A conivência do presidente da República com os crimes da ditadura militar tem sido amplamente explicitada por ele em várias situações. Sua tática é negar sistematicamente as violações de direito praticadas entre 1964 e 1985, ou perpetrar versões falsas da história, como fez ao tentar escamotear o assassinato do jovem Fernando Santa Cruz, pela repressão, em 1974.
Não podemos compactuar com essas mentiras. Sobretudo nós, pessoas da minha geração, que deram a vida na luta pelas liberdades democráticas, pela justiça social, e contra a cruel ditadura que vigorou no Brasil por 21 anos. Somos mães, filhas, companheiras e militantes, mulheres corajosas que protagonizaram um dos momentos mais significativos da luta pela democracia e, em razão dessa luta, fomos presas, torturadas, assassinadas e desaparecidas.
Hoje, observamos com espanto e indignação a divulgação dessas “versões” na imprensa e nas redes sociais e, acima de tudo, repudiamos a capacidade que elas têm de convencer parte expressiva da população. Inclusive jornalistas.
“Não houve ditadura no Brasil”, concordam aqueles que não querem vê-la. “Foi uma reação patriótica contra a ameaça comunista”, repetem os que preferem fechar os olhos para a verdade. “Foi uma ditabranda, um movimento”. Ou, mais recentemente: “Não houve clandestinidade”, como afirmou um jornalista numa reportagem que negava o passado clandestino dos pais da cineasta Petra Costa.
Divulgação/Netflix
"Petra expõe sua história pessoal para fazer uma leitura profunda e autêntica sobre a história, não apenas de sua família, mas do país"
Marília Andrade e Manoel Costa são mineiros, como eu. Tive a oportunidade de conhecê-los em Belo Horizonte e, embora militássemos em organizações diferentes, fomos contemporâneos. Ambos deixaram BH porque eram perseguidos. Como eu. Apenas muito mais tarde, vim a saber que se mudaram para Londrina, no Paraná, e que davam apoio a companheiros do PCdoB, então na clandestinidade.
Quem não viveu a experiência da clandestinidade não é capaz de dimensionar o que ela significa. Clandestinos, deixamos a vida “normal” de lado para nos dedicarmos à resistência. Mudamos de endereço, de estado, de profissão. Às vezes mudamos de nome e até de fisionomia. A alternativa, nestes casos, poderia ser a morte.
A clandestinidade é um momento terrível na vida de qualquer pessoa, sobretudo quando se é jovem, como éramos em 1970. Por mais que tenhamos feito a escolha pela luta, nos deparamos muitas vezes com o imponderável, com o medo, momentos difíceis e perigosos, embora de muita afeição e solidariedade entre nós.
Não há mentira ou manipulação no que foi contado pela cineasta Petra Costa no documentário Democracia em Vertigem. Sobretudo, sua narrativa é muito corajosa, porque Petra expõe sua história pessoal para fazer uma leitura profunda e autêntica sobre a história, não apenas de sua família, mas do nosso país. Ali, tortura é chamada de tortura, e clandestinidade de clandestinidade – coisa rara em tempos de revisionismo histórico, apologia à ditadura e discursos calcados em mentira e agressão.
Toda minha solidariedade a Marília, Manoel e Petra.
*Este artigo foi originalmente publicado pelo site Brasil de Fato em 6 de agosto de 2019, com o título “O revisionismo histórico e a vertigem da democracia, por Eleonora Menicucci”.
** Eleonora Menicucci é ex-ministra de Políticas para as Mulheres do governo Dilma Rousseff (PT) e professora titular da Escola Paulista de Medicina/Unifesp.
***Edição: Daniel Giovanaz
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