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ToggleFalemos do holocausto imposto à população civil japonesa! Recordemos o dia em quase cem mil pessoas, em Hiroshima, morreram incineradas pela bomba atômica e cujo efeito da radioatividade continuou matando milhares por meses e anos.
Para tal, não existe uma fonte melhor que o diário escrito por um médico japonês, o doutor Hachiya, o qual sobreviveu ao holocausto, mas morreu poucos meses após por envenenamento radioativo.
Ali se aprende mais sobre os fatos sucedidos que em qualquer outra descrição posterior.
Seu relato abrange cinquenta e seis dias, entre o 6 de Agosto, dia fatídico da detonação da bomba que os americanos denominavam de “little boy”, e o 30 de setembro em 1945.
Como toda literatura japonesa, o diário é escrito com precisão, delicadeza e responsabilidade. Quase toda página é motivo para reflexão.
Em maio de 1945, a Segunda Guerra praticamente chegava a seu fim com a rendição da Alemanha Nazista às tropas Soviéticas. Os aliados então, vitoriosos em toda Europa, disputavam entre si futuras áreas de influência e dominação.
Em abril de 1945, falecera repentinamente o presidente dos USA, F. Roosevelt e seu vice, H. Truman decidira agir contra a supremacia soviética na Europa libertada.
O Projeto Manhattan fora criado para exploração mortal da energia nuclear, por norte-americanos, ingleses e canadenses, em 1941, inclusive por recomendação de Albert Einstein (que disto se arrependeria após o holocausto japonês).
O Projeto recebeu um grande impulso nos últimos anos do conflito e com a ajuda imprescindível de cientistas nucleares nazistas que haviam se entregado às forças americanas (dentre outros Kurt Diebner, Otto Hahn, Walther Gerlach, Werner Heisenberg e Carl Friedrich von Weizsäcker), desenvolveu as primeiras bombas atômicas à base de urânio e de plutônio do mundo.
Em agosto, o Japão era único país beligerante que ainda não assinara a rendição, mas estava absolutamente enfraquecido; até mesmo começara a retirada de suas tropas da China e da Indochina. Em princípios de 1945, teve suas principais cidades arrasadas por bombardeios aliados.
Em 31 de julho, o Japão recebeu ultimátum para que se rendesse, e uma semana depois, sem prévio aviso, primeiro a população civil de Hiroshima e, três dias após, a de Nagazaqui, foram aniquiladas por bombas atômicas despejadas pela Força Aérea dos USA.
Mais de trezentas mil pessoas foram exterminadas!
O massacre de civis japoneses era um claro recado aos russos, que, por sua vez, quatro anos após, em 1949, testariam sua própria bomba nuclear: era o princípio da “guerra fria”!
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O doutor Hachiya, o qual sobreviveu ao holocausto, mas morreu poucos meses após por envenenamento radioativo
“O senhor ainda está vivo?”
Os rostos derretidos de Hiroshima, a sede dos cegos. Dentes brancos salientes nos rostos desfeitos. Ruas, cujas margens são cadáveres. O jovem morto sobre uma bicicleta. Lagos cujas águas evaporaram, cheios de mortos…
Um médico sobrevivente cercado por quarenta feridos, queimados, lesados, enlouquecidos. “O senhor ainda está vivo?” Quantas vezes o doutor Hachiya teve de ouvir essa pergunta?
A noite é iluminada não por eletricidade, mas pela luz do incêndio da cidade, onde os cadáveres estão queimando. Tudo cheira a sardinhas queimadas.
Quando tudo aconteceu, a primeira coisa que o médico sentiu é que estava completamente nu. E assim ficou.
No silêncio da cidade, onde somente se ouve o crepitar, todas as figuras se movem sem barulho, como num filme mudo de terror.
O doutor Hachiya caminha até o hospital, o melhor da cidade e lá ouve os primeiros relatos de pacientes sobre o ocorrido. Compartilha-se tudo, pois tudo ainda é enigmático, um acontecimento absolutamente inexplicável!
E em meio aos mortos e feridos, o autor em seu diário procura coletar peça por peça do ocorrido, suas hipóteses irão se transformando à medida que sua experiência aumenta.
Não há um só traço falso nesse diário! Também nenhuma vaidade.
Uma vez que tudo se passa em um hospital, as observações se atem quase que exclusivamente sobre seres humanos- àqueles que o procuram em seu sofrer e aos que o mantém em funcionamento. Arrolam-se nomes de seres ainda vivos que em poucos dias também estarão mortos.
Outros, vindos de fora, de outra cidade, em busca de visitar parentes enfermos ou desaparecidos, também lotam o hospital. E então, a alegria de encontrar com vida alguém que se julgava morto é avassaladora.
O hospital é o melhor da cidade, uma espécie de paraíso comparado com os outros, por isso tantos o procuram e muitos conseguem nele se abrigarem.
À noite, as únicas luzes acessas são os incêndios na cidade. E os mortos incinerados em holocausto são os doadores dessas luzes.
Grupos de pessoas se reúnem em torno de uma única vela e começam a falar do inusitado do acontecimento. Cada um deles procura complementar o seu relato por meio do relato dos outros e é como se tivessem de juntar fotos esparsas de um filme.
Se alguém decide ir à cidade, vai-se abrindo caminho por entre a destruição, ou escavando em busca de bens abandonados; volta-se, então, para a companhia dos moribundos, ainda esperançosos de viver.
Será verdade que só em seu maior infortúnio conseguimos ver os outros seres humanos como nós mesmos? Será o infortúnio aquilo que os homens mais possuem em comum?
O caso de Hiroshima trata-se da catástrofe mais concentrada que já se abateu sobre seres humanos!
Numa passagem do seu diário, o doutor Hachiya pensa em Pompeia, mas nem mesmo esta oferece um termo de comparação. Sobre Hiroshima se abateu uma catástrofe que foi planejada, testada e executada com a maior precisão possível por humanos! A natureza está fora do jogo.
A visão da catástrofe é diferente dependendo se foi vivenciada dentro da cidade onde apenas se vê e nada se ouve, ou fora dela, onde também se ouve.
Mais adiante no diário, temos a descrição de um homem que viu a nuvem atômica sem estar diretamente exposto a ela. E sua beleza o arrebata: o brilho colorido, suas bordas bem delimitadas, as linhas retas que se propagam pelos céus a partir dela.
Numa catástrofe de tais dimensões, o que significa sobreviver? As anotações deste médico, um médico moderno particularmente consciencioso, habituado a pensar cientificamente, e, em face de um fenômeno tão maldito, não consegue compreender com o que está lidando!
Só no sétimo dia ele fica sabendo, por uma visita vinda de fora, que Hiroshima fora assolada por uma bomba atômica!
Um capitão do exército, seu amigo, lhe traz de presente uma cesta de pêssego. “É um milagre o senhor ter sobrevivido! Afinal a explosão de uma bomba atômica é uma coisa horrível”.
“Uma bomba atômica, exclamei sentando muito lento, mas essa é a tal bomba que eu ouvi dizer que poderia mandar Formosa pelos ares com não mais de 10 gramas de hidrogênio?”
Desde os primeiros dias, cumprimentam o doutor Hachiya pelo fato de estar vivo. É um homem respeitado e amado; entre as visitas que recebe estão pacientes agradecidos, companheiros de escola, amigos do tempo em que a cidade existia, parentes. A alegria por ele ter sobrevivido não tem limites. E trata-se de um milagre que lhes causa certo espanto. E o doutor também se alegra pelos amigos que sobreviveram.
Há diversas variantes na narrativa. Um paciente do hospital escapou de sua casa que queimava sem poder carregar a esposa, que julga estar morta. Logo retorna à casa destruída e procura pelos restos mortais da mesma. No lugar onde a vira pela última vez encontra ossos, que leva para o hospital e os deposita em uma espécie de altar, num gesto da mais completa devoção. Quando talvez depois de alguns dias, leva os ossos para família de sua mulher no campo, aí a reencontra salva e sem ferimentos. De alguma forma fora levada para um lugar seguro por um caminhão militar que passava por ali.
Aqui há algo mais que sobrevivência: é uma espécie de retorno dos mortos, a experiência mais forte e extraordinária que um ser humano pode vivenciar!
Entre os fenômenos mais notáveis do hospital está a irregularidade da morte. De homens que entram queimados e marcados, espera-se que morram ou que recuperem a saúde. É duro assistir ao agravamento cada vez mais intenso de seu estado; alguns, porém, parecem superar esta fase, pouco a pouco melhoram, acredita-se que já estejam salvos, quando inesperadamente adoecem novamente e subitamente apresentam risco de vida. Há outros, inclusive enfermeiros e médicos que de início parecem ilesos. Trabalham de noite e de dia com todas as suas energias e, de repente, apresentam sinais de doenças e estas se agravam progressivamente até eles morrerem.
Jamais se saberá com certeza se alguém escapou do perigo; os efeitos retardados da bomba põem abaixo todos os prognósticos médicos normais. O médico logo percebe que está tateando no escuro e esforça-se de todas as maneiras, mas por não saber de que doença se trata, vê-se a si próprio numa era pré-medicina e tem que se contentar em oferecer consolo em vez de cura.
Ao mesmo tempo em que anda às voltas com a decifração dos sintomas da doença nos outros, o doutor Hachiya torna-se, ele próprio, paciente. Cada sintoma que descobre nos outros, ele os procura secretamente no próprio corpo. A sobrevivência é precária e nada estará assegurado tão cedo.
Jamais, entretanto, o médico perde o respeito pelos mortos, e fica horrorizado com o desaparecimento deste respeito por parte de outros. Quando vai à pequena cabana de madeira, aonde um colega vindo de fora faz autópsia, não deixa de curvar-se respeitosamente perante o cadáver.
Toda noite, corpos são queimados ante a janela de seu quarto do hospital. Bem ao lado do local onde isto ocorre, há uma banheira. Na primeira vez em que presencia uma cremação, ouve alguém perguntar dessa banheira “quantos você já queimou hoje?” A impiedade desta situação o revolta profundamente.
Entretanto, poucas semanas depois, ele está jantando com um amigo no seu quarto, enquanto ocorre uma cremação e ele nota um cheiro como o de sardinhas queimadas e segue comendo.
A honradez e honestidade deste diário estão acima de qualquer suspeita. O autor é um homem de cultura e moral elevadas. Como todos nós, está preso às tradições de sua origem. Suas questões e dúvidas se movem no interior da esfera médica na qual são permitidas e necessárias.
Ele acreditou na guerra, aceitou a política militarista do seu país, e embora tenha observado no comportamento da casta de oficiais militares muita coisa que não o agradou, considera seu dever patriótico calar sobre isso. Mas é justamente esse estado de coisas que torna seu diário mais impressionante. Pois nele, não vivenciamos apenas a destruição de Hiroshima pela bomba atômica, mas nos tornamos testemunhas do efeito que tem sobre o médico a conscientização da derrota do Japão.
Nesta cidade totalmente destruída, não é ao inimigo que se sobrevive, mas à família, aos colegas e concidadãos. Ainda se está em guerra e os inimigos, de quem se deseja a morte, estão muito distantes. As pessoas se sentem ameaçadas por esses inimigos e a queda da bomba monstruosa intensifica essa ameaça. No caso da bomba, a morte vem de cima, mas revidar só é possível à distância.
Passados alguns dias, um homem vem de outra localidade e relata como fato absolutamente certo, ouvido de fonte fidedigna, que os japoneses revidaram aos americanos com as mesmas armas, devastando igualmente diversas grandes cidades da América.
A atmosfera no hospital modifica-se no mesmo instante, mesmo entre os gravemente feridos. As pessoas se transformam novamente em massa e se creem salvas da morte por essa mudança de rumo. É provável que enquanto esse entusiasmo perdurar, muitos acreditem que agora não mais têm que morrer.
Por isso, a notícia da capitulação do Japão no décimo dia após a bomba, teve um impacto mais duro.
O Imperador jamais falara pelo rádio. De certo, seu discurso permanece também agora incompreendido, por ser proferido na linguagem arcaica da Corte. Mas a voz é reconhecida como sua e, sua proclamação é traduzida. Ao anúncio do nome do imperador, todos os que se encontram reunidos no hospital curvam-se respeitosamente. Nunca se ouvira a voz do Imperador, ela não havia anunciado a guerra. Mas ela agora a repudia. E somente sua voz poderia tornar a derrota crível, de outro modo haveria quem duvidasse.
Tal anúncio atinge mais duramente os pacientes do hospital que a própria destruição da cidade, a própria doença e a morte dolorosa que muitos deles têm diante dos olhos. Nenhuma mudança de rumo é concebível: há que se suportar ferimento e morte em todo o seu peso, eles não se deixam mitigar.
Tudo é incerto, não há qualquer esperança.
Surgem então dois partidos, um a favor, outro contra o fim da luta. Mas a ala dos que ainda desejariam a continuação da guerra está em enorme dificuldade: está contra a ordem do Imperador!
É curioso acompanhar, no decorrer dos dias que se seguem, a consciência do doutor Hachiya. Existiu um Poder do Mal. O Poder dos militares que conduziram o país ao infortúnio, em contraponto a um Poder do Bem, o Imperador, que desejava o bem do país! Dessa forma subsiste uma instância de poder, para o doutor, que é a verdadeira estrutura de subsistência que permanece inabalada.
A partir de agora seus pensamentos giram incessantemente em torno do Imperador. Este como todo o país fora vítima dos militares. Deve-se sentir uma profunda pena do Imperador, logo sua vida tornou-se ainda mais preciosa. Foi humilhado por algo que não queria de forma alguma, a guerra! Isso permite que todos os súditos reais também procurem algo que não queriam: a mesma guerra!
Tudo aquilo que desde sempre se observou nos militares, sem que se ousasse expressá-lo: a arrogância, a estupidez, o desprezo por todo aquele que não pertence à sua amaldiçoada casta! Os militares se tornam os inimigos em lugar do inimigo, contra o qual não se deve mais lutar!
Mesmo em meio à catástrofe que acometeu a cidade, a imagem do Imperador foi salva!
Continuam chegando pessoas que, espantadas em encontra-lo com vida, o felicitam. Por muito tempo ainda os pacientes que morrem seguem sendo cremados em frente à janela do hospital: a mortandade continua.
É como uma nova e mortal epidemia, desconhecida. Sua causa exata e sua evolução ainda não foram investigadas.
Só pelas autópsias, se começa aos poucos a compreender com o que se está lidando. O desejo de investigar essa nova doença não abandona o doutor por um instante sequer.
Tal como a estrutura tradicional do país, cujo cume é o Imperador, permanece inabalável, assim também ele, enquanto médico moderno, também permanece inabalável.
O mais intangível, porém, nesse homem, é seu respeito pelos mortos. Já se falou aqui como é difícil de suportar que as pessoas se acostumem à morte; para o doutor Hachiya esta permanece sempre algo muito sério, não se tem a sensação de que para ele, os mortos se amalgamaram numa máscara na qual o indivíduo não mais conta. Ele pensa em cada morto como numa pessoa.
Não se deve esquecer que ele é um médico, portanto, profissionalmente exposto à indiferença perante a morte. Porém, com tudo o que aconteceu, tem-se a impressão de que para ele importa cada indivíduo que vive e viveu, cada indivíduo tal como era efetivamente ou tal como carrega na própria lembrança.
O 44º dia após a desgraça é dedicado à memória dos mortos. Com sua bicicleta, o médico vai à cidade e visita cada lugar consagrado para os que se foram, pelos seus próprios e também por aqueles de cuja morte tomou conhecimento.
“Cerro os olhos para visualizar uma vizinha que morrera e ali ela aparece. Tão logo abro os olhos, a imagem se desvanece e ao fecha-los novamente, ela torna a aparecer”.
O médico procura seu caminho por entre os escombros e não se pode dizer que vagueia perdido, ele sabe exatamente que procura e o acha: o lugar dos mortos! Nada se poupa, traz tudo de novo à mente. Ora por cada um deles.
O doutor Hachiya chama-se a si próprio um budista. Eu, humildemente, um humanista!
Referências: 1. Hachiya, M.. Diário de Hiroshima./ 2. Canetti, E. A consciência das palavras.
Carlos Russo Jr, colaborador da Diálogos do Sul
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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