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Ratazanas com asas: As pombas são uma ameaça real ao patrimônio histórico e cultural

Para lutar contra esta praga, em cidades com certo amor próprio as prefeituras proíbem e sancionam com multas quem as alimenta em lugares públicos
Alfonso Gumucio
La Paz

Tradução:

Pablo Picasso costumava desenhá-la em um traço só, com um ramo de louro no bico. A uma de suas filhas ele pôs esse nome: Paloma. Branca, representou desde 1949 o símbolo da Paz mundial. A primeira versão de Picasso, realizada para o Congresso Internacional da Paz, era uma pomba em pleno voo, salpicada de pequenos rabiscos coloridos que sugeriam flores. As que desenhou mais tarde eram mais depuradas, sem adornos.

É também sinal de harmonia no Natal, e não em vão ocupa um dos vértices da Santíssima Trindade e alguns maliciosos atribuem ao Espírito Santo a paternidade de Jesus.

Mas eu não vou me referir agora a essa pomba tão branca como folha de papel, tão desnuda e desprotegida como o conceito da paz mundial. Quero falar de outras pombas, obesas, cinzentas e cagonas, que abundam na Plaza Murillo da cidade de La Paz, sede do governo boliviano (que muitos consideram a capital do país).

O Quilômetro Zero e epicentro político do país, foi invadido por estas ratazanas com asas. Pessoas ignorantes lhes dão comida acreditando que é uma boa ação, com o que a população delas se multiplica. Há vendedoras ambulantes de grãos de milho que ganham uns pesos sem saber o dano que fazem. Enquanto isso as fezes ácidas dessas ratazanas voadoras destroem edifícios patrimoniais e afetam a saúde.

Arquitetos e especialistas em restauração explicam que o excremento das obesas pombas contém compostos químicos (nitratos, sulfatos e sulfitos), que são um caldo de cultura para fungos, bactérias e microrganismos anaeróbios capazes de deteriorar a pedra dos monumentos históricos. Prova da virulência do cocô das pombas é a maneira como pode corroer a tinta de um automóvel se não se limpar logo. 

Ao misturar-se com a chuva e com os gases da poluição ambiental, favorece o desenvolvimento de uma microflora que produz ácidos que deterioram os materiais aparentemente mais sólidos. Os elementos arquitetônicos das fachadas (capitéis, remates, gárgulas, frisos, cornijas e nichos) oferecem abrigo às pombas para nidificar, dormir e defecar.

Não só danificam monumentos, mas também a saúde das pessoas, porque se convertem em focos de infecção que favorecem a transmissão de doenças gastrointestinais e respiratórias, clamídia aviária, criptococose, histoplasmose, colibacilose e encefalite, entre outras. 

Para lutar contra esta praga, em cidades com certo amor próprio as prefeituras proíbem e sancionam com multas quem alimenta as pombas em lugares públicos, ou pelo menos colocam cartazes de advertência. No México ou no Equador, em cidades da Europa que têm monumentos valiosos, as esculturas de pedra e outros elementos arquitetônicos são cobertos com uma fina malha quase invisível e longos espetos de aço para que as ratazanas com asas não se aproximem para defecar.

Em 2017 o Tribunal Superior de Justiça da Catalunha declarou procedente a demanda de invalidez de uma guia de turismo afetada por “fibrose pulmonar grave causada por sua exposição prolongada aos excrementos de pombas quando trabalhava na praça Catalunha e em La Rambla de Barcelona”. Os ajuntamentos de Valência e de outras cidades da Espanha usaram o caso como argumento para tomar medidas de proteção. O doutor Jaime Signes-Costa Miñana, presidente da Sociedade Valenciana de Pneumologia diz que “o pulmão se enche de cicatrizes e se respira com dificuldade”.

Entre as medidas que tomaram as prefeituras em outros países, além da cobertura e dos espetos, está o uso de venenos de contato, repelentes, nos lugares que se quer proteger, e forragem com esterilizantes.

O pintor Luis Zilveti me escreveu a respeito, sobre uma diferença muito significativa que há em francês entre a pomba vulgar e a pomba branca, e me mandou vários desenhos de ‘pássaros’ indeterminados. A propósito, tenho em minha casa um pequeno quadro do Luis que representa uma pomba (no sentido de colombe), branca e leve:

“Li esta manhã seu artigo Ratazanas com asas; muito bom!  Me causou muita graça porque lá longe, nos anos em que te conheci, uma vez estava sentado em um bar em frente à Ópera de Paris com Jacques d'Arthuis a quem lhe causou muita graça que eu qualifique os pigeons de ratazanas voadoras. Em francês se diferencia pigeon de colombe… A propósito te envio fotos de alguns desenhos recentes de ‘pássaros’ como eu os chamo simplesmente, embora não seja correto linguisticamente, mas sim pictoricamente”.

A diferença existe também em inglês, já que se usam duas palavras para diferenciar esses pássaros: pigeon e dove. Essa sutileza o nosso idioma não tem.

Como Bolívia é um país ao revés, aqui não se fazem previsões, não se regulamenta, e se por acaso há normas, ninguém nos obriga a cumpri-las. O entusiasmo da Prefeitura de La Paz pelo Ovocontrol (um anticonceptivo) durou menos que uma gravidez de ratazana.

Pedro Susz fez em 1988 um curta-metragem em Super 8, “Transitar la retaguardia”, em que mostrava um ancião ex-combatente da Guerra do Chaco, que caçava pombas na Plaza Murillo e as levava para sua casa para comê-las. A Prefeitura deveria declarar aberta a temporada para que quem quiser possa caçar ratazanas com asas. Poderiam lançar cem gatos vorazes na praça para que se deleitem, e uns quantos alkamari para que as arrinconem nos buracos dos campanários.

As ratazanas com asas talvez encontrem agora um cenário mais adequado à sua natureza, já que atrás do Palácio Queimado (e de toda a sua história) se ergue o espantoso e fálico palácio mussoliniano do presidente Morales, com o qual passará a história como um dos maiores depredadores do centro histórico da cidade de La Paz.

Devo reconhecer que, comparativamente, as ratazanas com asas são um mal menor.

*Colaborador de Diálogos do Sul desde La Paz, Bolívia.

(Publicado em Página Siete no sábado,  12 de janeiro de 2019)

Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Alfonso Gumucio Boliviano. Cineasta e documentarista. Especialista em comunicação para o desenvolvimento com experiência mundial em comunicação participativa, mobilização social e desenho da estratégia. Foi Diretor de Comunicação da UNICEF na Nigéria e no Haiti

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