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Europa, periferia das ilhas crioulas

O Memorial ACTe tem como proposta museológica abordar o tema do tráfico e da escravatura não como fato histórico, mas como memória contemporânea
Margarida Calafate Ribeiro
Buala

Tradução:

Aimé Césaire, Frantz Fanon e Édouard Glissant foram filósofos que refletiram profundamente sobre o mundo que nos constitui, a partir da condição colonial e da herança da escravatura que tanto marca a sua ilha natal, a Martinica, nas Antilhas Francesas.

Para tal, terão tido muita importância as suas próprias experiências de homens mestiços/negros, a sua circulação pela Europa (e, especialmente, pela França) como estudantes e trabalhadores, a vivência da Segunda Guerra Mundial e dos seus efeitos devastadores, mas também decisivos para a libertação do mundo e, em particular, do mundo colonizado.

A partir das heranças do tráfico negreiro e da escravatura que atingem a América do Sul, o Caribe, Cuba e a América Central, os filósofos interpretaram estes espaços e desestabilizaram os lugares comuns e as narrativas coloniais, reinterrogando-as a partir dos territórios, dos corpos, das pessoas e das suas subjetividades. E foi assim que, com diferenças entre si, e em pleno período de discurso anticolonial, interpretaram o sentido destas violentas heranças como manifestos de resistência e de luta pela dignidade da condição humana. Este parece ter sido um objetivo que une os seus estudos, o sentido das suas vidas e da mensagem que deixaram às gerações futuras.

É esse, aliás, o sentido da carta que Aimé Césaire escreveu ao Presidente da Câmara de Fort-de-France, capital da Martinica, quando surge a proposta de fazer um museu à volta das suas ideias, do seu trabalho e das suas relações. 

Hoje este espaço é um gabinete – o gabinete que foi de Aimé Césaire na Câmara Municipal de Fort-de-France – onde podemos ver o mobiliário, objetos pessoais, a sua obra, os primeiros números de Tropiques e de Présence Africaine, os quadros dos amigos pintores entre quais Madame Lumumba de Wifredo Lam, assim batizado por Aimé Césaire, na sequência do assassinato de Patrice Lumumba, em 1961.

O Centre Caribéen d’Expressions et de Mémoire de la Traite et de l’Esclavage (Mémorial ACTe), em Pointe-à-Pitre, capital da Guadalupe, também nas Antilhas Francesas, obedece a esta filosofia matricial e constitui a materialização desta ambição. Nas palavras de Victorin Lubel, deputado e Presidente do Conselho Regional, que podemos ler no site do museu: “Nós, os herdeiros e filhos da Guadalupe, testemunhos e atores desta história, devemos criar um novo humanismo, capaz de trazer a compreensão e a fraternidade aos homens. Estas não são palavras vãs, num mundo e sociedades em crise, mas antes uma oração, uma demanda, uma ação: reunir, testemunhar, recordar, registar para evitar o esquecimento, para que amanhã os piores momentos da história não se repitam. Este é o significado e o testemunho do Memorial ACTe.”

O Memorial ACTe tem como proposta museológica abordar o tema do tráfico e da escravatura não como fato histórico, mas como memória contemporânea

Wikimedia Commons
O Centre Caribéen d’Expressions et de Mémoire de la Traite et de l’Esclavage (Mémorial ACTe), em Pointe-à-Pitre, capital da Guadalupe

Inaugurado em Maio de 2015, o Memorial ACTe é provavelmente uma das mais surpreendentes propostas museológicas a abordar o tema do tráfico e da escravatura não como facto histórico, mas como memória contemporânea. Concebida sob a direção do Conselho Regional por uma equipa multinacional e multidisciplinar, o museu é constituído por vários espaços, de que destaco: o centro de pesquisa genealógica, onde as famílias se podem dirigir para encontrar algo de profundamente privado e público, ou seja, o seu próprio nome e de, através dele, os seus rastos familiares na ilha.

Tendo à disposição entre 6000 a 8000 árvores genealógicas de famílias da Guadalupe e documentação proveniente na maioria de arquivos públicos e privados, este acto de restituição de uma identidade é fundamental para que se possa começar a contar a história da ilha e do longo momento histórico de que os seus habitantes são herdeiros; essa é a história contada no outro espaço que destaco, o da exposição permanente que nos oferece um visita imersiva no processo da escravatura, da segregação e do racismo através de variados meios.

Um guia áudio acompanha-nos ao longo da visita e através de projeções vídeo, quadros interativos, encenações, filmes de animação e peças patrimoniais percorremos uma exposição apresentada numa cenografia ousada e pontuada por intervenções de artistas contemporâneos das Américas e de África que nos remetem permanentemente para o presente como herança, memória ou realidade. Este é, sem dúvida, um dos elementos que mais nos compromete com a história aqui narrada hoje, bem como a atenção que é dada às subjetividades expressas na representação de vivências quotidianas, na procura de histórias pessoais traçadas entre a realidade e o mito, na dimensão da resistência e da luta individual e coletiva, e na constante oscilação entre a dimensão global do tráfico e da escravatura e na ilha da Guadalupe e no Caribe. A exposição é constituída por 37 ilhas que, por sua vez, se reagrupam temática e cronologicamente em 6 arquipélagos que fazem desfilar diante dos nossos olhos os tempos e os temas fortes da escravatura, desde a Antiguidade aos nossos dias. A invenção das Américas com a chegada dos Europeus; os inícios da escravatura e do tráfico negreiro transatlântico; o tempo da escravatura; o tempo da abolição; o pós abolicionismo com as migrações, as políticas de segregação, as lutas pelos direitos civis e o retorno à terra africana prometida; a colonização e a descolonização, e a mudança de imagem do negro. A escravatura hoje e a denúncia dos 36 milhões de pessoas escravizadas finalizam a exposição permanente, mostrando-nos mais uma vez que o problema da escravatura está longe de ser histórico, na sua realidade e na memória da humanidade.2

Todavia é importante registar uma questão, na senda da observação do historiador Amzat Boukari-Yabara com raízes familiares na Martinica e no Benim, relativamente a este centro situado em território francês ultramarino: “O Centre Caribéen d’Expressions et de Mémoire de la Traite et de l’Esclavage (Mémorial ACTe) situado na Guadalupe (Antilhas Francesas), reafirma a ideia de uma memória longínqua que exclui diretamente o território francês europeu, a partir do qual toda a empresa da escravatura foi organizada.”3 Esta observação, para além do que ela afirma sobre a dificuldade europeia em lidar com esta herança, é também muito pertinente quando olhamos a última proposta literária do escritor cabo-verdiano e português, Joaquim Arena, Debaixo da nossa Pele – Uma Viagem (2017) que nos convoca para uma reflexão sobre a presença negra, nomeadamente de escravos, em Portugal e na Europa. Originário de Cabo Verde, um arquipélago fortemente marcado pelo tráfico, a escravatura e as migrações, Joaquim Arena empreende uma viagem na senda do afropeísmo protagonizado pelos europeus, filhos de migrantes africanos que cresceram e viveram na Europa e que integram na sua identidade europeia uma memória e uma vivência africana mais ou menos real, mais ou menos ficcionada. Esta é a linha protagonizada por muitos artistas europeus como o britânico Johny Pitts ou o belga flamengo John K Cobra (Roland Gunst) entre muitos outros. Misturando motivações biográficas, passado, presente e futuro, e realidade e ficção propõem uma rutura de paradigma na leitura da história europeia, não mais confinada aos seus limites territoriais continentais, e não apenas narrada a partir dos grupos de poder, mas também dos grupos minoritários, portadores de narrativas silenciadas, ocultas ou alternativas, em que África está presente e assim se torna parte do país europeu em questão e da Europa em geral.
 
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Debaixo da nossa Pele – Uma viagem tem início num encontro de teor académico sobre a presença negra na cidade de Lisboa. A atenção do narrador fica presa em Leopoldina, uma professora do ensino secundário aposentada, que na sua comunicação aborda, com admirável à vontade, a presença negra em Lisboa. Mas logo nestas primeiras páginas ficamos a saber, pela explicação que nos é dada sobre o convite realizado pela organização ao narrador, qual é o sentido da sua viagem: trata-se de uma viagem pessoal, filosófica e identitária de um cabo-verdiano em reflexão sobre a trajetória da sua família de imigrantes e que, em si, condensa a história do seu país natal e de uma diáspora mestiça e negra global. A comunicação de Leopoldina reflete sobre os conhecidos quadros renascentistas portugueses, aliás recentemente discutidos, em que a presença negra se afirma no centro de Lisboa e que serão o pretexto para uma visita de redobrada atenção à cidade de Lisboa onde o narrador cresceu. Esta visita é inicialmente conduzida por Leopoldina que, no Jardim Tropical –  um resto da Exposição do Mundo Português de 1940 –  lhe revela o seu interesse na matéria do colóquio: Leopoldina seria ainda, de acordo com uma longa história familiar, descendente de escravos. E é assim que surge uma outra viagem que com a primeira se interceta: trata-se na verdade de uma peregrinação ao longo do rio Sado em demanda dos rastos de descendentes de escravos negros trazidos para esta zona, para o cultivo do arroz, no século XVIII, que se entrelaça com a vida de outros negros na Europa e da sua própria vida de mestiço, herdeiro de tantas cicatrizes, diásporas e cruzamentos, flagrados em histórias ocultas e silenciadas, em fragmentos dispersos, indícios, fantasmas.

“Fixo a minha sombra, a minha breve e insignificante silhueta, nesta paisagem, enquanto imagino o itinerário dos ancestrais deste homem, provavelmente escravos africanos. (…) Não existe melhor local para se interrogar a identidade, a grandeza e a condição humana do que um rio, pois nada é mais imperfeito do que o seu fluxo, mais incerto e irrepreensível do que a sua cor.”4

E é a partir desta reflexão ao longo do rio próximo das aldeias fantasmáticas que procura – São Romão e Rio de Moinhos – que vai tecendo laboriosamente uma teia de imagens, estórias, mitos de onde emergem escravos locais, serviçais, famílias mestiças e conhecidas personagens históricas negras presentes na Europa desde Portugal à Rússia, mostrando-nos que na Europa a escravatura, o colonialismo e a descolonização são presenças sem fronteiras, desde o século XV ao estabelecimento de imigrantes cabo-verdianos, a partir dos anos 60 do século XX. O que desfila diante dos nossos olhos são vidas dispersas, famílias fragmentadas, glórias e infortúnios sempre em algum momento pautadas por desvalorização, discriminação, preconceito e que de novo se condensam em torno da história da família do narrador espalhada pelo mundo, dispersa e afastada da terra natal e que e em si representa os movimentos históricos e intercontinentais de populações, compulsivamente transportadas ou levadas em circuitos de emigração ligados à pobreza, à falta de desenvolvimento, à guerra e geradores de novas identidades. São histórias a partir das quais o narrador desafia a ambiguidade do discurso da negritude e da branquitude, o racismo e o anti-racismo, a plasticidade da discriminação, a armadilha do estereótipo e a consciência do preconceito. São histórias que nos apontam para um passado comum de memórias muito diferentes.

Debaixo da nossa Pele – Uma Viagem, os trabalhos artísticos de muitos outros afro-europeus, o trabalho jornalístico de Joana Gorjão, o conceito subjacente ao itinerário “Testemunhos da Escravatura – Memória Africana” pelos espaços museológicos e arquivísticos lisboetas, concebido pelo Gabinete de Estudos Olisiponenses, no âmbito de “Passado e Presente. Lisboa Capital Ibero-Americana da Cultura”5, a proposta do Centre Caribéen d’Expressions et de Mémoire de la Traite et de l’Esclavage (Mémorial ACTe) são exemplos de propostas narrativas, artísticas e museológicas ainda à procura de leitura. São indícios de uma Europa complexa a desembaraçar-se do passado, a descolonizar-se das suas ex-colónias, a libertar-se das imagens do ex-colonizador e do ex-colonizado e, portanto, são sinais de uma Europa que, ao rever a sua narrativa aproximando-se das ilhas crioulas, equaciona outro futuro.
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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS – Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horizonte 2020.

 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Margarida Calafate Ribeiro

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