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Campeões de vendas, livros confirmam ignorância de Trump e total caos de seu governo

Too Much and Never Enough, de Mary Trump, sobrinha do presidente, junta-se a outras três obras analisando a administração Trump que se tornaram best-sellers
Carlos Gustavo Poggio
OPEU
São Paulo (SP)

Tradução:

“Os cidadãos não dormiriam tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis”. Essa famosa passagem, comumente atribuída ao chanceler alemão Otto Von Bismark, foi articulada originalmente por um contemporâneo seu, o poeta estadunidense John Godfrey Saxe. Na verdade, foi apenas a partir dos anos 1930 que a frase passou a ser atribuída ao prussiano. Na formulação original de Saxe: “as leis, como as salsichas, deixam de inspirar respeito, na medida em que sabemos como são feitas”.

Nos dias de hoje, as pessoas sabem um pouco mais sobre como salsichas e leis são formuladas. No entanto, ainda não deixamos de nos surpreender sempre que nos deparamos com os detalhes da confecção de ambos. Faço essa breve digressão no ramo da charcutaria à guisa de introdução ao que poderíamos chamar do quarteto literário sobre o (dis)funcionamento da administração Trump.

O sucesso do lançamento este mês de Too Much and Never Enough, de Mary Trump, sobrinha do presidente estadunidense, junta-se a outras três obras analisando a administração Trump por dentro e que se tornaram best-sellers nos Estados Unidos: Fire and Fury (2018); de Michael Wolff (publicado no Brasil como Fogo e fúria: por dentro da Casa Branca de Trump, no mesmo ano); Fear (2018), de Bob Woodward; e, mais recentemente, The Room Where it Happened: A White House Memoir (2020), de John Bolton.

Nenhum dos quatro livros traz grandes surpresas já que, assim como as salsichas, temos mais ou menos uma ideia do que a Casa Branca de Trump é feita. Mas testemunhar os detalhes dessa confecção é sempre revelador.

Os livros de Wolff e Woodward, publicados no distante ano de 2018, mostram-nos o início dos anos Trump, ao passo que o de Bolton nos permite testemunhar os anos seguintes. Mary Trump evidentemente não fornece nenhum detalhe sobre a administração do tio, mas disseca uma outra salsicha: a cabeça do mandatário norte-americano. Wolff e Woodward escrevem da perspectiva de jornalistas experientes, ao passo que Bolton oferece o ponto de vista de quem, de fato, participou do governo Trump.

Too Much and Never Enough, de Mary Trump, sobrinha do presidente, junta-se a outras três obras analisando a administração Trump que se tornaram best-sellers

Crédito da montagem: Equipe OPEU
Nenhum dos quatro livros traz grandes surpresas já que, assim como as salsichas, temos mais ou menos uma ideia do que a Casa Branca de Trump

Caos, inépcia e ignorância

Os três livros confirmam a existência de uma administração caótica e de um presidente profundamente ignorante, tratado pelas pessoas que o cercam – e cientes dessa ignorância – como uma criança mimada. Ou seja, para quem acompanha o Twitter de Trump diariamente, nenhuma novidade. Um trecho famoso do livro de Wolff, por exemplo, foi o relato de que o agora ex-secretário de Estado de Trump Rex Tillerson o teria chamado de “fucking moron”. O fato de que Trump já se referiu a si próprio em público por mais de uma vez como um “gênio muito estável” apenas confirma as palavras atribuídas a Tillerson.

Poucos meses depois da publicação do livro de Wolff, Bob Woodward (bem mais respeitado que Wolff, a propósito) publicou Fear, detalhando o comportamento dos auxiliares de Trump, ao lidar com um presidente com essas características. Por exemplo, Woodward relata que auxiliares tiravam papéis com propostas consideradas bizarras da mesa de Trump para que ele não os assinasse. Woodward também conta que o também agora ex-secretário da Defesa James Mattis teria dito que Trump tem o nível cognitivo de uma criança em fase escolar.

Lidas em conjunto, as obras de Wolff e Woodward fornecem um panorama revelador dos primeiros anos da administração Trump (no caso de Wolff, também de antes da eleição).

Tendo participado por mais tempo e mais diretamente do governo Trump, o livro de Bolton oferece uma perspectiva sombria dos impactos dessa ignorância, particularmente na área de política externa. O autor relata, por exemplo, que Trump não sabia que o Reino Unido tinha armas nucleares e achava que a Finlândia era parte da Rússia. Bolton foi conselheiro de Segurança Nacional de Trump, o que significa que, se considerarmos as declarações de Tillerson e de Mattis, citadas acima, temos uma equipe completa na área de política externa (secretário de Estado e da Defesa e conselheiro de Segurança Nacional) avaliando o presidente da maior potência do planeta como um inepto. As revelações de Bolton são bastante extensas e incluem, entre outras barbaridades, a informação de que Trump teria demonstrado concordância com a existência de campos de concentração na região de Xinjiang na China.

Mary sobre Trump: ‘ele sabe que não é nada do que ele diz ser’

O recente livro de Mary Trump entra em categoria diversa. A autora não apenas é sobrinha do presidente, como também é psicóloga com especialização em esquizofrenia. Dessa forma, o livro pode ser classificado na categoria de biografia psicológica. Do ponto de vista da ciência política, o livro poderia interessar àqueles que se debruçam sobre a abordagem de análise cognitiva em política externa. Mary Trump nos ajuda a compreender as origens psíquicas dos comportamentos descritos por Bolton, Wolff e Woodward. O subtítulo do livro não deixa dúvidas de seu conteúdo: “Como Minha Família Criou o Homem Mais Perigoso do Mundo”.

No livro, Trump (chamado o tempo todo de “Donald”) é descrito como alguém que buscava sempre a aprovação do pai, que, por sua vez, era uma figura sem nenhum senso de humor e que tinha prazer em humilhar os outros. Quem mais sofreu com esse comportamento foi Freddy, irmão mais velho de Donald e pai de Mary, autora do livro. Freddy não era afeito aos negócios da família e desejava ser piloto de avião, o que conseguiu por alguns meses. Durante esse tempo, ele pensou que poderia construir uma carreira independente do pai rico.

Freddy Trump foi obrigado, porém, a desistir e a abandonar a companhia aérea em que trabalhava por conta do alcoolismo, retornando para o império familiar, onde era constantemente humilhado pelo pai, inclusive em frente aos empregados da empresa. Donald, por sua vez, queria evitar a todo custo o destino do irmão mais velho e buscava constantemente a aprovação paterna.

O alcoolismo de Freddy foi ficando cada vez pior, até sua morte aos 42 anos de idade. Mary Trump descreve as reações tanto do tio Donald, como de seus avós, como bastante frias. Não houve emoção no velório. Anos depois, quando o pai de Trump morreu, Mary descobriu que ela e seu irmão tinham sido tirados da herança. Ao ligar para a avó, mãe de Trump, ouviu dela que isso era natural, pois Freddy não valia um centavo.

A partir desse contexto familiar. o quadro psicológico que Mary Trump pinta do tio não é muita novidade: narcisista, acostumado à mentira e com enorme necessidade de autoafirmação. Ainda assim, é interessante o detalhamento de alguns episódios da vida familiar de Trump, em especial os episódios da morte do irmão, do pai e da mãe, nessa ordem. O diagnóstico de Mary é cirúrgico: “Donald não é apenas fraco. Seu ego é algo frágil que precisa ser reforçado a todo o momento, porque, lá no fundo, ele sabe que não é nada do que ele diz ser”.

Como afirmei, nenhum dos quatro livros aqui citados apresenta grandes novidades, dado que Trump confirma todas as manhãs pelo Twitter muito do que foi dito pelos autores. Mas não deixa se de ser espantoso ver tão de perto os detalhes da confecção da salsicha.

Carlos Gustavo Poggio é doutor em Relações Internacionais, professor da FAAP e autor de Brazil, the United States, and the South American Subsystem: Regional Politics and the Absent Empire, publicado pela Lexington Books, em 2012. Escreveu o prefácio de Revelando Trump: a história de ambição, ego e poder do empresário que virou presidente, de Marc Fisher e Michael Kranish (2017).


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Carlos Gustavo Poggio

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