessários aspectos econômico e promocional.

Há companhias que se inseriram neste empenho graças às vantagens do chamado “duplo vínculo”, mas ainda são escassas, e potencial para isso há em todo o país; inclusive se poderia empregar os alunos mais avançados de nossas Escolas de Dança em microprojetos derivados das companhias profissionais, para ir aportando a eles esses códigos artísticos que necessitam para o exercício de sua vida futura nos palcos. Assim se ajudaria e estimularia as jovens gerações e se ganharia terreno aos que fabricam “cultura para o turismo”.

Embora seja certo que “todo mundo dança” em Cuba, há aqueles que têm as condições de exibir nossa dança com valores culturais e há aqueles que, talvez não com não tão má intenção, a deformam, e para ser prósperos e sustentáveis não podemos permitir-nos gastar em vão tempo e dinheiro.

A imagem da cultura cubana é a coisa mais valiosa da nossa nacionalidade, e nela a dança possui um componente que não deve ser desprezado. Por sua projeção internacional tradicional, não devemos permitir dispersões, e nossas instituição irão velar por isso com olho crítico e objetivo, sem medo nem falsos compromissos, com a divisa que um dia me dissera esse monumento da dança cubana que é Alicia Alonso: “para mim só há dois tipos de dança: a boa… e a má”.

*Original de La Jiribilla, revista cultural cubana – Tomado de Cuba Escena – Direitos reservados.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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