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Alfonso Gumucio: Documentário de Mauricio Ovando, "Algo Queima" arde a memória

Neto do General Alfredo Ovando Candia, e filho do cineasta e ativista Alfredo, Mauricio Ovando salda contas com a memória familiar em documentário
Alfonso Gumucio

Tradução:

A memória é um labirinto cheio de incógnitas. Ninguém recordou tudo o que viveu. Algumas pessoas recordam episódios que não viveram. Abundam os estudos sobre memórias inventadas e memórias reais. A única memória relativamente fiel é a que está registrada no instante, no momento em que os fatos ocorrem, mas mesmo aí há um viés, uma forma de narrar, uma escolha dos limites do campo. 

Não importa que a memória sofra o desgaste do tempo ou seu caprichoso enriquecimento com o passar dos anos. Assim é: um produto de manipulações involuntários, de lembranças confusas, uma nebulosa de estrelas que as vezes brilham e logo se extinguem. A memória será sempre uma versão pessoal: o que fica quando já percorremos o labirinto no qual estamos presos.

Todos temos memórias não resolvidas e labirintos sem saída aparente. Temos dívidas pendentes com o passado que não conseguimos resolver ao longo de nossas vidas, ou que resolvemos parcialmente através de exercícios de catarse e cerimônias de exorcismo.

Neto do General Alfredo Ovando Candia, e filho do cineasta e ativista Alfredo, Mauricio Ovando salda contas com a memória familiar em documentário

Divulgação
Cartaz do documentário

Isso acontece em “Algo queima” (2018) o documentário de Mauricio Ovando que não entenderíamos se não situássemos o diretor em seu contexto familiar: neto do ex-presidente e Comandante em Chefe das Forças Armadas da Bolívia, General Alfredo Ovando Candia, e filho do cineasta e ativista social Alfredo “Bis” Ovando. O General Ovando foi presidente três vezes mediantes golpes militares e uma coo-presidência com René Barrientos. O curioso é que Ovando foi partícipe de um golpe de direita com Barrientos, mas “seu” golpe cívico-militar em 1969 foi de esquerda.

Por seu temperamento taciturno e sua reticência a defender-se publicamente, foram atribuídas ao longo de sua estada no poder responsabilidades em episódios históricos de grande magnitude: a morte de René Barrientos e assassinatos que aconteceram em fins da década de 1969, a execução do Che Guevara, os fuzilamentos de jovens guerrilheiros em Teoponte e o massacre de San Juan nas minas.

Barrientos e Ovando

A suas conquistas são menos lembradas, como a criação da fundição de estanho de Vinto e posteriormente, em 1969, a nacionalização da Gulf e a conformação de um governo de esquerda com jovens intelectuais probos e brilhantes como Marcelo Quiroga Santa Cruz, José Ortiz Mercado, Alberto Bailey Gutiérrez, Mariano Baptista Gumucio, Edgar Camacho Omiste, Oscar Bonifaz e José Luis Roca, entre outros.

Descrevo detalhadamente o anterior porque tenho a certeza de que muitos jovens de agora, atacados por uma amnésia coletiva arrepiante e submersos na tela de suas próteses eletrônicas, não têm ideia de quem foi Ovando, ou Torres, ou Paz Estenssoro… Não é piada: dei conferências a estudantes universitários (repito “universitários”), que não tinham a mais remota ideia de quem foi Marcelo Quiroga Santa Cruz ou Luis Espinal.  Por isso, contar-lhes quem era Ovando não está demais (embora tampouco leiam jornais, ou seja, que não lerão esta nota).

Enterro de Ovando

Mauricio Ovando não é um desses jovens, porque a história o rodeava desde que nasceu. Desde cedo esteve empapado de símbolos relacionados com o poder, como nas filmagens familiares da primeira parte de “Algo queima”, onde o vemos com o quepe militar ou o sabre do avô, ou armado de uma pequena escopeta que dispara rolhas. A referência militar e a vida política foram partes de sua vida e da de seus pais, Bis e Liliana.

Talvez esse filme devesse ser realizado por Bis, seu pai cineasta, mas foi o neto quem decidiu saldar contas com a memória familiar e fazê-lo de maneira que funcione como um exorcismo para todos: seus pais e seus irmãos. Isso requer uma grande dose de valentia, uma decisão desgarradora de enfrentar com sentido autocrítico o mais duro que pode viver uma família: a noção de que o avô que em casa era terno e carinhoso, em sua função política era implacável e tomava decisões que se traduziam em mortes violentas. 

Não é fácil saldar essas contas porque se corre um duplo risco: defender o avô e a família a qualquer custo adotando uma posição de negação, ou pelo contrário assumir as culpas como se fossem próprias e sofrê-las por toda a vida. 

De maneira inteligente e sentida, Mauricio Ovando consegue um equilíbrio à custa de muita dor e lágrimas. E o faz de maneira descarnada, criando ao longo do documentário um ritmo que vai crescendo alimentando a reflexão do espectador ao mesmo tempo que indaga “a verdade”, uma verdade que só podemos conhecer parcialmente, mas de maneira suficiente para deixar a impressão de que o personagem retratado tinha luzes e sombras. A cada um cabe avaliar quais pesaram mais na história.

A pesquisa de Mauricio Ovando, desencadeada a partir da morte de seu tio Marcelo em um acidente de aviação, começa em uma primeira sequência anterior aos títulos do filme, onde se estabelece quem era o general Ovando com imagens documentais de seu enterro em 1982. A primeira parte do filme inclui filmagens artesanais em Super 8mm que mostram a convivência familiar e algumas em 16mm que nos remetem à vida pública do personagem. Para o espectador talvez seja um pouco longa essa parte, embora para a família possa estar cheia de significados. 

As vozes da família constroem o relato enquanto observam essas imagens e analisam a vida do personagem com uma enorme abertura, para expressar sentimentos e adotar posições na medida em que avança a narração, com exceção de D. Elsa, afetada pelo idade e princípios de demência senil, mas também por um bloqueio defensivo que lhe impede indagar dentro de si mesma. 

O interessante é que o documentário se narra a si mesmo: o realizador inclui no campo do filme a revisão que faz dessas imagens e mais de uma vez introduz na edição o momento em que o filme se queima na janela do projetor, algo que costumava acontecer e que os jovens de hoje não entenderiam. Esses fotogramas que ardem pelo calor da lâmpada nos introduzem no tema de “Algo queima”: o fogo da memória, um leit motiv ao longo do documentário.

Se os espectadores estavam distraídos, um giro no relata os tirará de seu adormecimento. Apoiada por uma trilha sonora muito bem trabalhada, o realizador corta abruptamente o relato familiar idílico para enfrentar-se cara a cara com uma realidade exterior que é adversa: tudo o que diz do avô pode ser resumido em uma palavra: assassino. 

Diante disso a indagação familiar é descarnada e serve de catarse. São extraordinariamente emotivos os testemunhos de Techy (a tia de Mauricio), de Bis (seu pai) e de Carolina (sua prima). A capacidade deles de analisar criticamente os fatos, mesmo que queimem no peito, faz do comentário uma obra magnífica de relato introspectivo e de honestidade intelectual. 

Nessa linha, a tomada final de um fósforo aceso na escuridão enquanto a voz de Mauricio trata de entender até onde chegou sua pesquisa, não é só comovente, mas magistral como expressão cinematográfica. 

Além disso “Algo queima” é uma demonstração de que se pode fazer bom cinema na Bolívia com orçamentos modestos (neste caso, 12 mil dólares).

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“Não importa o muito que sofreste, às vezes não querer deixar marchar certas lembranças”.
Haruki Murakami

*Colaborador de Diálogos do Sul, de La Paz, Bolívia


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Alfonso Gumucio Boliviano. Cineasta e documentarista. Especialista em comunicação para o desenvolvimento com experiência mundial em comunicação participativa, mobilização social e desenho da estratégia. Foi Diretor de Comunicação da UNICEF na Nigéria e no Haiti

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