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Eco-Narciso: Como reconhecer o narcisismo em pessoas que se acham maravilhosas

Uma das conquistas emocionais mais importantes com o processo de psicoterapia é exatamente sermos capazes de botar os pés no chão
Vera Vaccari
Diálogos do Sul
São Paulo (SP)

Tradução:

O mito de Eco, a ninfa apaixonada que não conseguia ver a si mesma, é completado com a presença de Narciso. Perseguido pela ninfa apaixonada, que só conseguia falar o final das palavras, Narciso ficou assustado e saiu correndo. Quando ela gritava, ele só ouvia o final das palavras, o que fazia com que ele corresse mais depressa. Desolada, Eco escondeu-se em uma caverna, onde até hoje repete a última sílaba do que ouve.

Mas, o que houve com Narciso? Depois de muito correr, ele parou para descansar à beira de uma fonte. Ao se aproximar da água, para matar a sede, viu a própria imagem refletida na superfície. Apaixonado pela própria beleza, ficou horas com os olhos fixos naquele espelho, até que por fim aproximou-se tanto daquele ser refletido no espelho líquido que acabou caindo na fonte, de onde nunca mais saiu.

Com pena, os deuses fizeram com que fosse transformado em uma linda e perfumada flor, o narciso.

Por isso, quando contamos o mito, falamos dos dois. De um que só vê o outro, que, por sua vez, também só vê a si mesmo. Por mais que a pobre Eco faça de tudo para atender às vontades de Narciso, ainda vai ser pouco, até ele se cansar daquela Eco que não lhe dá nada de novo e partir à procura de outra. Assim como Eco busca Narciso, Narciso também precisa de Eco. Os dois se complementam.

Um dos biógrafos do autor Marcel Proust conta que um dia ele se irritou com um de seus amigos. O rapaz gostava tanto de se olhar ao espelho que, caminhando de lá para cá pela sala agachava-se a cada vez que passava diante de um pequeno espelho sobre uma mesinha. Não conseguia evitar admirar-se e nem ouvia a confidência que o amigo queria lhe fazer.

Uma das conquistas emocionais mais importantes com o processo de psicoterapia é exatamente sermos capazes de botar os pés no chão

Estórias da História
Assim como Eco busca Narciso, Narciso também precisa de Eco. Os dois se complementam.

Mas quem passou a utilizar a palavra narcisismo foi Freud, o criador da psicanálise. Com isso, descrevia a pessoa que não vê só a própria beleza. Como um bebê de colo, que não percebe ainda as outras pessoas, Narciso só consegue ver seus desejos e vontades e necessidades. Para satisfazê-los, não se importa com ninguém.

Foi Freud quem tirou o mito das profundezas onde eles se escondem em nossos corações e usou a palavra narcisismo para se referir a pessoas demasiadamente voltadas para si mesmas, como Narciso diante do espelho das águas.

É fácil reconhecer o narcisismo nas pessoas que se acham maravilhosas. Os ídolos aparentam ser assim, ou tornam-se assim pelo incenso constante de seus(suas) adoradores(as). São jogadores de futebol, cantores(as), atores e atrizes…

Mas há também gente comum, mulheres e homens que vêem o mundo girar em torno do próprio umbigo, crianças mimadas que acreditam que a vida lhes deve — e muitas vezes ficam esperando a recompensa sem fazer qualquer esforço para merecê-la.

Assim, pareceria que são pessoas felizes, que não veem os problemas e vão adiante. Ao contrário, sofrem muito, porque não percebem muito bem a realidade. Assim, não conseguem fazer amizades verdadeiras, esperam que o(a) parceira satisfaça suas necessidades, sem dar nada em troca, preocupam-se o tempo todo com a reação dos demais — precisam saber que estão agradando, que recebem todo os elogios que acreditam que merecem… Caso contrário, podem se sentir perseguidos, diminuídos, irados…

Uma das conquistas emocionais mais importantes com o processo de psicoterapia é exatamente sermos capazes de botar os pés no chão, aprendendo a conviver com os demais como iguais em direitos e deveres, buscando o que é possível e não exigindo que nos deem as estrelas como direito adquirido.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Vera Vaccari

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