Após dar um mata-leão na Ancine, interrompendo na base da canetada as linhas de financiamento público ao cinema brasileiro, mira agora na Lei Rouanet. Além dos habituais adjetivos com que o Bolsonarismo trata a lei Rouanet (“mamata”, “desgraça”, etc), o governo parece ter chegado a uma “proposta”: baixar o teto de financiamento de projetos culturais através de renúncia fiscal dos atuais R$ 60 milhões para no máximo R$ 1 milhão de reais por projeto. Conforme anunciada, a medida representa o colapso total do já combalido setor cultural brasileiro.
Possivelmente, mais de 90% da produção cultural brasileira se viabilizaria com orçamentos muito inferiores a 1 milhão de reais. Existem dezenas de milhares de iniciativas culturais no Brasil que sobrevivem com muito menos do que isso, e que nunca acessaram a Lei Rouanet. É sabido que o mecanismo de renúncia fiscal é concentrador e destina cerca de 80% de seus recursos ao eixo Rio-SP.
No entanto, estes projetos financiados pela Lei Rouanet, e que estão acima da casa do milhão de reais são também muito importantes. Neste patamar estão praticamente todos os projetos de restauro, preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional. Salvo engano, até a recuperação do Museu Nacional receberia recursos da Lei Rouanet acima de R$ 1 milhão. Que há exageros e distorções, não há dúvida, até porque, na renúncia fiscal, quem dá a última palavra no destino dos recursos não é o governo, como crê (ou finge que crê) Bolsonaro. Quem decide, no fim das contas, é a “mão invisível” do mercado.
Lei é um dos principais alvos das críticas de bolsonaristas nas redes sociais
E este será, sem dúvida, o primeiro a se levantar contra a medida. Entre os maiores captadores via lei Rouanet estão, por exemplo, fundações e institutos ligados a grandes empresas e grupos econômicos, como Fundação Roberto Marinho, Itaú Cultural, Instituto Moreira Salles, etc.
O governo propõe reformar a lei através do atalho de uma Instrução normativa, medida infralegal. E aí fica a questão: tramita no Congresso o PL 6722/2010, conhecido como Procultura, que propõe uma profunda reforma da lei Rouanet amplamente debatido pelo governo, legislativo e sociedade ao longo dos últimos 10 anos. Prevê o fortalecimento os fundos públicos, democratização do acesso aos recursos, maior equilíbrio regional na distribuição das verbas, transparência e controle social.
Já aprovado em primeira votação na Câmara, o Procultura foi desarquivado recentemente no Senado. O legislativo, que vem procurando afirmar uma agenda própria e independente das incontinências verbais e da bateção de cabeça do governo, bem que podia pegar o Procultura pra chamar de seu, e finalmente fazer uma necessária reforma nos mecanismos de financiamento à cultura no Brasil.
Avançar no congresso com o Procultura seria a melhor forma de se contrapor à baboseira ideológica de Bolsonaro em relação a lei Rouanet. O tema abre caminho em todas as bancadas, especialmente as do Norte, Nordeste e centro-oeste, cujos estados são penalizados pelo modelo concentrador atual. Mesmo que os efeitos imediatos sejam pequenos, seria um avanço na pauta legislativa da cultura, impedindo um retrocesso maior no setor.
*Alexandre Santini é gestor cultural, dramaturgo e escritor, é diretor do Teatro Popular Oscar Niemeyer, em Niterói (RJ) e autor do livro “Cultura Viva Comunitária: Políticas Culturais no Brasil e na América Latina”