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Com estreia mundial pela Netflix, documentário responde "O que aconteceu com o Brasil"

A democracia pode morrer lentamente, sugere o filme-dossiê da mineira Petra Costa cotado para Oscar de melhor documentário de 2020
Léa Maria Aarão Reis
Carta Maior
São Paulo (SP)

Tradução:

Uma democracia pode morrer aos poucos, definhar ao longo de anos e não de repente, com um golpe fatal – como é o caso da brasileira. Este é o recado do excelente documentário Democracia em Vertigem (The Edge of Democracy) produzido pela Netflix Internacional que estreou dia 19 de junho. Dirigido pela mineira Petra Costa, de 35 anos, já é um dos cinco filmes apontados para o Oscar de Melhor Documentário do ano que vem.

Durante duas horas o seu roteiro acompanha, do modo o mais objetivo possível, embora marque sua posição ideológica, a trajetória inglória da democracia brasileira nos últimos seis anos submetida pelas tramoias executadas por duas associações: a dos marginais que tirou à força Dilma da presidência e a segunda, farsesca, retirando o presidente Lula da competição para as eleições do ano passado e conseguindo aprisioná-lo. Mal-feitos de profissionais – políticos, empresários, juristas -, para usar a expressão cunhada pela presidente destituída.

O filme de Petra monta um debate honesto sobre essa democracia que parece se esvair. 

Esmiúça os lances do processo de impedimento da ex-presidente do Brasil, Dilma Rousseff, arquitetado cuidadosamente durante anos e o início da profunda polarização política do país que culminou na ascensão da extrema-direita ao poder. Mostra imagens raras dos bastidores do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, na noite da prisão de Lula, a movimentação dentro do Palácio da Alvorada em momentos decisivos e a intimidade do mundo de Dilma Rousseff e do universo do ex-presidente Lula.

Uma tomada de pressão arterial em Lula (estava alta) na sede do sindicato do ABC; ele arrumando suas roupas na mala de mão, perguntando ‘’onde está o Cristiano Zanini?’’ e bebendo um copo d’àgua para apaziguar a voz muito rouca; cabides e móveis pessoais de Dilma retirados dos apartamentos privados do palácio; funcionários palacianos se despedindo cordialmente de Dona Marisa Letícia no último dia da presidência de Lula; ligações telefônicas informais, em família, e um encontro amigo da mãe da diretora com Dilma, ex-colega dela de colégio em Minas e, depois, companheira da ex-presidente no Presídio Tiradentes.

Vinhetas valiosas ao pé da página da História que fazem a ação dos protagonistas mais humana e mais próxima. Imagens privilegiadas apresentadas com uma montagem excepcional, hipnotizante, colocando pontos e contrapontos de opiniões e ideologias. Suspiros da câmera que constroem frases e acompanham a narração e às vezes o cinema direto.

Petra diz que se tivesse tido mais tempo teria colocado informações sobre a Vazajato. Mas o filme precisava ir para o Festival de Sundance, no começo deste ano. A atualização que fez foi a de dois cartazes, no final, informando que Moro é o atual Ministro da Justiça do governo e que Lula permanece preso. 

O que aconteceu com o Brasil? É a pergunta que o crítico A.O. Scott, do New York Times, se faz, na sua resenha elogiosa sobre o documentário. Como foi possível o atual triunfo de políticos autoritários que se identificam com o presidente da Hungria e das Filipinas? Ele indaga.

Scott lembra que em 2011 Lula deixou a presidência com 87% de aprovação dos eleitores. E Dilma foi presa e torturada durante a ditadura de 1964/1985. A pergunta assombra este filme, ele escreve: o que aconteceu? 

‘’Petra é uma investigadora escrupulosa de fatos ocultos e uma intérprete ponderada de eventos públicos,’’ ele escreve.‘’ Não produziu um trabalho de jornalismo objetivo ou estudos acadêmicos destacados, mas sim uma avaliação pessoal do passado e do presente da sua nação. Ela não esconde suas alianças políticas; e sua franqueza aumenta em vez de prejudicar a credibilidade de seu relatório.’’

O cineasta Kleber Mendonça Filho, por sua vez, chama a atenção para o lote de documentários nacionais, de cinema político, que estão sendo apresentados. Um arquivo de grande valia futura para os estudos da história nacional. 

A narrativa de Petra Costa começa com Lula líder sindical falando nas portas das fábricas, suas três candidaturas à presidência, o emocinante desfile da vitória em carro aberto pelas avenidas de Brasília, o discurso histórico na sua primeira posse no qual avisa: ‘’O Brasil está se reencontrando consigo mesmo.’’

Toda trajetória dos governos petistas, o país levado à sétima economia do mundo, a descoberta do pré-sal vindo para financiar educação popular, o país explodindo em alegria.

E sempre o contraponto dos indignados com as cotas raciais nas universidades, as críticas às alianças políticas. Lula: ‘’Pelo Brasil eu faria até alianças com Judas.’’  

As imagens de anos atrás, pequenos gestos, olhares e entonações de voz pinçados minuciosamente e agora revistas com cuidado revelam muito do que estava sendo tramado. Por exemplo: a hipocrisia de Judas/Temer dando voltas e disfarçando para se posicionar nas fotos diante do palácio, em dia de posse, ao lado de Dilma e de Lula.

A vertigem política segue na tela: junho de 2013, as manifestações gigantescas protestando contra os centavos a mais de aumento dos ônibus, repressão das polícias, bandeiras vermelhas queimadas, ‘’nada mais seria como antes’’ principalmente depois do discurso de Dilma anunciando a baixa das taxas bancárias. 

O mantra da corrupção já aparecendo no horizonte, a Lavajato espionando a Petrobrás (que antes já fora espionada pela inteligência americana) e o início da Operação Moro/ Superhomem. 

As delações premiadas, o célebre power point espúrio dos procuradores de Curitiba e a quarta eleição perdida pelo PSDB, pelo candidato Aécio, e as esplendorosas imagens de sua indignação que não deixava pedra sobre pedra.

Áudios vazados, interceptação ilegal de conversas entre a presidente e Lula (poucas horas depois da espionagem eram mostradas na globonews, lembra Petra).

E o desfile de horrores e de monstros: Janaína Paschoal, Eduardo Cunha, Romero Jucá, o processo de impedimento (e o voto-Ustra do deputado Bolsonaro além dele em seu gabinete, na Câmara, com as paredes ornadas de uma galeria de fotos dos generais/ditadores brasileiros).

Nas ruas, o país chamado a viver uma fratura cada vez mais profunda. A Operação Superhomem tomando vulto e a despedida de Dilma: “ Seremos todos julgados pela História. Hoje, eu só temo a morte da democracia.” 

A trilha musical, excelente, vai seguindo a volúpia da vertigem, tudo passando tão rápido ( o sucesso da farsa dependia do ritmo fulminante dos acontecimentos e deveria atordoar – como atordoou a população) e uma trilha musical exata: notas de vários réquiens e Villa Lobos substituindo as valsas brasileiras do início.

Democracia em vertigem é um documentário empolgante. Deve ser visto por todos os que querem entender os últimos seis anos vertiginosos vividos por este país. Para os que agem contra o que Lula classificou, vê-se no filme, “de uma sacanagem que não tem precedente.”

Os fatos e argumentos relembrados por Petra Costa, no dizer do crítico de Nova Iorque, devem ser estudados por todas as pessoas interessadas no destino da democracia, no Brasil ou em qualquer outro lugar.

Mas o alerta mais importante vem da jovem e brilhante cineasta, no final, em off: “Vamos precisar começar tudo de novo.”

Estamos aí. 

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Léa Maria Aarão Reis

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