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Mulțumesc: Quando uma atitude bondosa diz mais que mil palavras racistas em inglês

"Queria dizer ao romeno Román, 'thank you', mas tomada por uma surpreendente paralisia, não consegui..."
Ilka Oliva Corado
Diálogos do Sul
Território dos EUA

Tradução:

Eu o vi passar entre a banca de abacaxis e os mostradores da padaria, conversava com uma garota que o acompanhava; ele carregava a sacola, vestia calça de lona azul e camisa da mesma cor, seu cabelo sempre loiro, sua forma de caminhar e suas costas largas que podia reconhecer entre mil, era ele, era Román.

As marcas dos anos começavam a sulcar seu rosto e alguns fios de cabelos brancos apareciam, não tinha o corpo de atleta de anos passados, mas sua alma seguia iluminando tudo ao seu redor, como o sol às flores de maio.

Eu, justo quando caminhava pelo corredor onde estão os morangos e os tomates, senti um golpe no coração quando o vi passar e quis gritar: Román, Román!, quis correr para lhe dar um abraço e dizer-lhe obrigada novamente. Eu me vi correndo até ele, vi de novo seus lindos olhos azuis como o mar, mas fiquei ali, estática, com as mãos no carrinho do supermercado.

Fazia uns 12 anos que eu não o via, a última vez que o vi foi na academia antes que a fechassem e mudassem a forma de filiação. Com isso muitos se foram a outros lugares e ficamos os poucos que vivíamos nos arredores. Entre os que foram embora estava Ramón.

"Queria dizer ao romeno Román, 'thank you', mas tomada por uma surpreendente paralisia, não consegui..."

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"Queria dizer ao romeno Román, thank you, mas tomada por uma surpreendente paralisia, não consegui…"

Há quinze anos, recém chegada, eu nadava na piscina da academia quando um homem que nadava na mesma raia, de repente me deteve agarrando-me pelo braço e começou a gritar, dando pancadas na água; eu mal entendia o que dizia, mas ele estava furioso; era um homem caucasiano que me gritava em inglês. As outras pessoas que também nadavam se detiveram, mas ninguém fez nada, ele me gritava e eu vagamente entendia o que dizia, uma ou duas palavras do punhado que saia a mil por hora: migrante, negra.

Da jacuzzi saiu um homenzarrão alto, robusto, de olhos azuis, e mergulhou na piscina indo sair onde estávamos nós e começou a gritar em inglês ao caucasiano que parou na mesma hora; toda a prepotência que tinha comigo subiu ao seu rosto que ficou vermelho como um tomate e ele foi diminuindo, sentindo-se minúsculo diante do homem que tinha na frente dele: esse homem era o Román. O caucasiano saiu da piscina e foi embora. Román me perguntou se eu estava bem e me disse que continuasse nadando, e eu o entendi mais pelos gestos que pelo inglês.

Uns homens latinos que estavam na jacuzzi me traduziram tudo, me disseram que o homem caucasiano estava gritando coisa como que eu saísse da piscina, que sujava a água por ser negra, que voltasse ao meu país. E que o Román chegou e lhe disse que Estados Unidos era um país livre, que eu podia nadar onde quisesse e que deixasse de gritar comigo, e que se atrevesse a gritar com ele.

Depois de uns minutos deixei de nadar e fui à jacuzzi onde estava Román; outros latinos traduziram o que ele me disse: que nunca permitisse que ninguém me discriminasse, em nenhum lugar do mundo e ainda menos neste país, que eu era livre, que todos nascemos livres, que defendesse meus direitos e que se alguém voltasse a me discriminar na academia que eu lhe avisasse.

Passaram os meses e eu continuei me encontrando com Ramón na academia, conversávamos ou pelo menos tentávamos já que eu não entendia; mas nessa época havia comprado um tradutor eletrônico que tinha a aparência de uma calculadora de bolso, e então ele falava e eu traduzia o que me dizia com esse aparelho; foi assim que eu soube que era da Romênia e que trabalhava na construção.

Quando eu o vi passar no supermercado quis correr e dizer a ele que entendia um pouco mais de inglês e que também o falava mais, e com minha própria voz , queria dizer obrigada em inglês, mas que tinha memorizado uma palavra em seu idioma materno para dizer a ele, porque estava segura que um dia eu o voltaria a ver: Mulțumesc, (obrigada).

O mais seguro é que Román não houvesse sabido quem era a desconhecida que chegava de repente a dizer-lhe obrigada, ou talvez me tivesse reconhecido, não sei, o importante é o que ele fez naquele momento, ao agir diante de um racista que gritava com uma mulher migrante que não falava inglês, e que por isso não tinha como se defender.

E não pude, não pude me mover do lugar onde estava, fiquei grudada no chão, com o corpo como chumbo; por quinze anos guardei essa palavra em romeno para dizer-lhe obrigada e não pude caminhar em direção a ele no dia em que voltei a vê-lo; E Román, o grande Román, o homenzarrão de olhos azuis, de cabelo loiro, de costas largas, de coração bondoso passou e se foi; como passam as horas, os dias e os anos, como passa a vida; em um piscar de olhos, sem dar-nos conta ou sem que consigamos reagir.

*Ilka Corado é escritora e colabora com Diálogos do Sul desde o território dos EUA

Tradução: Beatriz Cannabrava

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Ilka Oliva Corado Nasceu em Comapa, Jutiapa, Guatemala. É imigrante indocumentada em Chicago com mestrado em discriminação e racismo, é escritora e poetisa

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