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Humanidade sobreviveu à gripe espanhola, mas mundo se transformou totalmente

A pandemia se espalhou por quase toda a Terra, dona de uma virulência incomum, produzida por uma cepa do hoje conhecido vírus Influenza tipo A, do subtipo H1N1
Carlos Russo Jr
Espaço Literário Marcel Proust
São Paulo (SP)

Tradução:

Há cem anos a Terra era acometida por um flagelo que parecia nunca acabar, quiçá prenúncio do fim dos tempos. Era o quarto ano de uma guerra como nunca se vira até então. Tempo também de revolução e de crenças místicas. Então, dos escombros e das trincheiras enlameadas da Primeira Guerra, surgiu uma praga só comparável à peste negra medieval.

A gripe de 1918 foi uma pandemia que se espalhou por quase toda parte do mundo, dona de uma virulência incomum, produzida por uma cepa do hoje conhecido vírus Influenza tipo A, do subtipo H1N1.

Tendo contaminado mais de 500 milhões de pessoas (ou quase 27% da população mundial na época) e fazendo até 100 milhões de mortos (perto de 5% da população global), foi uma das pandemias mais letais da história da humanidade.

A pandemia se espalhou por quase toda a Terra, dona de uma virulência incomum, produzida por uma cepa do hoje conhecido vírus Influenza tipo A, do subtipo H1N1

Reprodução: Twitter
Apesar do nome “gripe espanhola”, ela não começou na Espanha.

Apesar do nome “gripe espanhola”, ela não começou na Espanha. A pandemia tomou essa denominação porque a Espanha, que não entrara na guerra, não censurava notícias e a imprensa divulgava “o terror causado pelos milhões de infectados ,pela ‘fiebre de los tres días’” que atingiu até mesmo seu rei Espanha. As demais nações bloqueavam informações que fossem estrategicamente desfavoráveis e pudessem atingir o ânimo das próprias tropas.

Na verdade, a doença foi observada pela primeira vez nos Estados Unidos, especificamente no Kansas e em Nova Iorque, em março de 1917. Já em abril de 1918, contaminara tropas francesas, britânicas e americanas, estacionadas nos portos da França. Em maio, a doença atingira a Grécia, Portugal e Espanha; logo após, Dinamarca, Noruega, Países Baixos e Suécia.

Cientistas ofereceram ao longo dos anos várias possíveis explicações para a alta taxa de letalidade da “gripe espanhola”. Algumas destas análises sugerem que, se bem a virose fosse  muito mais agressiva que as influenzas que existiram no passado, a desnutrição, os acampamentos  médicos de guerra e hospitais superlotados, além da falta de higiene básica nas cidades, ajudaram a promover uma super infestação de microrganismos em organismos debilitados.

Particularidade surpreendente está no fato de que as principais vítimas não eram crianças e idosos, normalmente mais vulneráveis. Jovens adultos, saudáveis até então, foram os mais afetados.

Quanto às origens da cepa viral elas seguem desconhecidas, mas sabe-se ser a mesma comum entre alguns mamíferos e aves, tanto selvagens como domésticas.

A gripe, posteriormente chamada de Influenza, percorreu todos os continentes em três ondas distintas. A primeira, nos Estados Unidos onde surgiu e levou à morte no primeiro semestre de 1917, aproximadamente dez mil pessoas. A segunda onda foi muito mais forte e ocorreu quando, depois de percorrer os continentes, a “gripe espanhola” retornou aos Estados Unidos em agosto matando milhões, com uma taxa de letalidade de 6 a 8%. A terceira onda foi mais moderada e aconteceu no início de 1919, de fevereiro a maio daquele ano.

Décadas depois da epidemia, foi descoberta a carta de um médico americano com relato dramático sobre os sintomas. O texto, publicado no “British Medical Journal”, diz: “Desenvolvem rapidamente o tipo mais viscoso de pneumonia jamais visto. Duas horas após (os pacientes) darem entrada, têm manchas castanho-avermelhadas nas maçãs do rosto e algumas horas mais tarde pode-se começar a ver a cianose estendendo-se por toda a face a partir das orelhas, até que se torna difícil distinguir o homem negro do branco. A morte chega em poucas horas e acontece simplesmente como uma falta de ar, até que morrem sufocados. É horrível.”

No Brasil os vírus foram trazidos por contágio no norte da África, numa colônia francesa, em setembro de 1918. Provavelmente Recife foi o primeiro porto brasileiro a ser infectado com a chegada do navio da marinha brasileira, o Demerara, que depois seguiu para Salvador e Rio de Janeiro e, em novembro de 1918, aportou na Amazônia. Logo, nossos portos foram os principais focos de disseminação da doença.

Num primeiro momento, houve dúvidas das autoridades e da imprensa sobre se a doença realmente estava no Brasil. A estrutura de saúde pública era precária e a vigilância sanitária quase inexistia. Logo após, entretanto, realidade se impôs.

A pandemia chegou a matar mais de 35 mil pessoas. Segundo o Instituto Butantã, foram 12.700 no Rio de Janeiro, 6.000 em São Paulo, 1.316 em Porto Alegre, 1.250 em Recife, 386 em Salvador e quase 900 em Manaus. As autoridades de saúde, entretanto, estimam que o número de mortos possa ter sido bem maior. Na realidade, muitas pessoas morreram sem obituário ou sequer entraram para as estatísticas.

No Rio de Janeiro, a doença acometeu o Presidente da República reeleito, Rodrigues Alves, que faleceu antes da posse, em 1919. Além dele, também perderam a vida outros insignes brasileiros como Anália Franco, importante educadora e Eurípedes Barsanulfo, educador benemérito e médium fundador do Espiritismo no país.

A periculosidade da infecção levou à imposição de rigorosas medidas sanitárias. Foram fechadas escolas, estabelecimentos comerciais, cinemas, cabarés, bares; festas populares e partidas esportivas foram proibidas a ferro e fogo, tudo isso para evitar a aglomeração de pessoas. Por mais de um ano a vida social limitou-se ao máximo.

No clima de horror e desespero gerado pela pandemia, diversas explicações rondavam o imaginário social. Havia aqueles que pensavam que o apocalipse estava por vir. A guerra e a peste seriam, então, a punição divina por pecados cometidos, pela devassidão e pelo materialismo. Outros debitavam à passagem de cometas pelo orbe. Ainda havia aqueles que creditavam a contaminação aos inimigos bélicos.

“Quem não morreu na Espanhola?”, registou Nelson Rodrigues, recém-chegado ao Rio de Janeiro, em suas “Memórias”. O dramaturgo produziu um dos mais impressionantes registros de uma doença na literatura brasileira.

“A gripe foi justamente a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer”.

“Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo insuportável para os outros defuntos… Durante toda a Espanhola, a cidade viveu à sombra dos mortos sem caixão”.

As formas de morrer conheceram novos parâmetros. “Morrer na cama era um privilégio abusivo e aristocrático. O sujeito morria nos lugares mais impróprios, insuspeitados: na varanda, na janela, na calçada, na esquina, no botequim. Normalmente, o agonizante põe-se a imaginar a reação dos parentes, amigos e desafetos. Na Espanhola não havia reação nenhuma. Muitos caíam rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. E ficavam lá, estendidos, não como mortos, mas como bêbados. Ninguém os chorava ninguém. Nem um vira-lata vinha lambê-los. Era como se o cadáver não tivesse nem mãe, nem pai, nem amigo, nem vizinho, nem ao menos inimigo”.

A forma de lidar com os corpos era igualmente aterradora. “Vinha o caminhão de limpeza pública, e ia recolhendo e empilhando os defuntos. Mas nem só os mortos eram assim apanhados no caminho. Muitos ainda viviam. Mas nem família, nem coveiros, ninguém tinha paciência. Ia alguém para o portão gritar para a carroça de lixo: ‘Aqui tem um! Aqui tem um! ‘. E, então, a carroça, ou o caminhão, parava. O cadáver era atirado em cima dos outros. Ninguém chorando ninguém”.

Se os próprios familiares não mais tinham ânimo para rituais, os carregadores muito menos. Nem para esperar o desfecho da morte. “E o homem da carroça não tinha melindres, nem pudores. Levava doentes ainda estrebuchando. No cemitério, tudo era possível. Os coveiros acabavam de matar, a pau, a picareta, os agonizantes. Nada de túmulos exclusivos. Todo mundo era despejado em buracos, crateras hediondas. Por vezes, a vala era tão superficial que, de repente, um pé florescia na terra, ou emergia uma mão cheia de bichos”.

“De repente, passou a gripe”.

Mas com o fim da epidemia as coisas não mais foram as mesmas. “A peste deixara nos sobreviventes não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte. Lembro-me de um vizinho perguntando: ‘Quem não morreu na Espanhola?’. E ninguém percebeu que uma cidade morria, que o Rio machadiano estava entre os finados. Uma outra cidade ia nascer. Logo depois explodiu o Carnaval. E foi um desabamento de usos costumes, valores, pudores”.

A pandemia passou e, no Brasil, o Carnaval de 1920 representou um desafogo e a euforia geral tomou conta da população. Em 1938, referindo-se a esse período, Carmem Miranda gravou “E o Mundo Não se Acabou”. A música, composta por Assis Valente, expressa a atmosfera apocalíptica da aparição dos cometas no contexto pandêmico:

“Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar,

Por causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar,

E até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada,

Por causa disso nessa noite lá no morro não se fez batucada…

Acreditei nessa conversa mole

Pensei que o mundo ia se acabar

E fui tratando de me despedir

E sem demora fui tratando de aproveitar

Beijei na boca de quem não devia

Peguei na mão de quem não conhecia

Dancei um samba em traje de maiô

E o tal do mundo não se acabou”…


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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