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Não importa o contexto da pandemia, os mais pobres serão sempre os mais desprotegidos

Entre erros e pauladas de cego, o vírus invisível e mortífero foi deslizando, sem maiores obstáculos, por todos os resquícios
Carolina Vásquez Araya
Diálogos do Sul
São Paulo (SP)

Tradução:

Entre erros e pauladas de cego, o vírus invisível e mortífero foi deslizando, sem maiores obstáculos, por todos os resquícios deste enorme pátio de galinheiros onde vivemos, graças à oportuna confusão dos ignorantes mandões do lugar. Digamos que estão confusos diante deste inimigo que ninguém consegue capturar, porque afirmar que tenha sido introduzido de propósito – embora algo disso se rumora em alguns círculos – constitui uma afrenta contra o bom espírito e a transparente consciência dos amos do planeta, o que foi esclarecido diante da mídia em um tom de justa indignação. Enfim, o assunto agora é que já ninguém está fora de perigo. O bicho inominável conseguiu se introduzir sem maior problema até nas cortes celestiais e mandou para a cama príncipes e ministros, mas também milhões de aves menos afortunadas.

O galo mais altaneiro e impertinente aproveitou sua grande influência e, mesmo que a imprensa não suporte seus arrebatamentos, conseguiu suficiente audiência para emitir com absoluta segurança todo tipo de hipóteses, cada uma mais descabelada que a outra. Começou afirmando seu convencimento de ter informação sobre a origem do mal e depois prometeu uma vacina “expressa” para antes do fim do ano. É que o bicho, segundo este arrogante penoso, tinha sua origem em um galinheiro inimigo lá muito longe de seu território. Depois negou, mas o mal já estava feito e todos repetiram o conto até cansar, apesar dos esforços de outros galos mais sábios para deter especulações perigosas e a maledicência das cortes. No entanto, pouco a pouco e em uma confusão absoluta, os galinhos menores começaram a repetir as consignas do galo maior e em todos os galinheiros reinou uma total confusão porque ninguém sabia com certeza qual era o caminho a seguir.

Entre erros e pauladas de cego, o vírus invisível e mortífero foi deslizando, sem maiores obstáculos, por todos os resquícios

Tânia Rêgo / Agência Brasil
No Rio de Janeiro, um usuário de transporte público usa máscara para se proteger do coronavírus.

Com tudo isso, as pobres aves habitantes dos níveis inferiores dos galinheiros, começaram a perceber que passava o tempo e ninguém sabia com certeza o que fazer para parar os contágios e salvar-se de morrer asfixiadas. Foram encerradas, separaram as contagiadas, ordenaram o confinamento com horários estritos, as obrigaram a cobrir o bico e foram impedidas de sair para comer. Nada disso funcionou e então, preocupados os mandantes pela perda de renda, relaxaram as restrições, mas sem haver pesquisado se serviam de algo ou não. Enfim, passaram meses e não havia maneira de saber como manejar a crise.

Com tudo isso, os mais ricos e poderosos começaram a perseguir a galinha dos ovos de ouro: a vacina. Conscientes da importância dessa labuta, não duvidaram nem um instante em estabelecer tratos e iniciar conciliábulos para negociar os benefícios mais vantajosos dessa prometedora empresa. Não representou qualquer preocupação que seguissem caindo os franguinhos e as poedeiras. Esses grandes empreendedores viram na fabricação da vacina o negócio do século e decidiram agenciar a exclusividade e, é claro, com ela os enormes lucros desta possível e transcendental descoberta.

Enfim, a vacina inexistente causou uma revoada de penas por aqui e por lá com a promessa de uma imunidade não garantida e que – não há dúvida! – será tão cara como para resultar inacessível às capas pobres. Assim estão as coisas e é fácil deduzir como serão os meses futuros e talvez os anos vindouros enquanto os galos maus seguem se receitando todos os privilégios graças a que têm – e sempre tiveram – o controle de tudo.

As capas mais pobres serão sempre as mais desprotegidas.

*Colaboradora de Diálogos do Sul da Cidade da Guatemala

Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Carolina Vásquez Araya Jornalista e editora com mais de 30 anos de experiência. Tem como temas centrais de suas reflexões cultura e educação, direitos humanos, justiça, meio ambiente, mulheres e infância

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