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"Poeta não é uma profissão, é um castigo", diz Sérgio Vaz sobre os 30 anos de carreira

O poeta, que encontrou seu jeito de se comunicar, não tem o sentimento de dever cumprido, mas demonstra-se feliz com o caminho percorrido até aqui.
Karol Coelho Paula Rodrigues Léu Britto
Agência Mural de Jornalismo das Periferias

Tradução:

Sentado na laje do bar Zé Batidão, no Jardim Guarujá, zona sul de São Paulo, ele conta como é ser poeta. “Poeta não é uma profissão, é um castigo, porque talvez seja um cara ou uma mina que quer carregar a cruz nas costas, cruz dos outros e todas as causas. Acha que tem solução para tudo”.

Em 1971, o pai de Vaz veio para o bairro e esse bar era dele. Da cidade em que nasceu, Ladainha, no interior de Minas Gerais, tem poucas lembranças. “Voltei lá uma vez para conhecer, mas acho que sou dessa terra aqui. Sou da periferia de São Paulo”, afirma.

O gosto pela literatura nem sempre foi bem aceito. Ele lembra que quando jogava futebol, de várzea ou de salão, os caras falavam com uma conotação negativa “o cara é poeta, escreve poesia”. No entanto, ao lançar o primeiro livro “Subindo a ladeira mora a noite”, em 10 de dezembro de 1988, deixou de ter vergonha de dizer o que era. “Independente de ser bom ou ruim, eu sou poeta”, disse para si mesmo com a obra em mãos.

O poeta, que encontrou seu jeito de se comunicar, não tem o sentimento de dever cumprido, mas demonstra-se feliz com o caminho percorrido até aqui.

Léu Britto/Agência Mural
Sergio Vaz completou 30 anos de carreira

Houve um tempo que não gostava de poesia. “Tinha preconceito, né? Periferia, machismo. Achava também que era coisa de gente que falava difícil”. Mas, por meio das letras de músicas, descobriu as metáforas e se arriscou a compor. “Mas elas [as letras] já eram poesias. Não serviam para músicas porque não enquadravam nas métricas”.

Cheio de angústias, foi sobre elas que começou a escrever. “Sempre falava em liberdade, em conhecer o mundo. Até me achava meio estranho por isso: morar em um lugar onde as ruas não tinham asfalto, extremamente violento, e sonhando com o mundo”, reflete.

Desses anseios, nasceu em 2001 a Cooperifa, iniciativa cultural que iniciou com um sarau e desencadeou em diversas atividades literárias. O evento fez com que fosse conhecido não só pelas palavras, mas pelo movimento que escreve com outras pessoas tão apaixonadas pela periferia quanto ele.

A partir daí, passou a sentir-se menos sozinho. “Quando me juntei com outras pessoas, me senti mais fortalecido e me senti um poeta também, porque existe a solidão dos livros, e ela é terrível. Com os saraus eu comecei a conversar com pessoas sobre tudo aquilo que queria falar toda a minha vida”, conta.

Como reconhecimento pelo trabalho, no mesmo dia em que comemora 30 anos do primeiro livro lançado, o poeta foi homenageado na Assembleia Legislativa de São Paulo com o prêmio Santos Dias, direcionada às pessoas ou instituições com ações em prol dos direitos humanos.

Vaz diz acreditar que para a periferia a poesia é voz: “Muito mais que palavra porque a palavra todo mundo tem, mas às vezes a gente emitia nossa voz e ninguém escutava. Eu acho que a poesia fez com que as pessoas nos escutassem. Tanto que, acho, hoje as pessoas vão aos saraus que acontecem em São Paulo para serem ouvidas”.

Kauã Cardozo, 15, mora no Parque Vila Maria, zona norte, e conheceu a poesia de Sérgio Vaz após integrar o grupo Vopo (Vozes Poéticas), um coletivo cultural criado na EMEF Paulo Carneiro Thomaz Alves Gal, escola em que estuda. O texto de Sérgio Vaz que o menino costuma recitar em eventos que participa é também o preferido do poeta: “Os Miseráveis”.

Os Miseráveis

‎Vítor nasceu… no Jardim das Margaridas.
Erva daninha, nunca teve primavera.
Cresceu sem pai, sem mãe, sem norte, sem seta.
Pés no chão, nunca teve bicicleta.
Já Hugo, não nasceu, estreou.
Pele branquinha, nunca teve inverno.
Tinha pai, tinha mãe, caderno e fada madrinha.
Vítor virou ladrão, Hugo salafrário.
Um roubava pro pão, o outro, pra reforçar o salário.
Um usava capuz, o outro, gravata.
Um roubava na luz, o outro, em noite de serenata.
Um vivia de cativeiro, o outro, de negócio.
Um não tinha amigo: parceiro.
O outro, tinha sócio.
Retrato falado, Vítor tinha a cara na notícia,
enquanto Hugo fazia pose pra revista.
O da pólvora apodrece penitente, o da caneta
enriquece impunemente.
A um, só resta virar crente, o outro, é candidato a presidente.

Ele decorou a poesia com um amigo e gravaram um vídeo declamando os versos, que chegou até o autor. Vaz compartilhou e ainda ligou para o professor para conhecer os meninos e visitar a escola. “Foi fantástico. A gente está acostumado com poetas mortos e aí um poeta veio na nossa escola”, lembra empolgado. Kauã participou com a turma e professores do sarau de celebração da carreira de Sérgio Vaz na terça-feira (11).

Kauã declama poesia de Vaz (Léu Britto/Agência Mural) 

“Espero que essa molecada carregue a tocha um pouco”, fala Vaz sobre o futuro. “Vejo jovens mais bonitos, mais alegres, com mais raiva e mais coragem do que eu. Sou fã dessa juventude. Sinto que devia ter feito mais, mas é o que a gente pode fazer”.

O poeta, que encontrou seu jeito de se comunicar com o mundo, não tem o sentimento de dever cumprido, mas demonstra-se feliz com o caminho percorrido até aqui. “Sou alguém que quando deita, olha pra cena [cultural] e fala ‘poxa também colaborei com isso’. Me dá orgulho de saber que um pouco da minha vida foi dedicado à palavra, à poesia e à periferia”.

Karol Coelho é correspondente do Campo Limpo

Léu Britto e Paula Rodrigues são correspondentes de Monte Azul e Vila Albertina


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Karol Coelho Paula Rodrigues Léu Britto

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