O “caso Neymar” (e vejam que o protagonismo dado ao jogador pela mídia não é neutro, pois o caso é dele) mostra mais uma vez as relações desiguais, subordinadas e violentas entre homens e mulheres.
Não foram poucos os casos desde o uso das redes de denúncias, constrangimentos e suicídios de mulheres após publicação de fotos e vídeos íntimos. Quando uma mulher manda um nude ou um vídeo, a relação estabelecida ali é com o sujeito, ou melhor dizendo com o Outro.
Para essa mulher sempre há o Outro – e Simone de Beauvoir está aí para ser lida e relida. Mas, nem sempre esse Outro guarda relação de reciprocidade com nós, mulheres. Em poucos minutos, as fotos e os vídeos circulam nos grupos e ela é adjetivada de “vara pau”; “Só zoeira”; “pra não casar”, “engole tudo” e etc.
Nesses grupos e em tantos outros, os caras chegam a compartilhar o contato das mulheres com quem saem para que os outros integrantes possam livremente mandar mensagens, como um insuspeito “oi”, vindo de um estranho que tenta desenrolar uma conversa. Há também o sistema de notas e tabela do que elas fazem e não fazem. Importa dizer isso para nos darmos conta de que a nossa intimidade, o nosso desejo, a nossa capacidade de exercer objetificação é posta em xeque por homens como Neymar.
Neymar Jr
O que isso significa? Que tratar de temas eróticos, mandar nudes, falar sacanagens, demarcam um lugar fixo de mulher para o sexo e não é o lugar que nós reivindicamos.
Neymar e muitos outros partem do pressuposto de que ao mandar nudes, ao interpelar e assumir um lugar de igual no rito do desejo, na troca de fotos, o sexo não é mais mediação, torna-se ação sem consentimento, porque parte não da relação com a Outra, mas de si para si – vira uma masturbação no corpo alheio. O gozo vem dessa opressão, do uso da força, da intimidação e do poder.
Nesse rito, o homem coloca toda a sua força, violência e incapacidade libertária com a própria sexualidade, por isso o estupro machuca e, na maioria das vezes, faz sangrar.
Esse ato em que impera a vontade soberana de um manifesta o anulamento total da Outra, do desejo, do erotismo e do próprio corpo, desenvolvendo assim uma subjetivação violenta, provocando o trauma de muitas, muitas mulheres na rejeição do próprio corpo e sexualidade. “Um estupro é uma cicatriz em permanente cicatrização”. Esse corpo, que seria então expressão de tesão, de liberdade, é recolocado no lugar socialmente histórico da opressão, da submissão, do risco e da vulnerabilidade.
É como se Neymar e tantos outros dissessem: “olha quem manda” ou “provocou agora aguenta”. Não são frases ditas entre quadro paredes, são frases clássicas do patriarcado. Neymar e muitos outros buscam naturalizar essa violência e a forma mais predatória é pela via da moralidade, ou seja, é preciso provar que essa mulher não é santa, é quase uma puta, ou talvez seja uma disfarçada.
Cria-se, de toda forma, o contra-discurso da verdade soberana e mais uma vez somos nós as abjetas, seres sem sentimento, sem vida e dignidade, na medida em que para assegurar a sua inocência claramente requer o lugar da vítima, mas não de qualquer vítima. É uma contradição clara, óbvia, mas encoberta pelo véu da moralidade.
Por isso, não estranho que agora xs moralistas de plantão apontem seus dedos rechaçando os nudes da mulher. Inacreditável que o crime de estupro seja encoberto e reduzido ao nudes. Mais inacreditável é Neymar querer presunção de inocência tendo vazado fotos íntimas dela, para dizer: “olha! ela não é santa, ela pediu”.
É o mesmo discurso contra mulheres que se vestem com roupas curtas. Não estamos diante de uma situação simples, estamos diante do uso da nossa intimidade para formação de indícios de culpabilidade contra nós. É o fim dos tempos! Nós, Mulheres não podemos aceitar isso!
* Joana das Flores é doutoranda em Serviço Social pela Puc/RS. Autora dos livros “Para além dos Muros: as experiências sociais das adolescentes na prisão” ( Revan, 2017) e “Meninas e Território: criminalização da pobreza e seletividade jurídica” (Cortez, 2018).