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Ganhar a guerra sem perder a memória: relembre os 43 anos do Tratado Torrijos-Carter

Aos destrambelhados: Ganhar a guerra sem perder a memória, é jamais decapitar uma causa coletiva por uma extravagância egoísta, individual contra o tempo
Norma Núñez Montoto
Diálogos do Sul
Cidade do Panamá

Tradução:

“… que ainda continuam dispersos entre o fanatismo, o oportunismo ou a liderança comprometida para içar a vela desde o atracadouro, para o país íntegro, ungido de equidade, inclusão e cidadania.” 

Omar Torrijos

Desde que entrou no tempo, Omar Torrijos tomou posse de sua existência. Havia nascido em Santiago de Veraguas, Panamá,  em 13 de fevereiro de 1929, e caiu em Coclesito em 31 de julho de 1981. Tinha então, 52 anos. 

Sua vida tem sido inventariada à medida que a distância vai se alargando entre os ano que viveu e os que Omar deveu viver. 

Prematura, talvez, não foi sua morte, senão sua existência, porque em cinquenta e dois anos de presença física estava destinado a cumprir uma agenda antecipada ao seu tempo. Desse breviário destaca, sem dúvida, sua incomensurável urgência em recuperar a soberania, passo obrigado para o aperfeiçoamento de nossa independência.

Eu o recordo elaborando pelo mundo aquelas páginas, bracejando a Pátria Vida para uma margem que fugia apavorada pelos espantos lúgubres da perseguição, bem o sabia, ensaiando o epílogo mais digno possível nesse longo e tortuoso caminho. Assim o encontrei naquele cinco de setembro de 1977 em Washington, onde me encontrava para fazer a cobertura jornalística da assinatura dos Tratados Torrijos Carter.

A poucas horas de produzir-se este acontecimento, que teria lugar em 7 de setembro desse ano, e apesar do contraponto persistente de alguns meios de comunicação dos Estados Unidos para distorcer a opinião pública desse povo, esta começava a se inclinar a favor da assinatura dos Tratados, cujos signatários seriam o Presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter e o Chefe de Governo do Panamá, Omar Torrijos Herrera.

Os especialistas em protocolo e segurança nos confirmaram que o fim de semana havia girado em torno à reunião de Presidentes e Chefes de Estado que chegariam a Washington para participar na cerimônia. Nas fontes oficiais se insistia que a reunião diplomática de tanta hierarquia daria lugar à imposição das mais estritas medidas extraordinárias de segurança que Washington jamais havia conhecido.

O serviço secreto estadunidense teria a responsabilidade de dar proteção aos Presidentes e Primeiros Ministros que iniciariam sua chegada na segunda-feira, 5 de setembro, procedentes de países da América Latina, do Caribe e do Canadá, para assistir na noite da quarta-feira, dia 7 de setembro a assinatura dos Tratados.

Aos destrambelhados: Ganhar a guerra sem perder a memória, é jamais decapitar uma causa coletiva por uma extravagância egoísta, individual contra o tempo

Wikimedia Commons
Assinatura dos Tratados Torrijos Carter sobre o Canal do Panamá

Ironia do destino: Noriega comandou a coordenação conjunta de segurança

As Agências de Segurança dos Estados Unidos cumpririam as funções de vigilância e segurança dos mandatários, mas cada Chefe de Estado podia levar seus próprios agentes de segurança.

O General Omar Torrijos confiou sua segurança ao então Tenente Coronel Manuel Antonio Noriega, o qual encabeçando a segurança panamenha protagonizou a coordenação conjunta com a segurança dos Estados Unidos. Torrijos havia reiterado: “Me sinto sumamente orgulhoso, me sinto altamente satisfeito, distinguido de ser o Comandante dos seis mil homens mais leais que conheci na vida”.

O Departamento de Estado havia anunciado no sábado, 3 de setembro, que vinte e quatro nações do hemisférios ocidental tinham aceitado o convite do Presidente Jimmy Carter para presenciar a assinatura dos Tratados na Organização dos Estados Americanos (OEA).

Torrijos chegaria na segunda-feira à noite e teria uma reunião de introdução com Carter na terça-feira seguinte. Cada Chefe de Estado receberia uma saudação de boas-vindas na Base Aérea Andrews, embora, por questões de segurança, não se informava a hora de chegada de cada governante.

Forte corrente adversa em Washington

O panorama midiático estadunidense não favorecia a assinatura dos Tratados. Estes tinham que ser aprovados pelo Senado antes que pudessem entrar em vigor, e uma forte corrente adversa se respirava em Washington, pelo menos assim o registravam seus jornais, que sublinhavam a oposição no Congresso e, especialmente, assim ressaltavam, o rechaço por parte do povo dos Estados Unidos.

O relógio corria mais rápido que os jornalistas do Terceiro Mundo que nos encontrávamos em Washington para transmitir os fatos desde uma ótica consequente com a luta centenária que os panamenhos havíamos protagonizado, através de tormentosas relações de persistente confrontação com os Estados Unidos e, de alguma maneira, nos sentíamos também donos da festa, legítimos representantes da reivindicação de um continente agredido de maneira obcecada por essa nação, que agora parecia receber-nos com “cara feia” mas que, enfim, era nossa anfitriã. 

Gallup: De menos zero aos 39% a favor dos Tratados

As cifras daquele dia demonstraram outra realidade, por certo não registrada nos meios de comunicação de Washington, e nos permitiram a licença de um sorriso de esperança. A empresa de pesquisas Gallup confirmava que a causa do Panamá havia subido de um suposto quase menos zero a 39% na opinião estadunidense a favor da assinatura dos tratados.

Os jornais que respondiam ao establishment, ressaltavam os 46% que se pronunciavam contra. 15% ainda não haviam tomado partido, o que significava que não estavam definidos contrariamente.  

Iowa, Indiana, Idaho e Luisiana eram contra os Tratados 

Tudo o que era contra o Panamá era apresentado como a única verdade. Assim se difundia que os Estados de Iowa, Indiana, Idaho e Luisiana pediam à Corte Suprema de Justiça estadunidense que proibisse Carter de firmar os Tratados, até que fossem resolvidas questões de ordem constitucional.

Na terça-feira havia sido pedido para esse Tribunal que definisse se seria considerada ou não a solicitação. A ideia era manter em suspenso o ânimo dos que aspirávamos o sossego para nossa Pátria, após a culminação de uma etapa escabrosa da história de nossas relações com os Estados Unidos da América.

De maneira pendular se mantinha a soçobra, embora também se augurasse que a resposta da Corte seria adversa à solicitação de Iowa, Indiana, Idaho e Luisiana.

Os observadores, uma fonte cotidiana da United Press Internacional (UPI) subscreveram que foi precisamente o fato da grande oposição que haviam despertado os Tratados sobre o Canal, o que fez com que o Presidente Carter resolvesse dar ressonância tão faustosa e espetacular à assinatura dos transcendentes documentos, pelo efeito psicológico que tal destaque de harmonia continental poderia ter nos meios da oposição.

Torrijos consolidava a frente interna

Enquanto isso, Omar Torrijos sempre procurava sentir o pulso do povo em torno às decisões que assumiria e sabia que afetariam sua vida de maneira contundente.

Quando chegou a Washington já tinha se reunido com a Assembleia de Representantes de Corregimentos em Sessão Extraordinária, diante dos quais se apresentou com a equipe de negociadores dos Tratados, com o Presidente da República, Engenheiro Demétrio Basilio Lakas e seu Vice-presidente Gerardo González, para informar e escutar opiniões em torno aos Tratados que seriam assinados em setembro. 

Sua voz atávica, pela magnitude da mensagem que trazia, procurava resumir mais de setenta anos de luta de gerações. Falava aos Representantes de Corregimentos, que eu resumo na figura de Héctor Rodríguez, um humilde e inteligente agricultor extraído dos Assentamentos camponeses de Capira, ao qual Omar levou a Washington para que se plasmassem em sua pupila e em sua memória tudo o que nenhum jornalista poderia descrever.  

Diante de Héctor, Omar falava ao Panamá, à América e ao mundo, reiterando que eles sabiam que muitos dos cemitérios de rebeldia deste país estão cheios de cruzes de jovens que se imolaram por ver desrespeitada sua soberania e sua dignidade.  

Omar assegurava que a assinatura dos Tratados era um triunfo e que o país tomaria outro rumo porque, em suas próprias palavras, punha data de aniversário à erradicação de cada uma das estacas colonialistas que nesse momento estavam vigentes.

Omar estava legitimamente orgulhoso, entre outras coisas, porque havia substituído o termo perpetuidade dos Tratados originais, por 23 anos. Ele dizia que perpetuidade era a eternidade mais um. 

A Omar só faltavam quatro anos para cumprir sua tarefa

Omar tinha então 48 anos. Os jovens se impacientavam. Só lhe faltavam quatro anos para cumprir sua tarefa. Nunca reclamou como uma conquista pessoal o triunfo de haver conseguido que os Estados Unidos se sentassem para conversar, negociar e firmar os Tratados.

Sempre reconheceu com muito respeito e admiração a luta de todas as gerações passadas que, dentro de suas próprias circunstâncias, lutaram com todo esforço, valentia e empenho por erradicar o enclave colonial que dividia a Pátria. 

Omar chamava de aristocracia do patriotismo àquelas gerações que se imolaram pela libertação do país. Ele havia escolhido um caminho mais longo, mas sem sangue, sem o sacrifício de não menos de 50 mil jovens panamenhos que por haver “sobressentido” a causa de sua Pátria, estavam testemunhando o que significava a aristocracia do patriotismo do país, os que, segundo Omar, teriam deixado os “destrambelhados”, completamente sem futuros dirigentes, porque o melhor da aristocracia do patriotismo, do talento e da coragem tinha sido imolado nesses 1432 quilômetros quadrados que constituíam a Zona do Canal do Panamá.

Eu vivi o “no trespassing”

Eu sabia, porque vivi diariamente percorrendo às oito milhas de ida e volta entre Arraiján, onde nasci, e a capital, para frequentar a escola secundária. Arraiján é a primeira cidade da Província do Panamá na área oeste do país.

Oito milhas de território nacional cercado com alambrados proibindo em inglês, a passagem para a esquerda e para a direita, no trespassing, porque ali estavam os polígonos de tiro onde treinavam os soldados ianques para ir à guerra.

Oito milhas infestadas de policiais gringos que controlavam a velocidade dos carros e o trepidar do coração, cujas infrações devíamos pagar na Corte de Balboa do Governo dos Estados Unidos.

Creio que nós não tínhamos consciência do que havia entre Arraiján e a Capital, que o que tínhamos era uma servidão, a dispensa concedida pelos Estados Unidos a nós, os verdadeiros donos. 

Escutando Omar falando aos Representantes de Corregimentos, eu sentia que ele decifrava um pouco minha imemorial raiva, quando visualizava desde seu helicóptero o setor de Amador sendo o lar de vinte mil crianças panamenhas que brincariam nesse campo, sem o temor que alguém lhes dissesse que sua presença era ilegal, intrusa, em um solo que a nós pertencia. 

Porque foi precisamente no limite entre Chorrillo e a Zona que um policial gringo, ao ver-me tirando fotos, me perguntou: o que quer fotografar? Eu respondi: o Cerro Ancón. Tomando-me pelos ombros, me deu meia volta para Chorrillo e me disse: “Tira fotos dessas caixinhas de fósforo que isso é o Panamá!”

Foram as mesmas “caixinhas de fósforo” que em 20 de dezembro de 1989 os gringos bombardearam; queimaram as casas com as crianças, pais e mães, e avós dentro. Alguns dos quais talvez tivessem sido dessas vinte mil crianças panamenhas que Omar queria que brincassem no campo de Amador. 

Ganhar a guerra sem perder a memória…

Ganhar a guerra sem perder a memória, não é retórico. É um respiro profundo, doloroso, quente; é a imemorial dor profunda do parto de Joaquina Herrera de Torrijos, a Professora, a que alumbrou a Omar em 13 de fevereiro de 1929.

Ganhar a guerra sem perder a memória, é assumir o compromisso de “sobressentir” a vergonha da Pátria ontem submetida e reconhecer, sem vieses, cálculos, nem egoísmos, a coragem de ter conseguido arrancá-la das garras do bandido.

Ganhar a guerra sem perder a memória, é jamais decapitar uma causa coletiva por uma extravagância egoísta, individual contra o tempo.

Ganhar a guerra sem perder a memória, é não sentir medo do “outro” que se acerca para aprender, participar e somar; trata-se dos “destrambelhados” que dizia Omar, que ainda continuam dispersos entre o fanatismo, o oportunismo ou a liderança comprometida para içar a vela desde o atracadouro, para o país íntegro, ungido de equidade, inclusão e cidadania.

 

Norma Núñez Montoto, jornalista Panamenha

Especial para Diálogos do Sul — Direitos reservados.

Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Norma Núñez Montoto

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