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A conjuntura histórica que pariu Joseph Stalin, autocrata cruel e sem escrúpulos

O isolamento da Rússia, a violência da guerra civil, a necessidade de decisões duras levou a um governo em que imperava o centralismo democrático
Carlos Russo Jr
Diálogos do Sul
São Paulo (SP)

Tradução:

Hobsbawm, olhando desde o final do século XX, diz: “Uma das ironias é que o resultado mais duradouro da Revolução Soviética, cujo objetivo era a derrubada global do capitalismo, foi salvar o seu antagonista, tanto na guerra (contra o nazi-fascismo) quanto na paz, fornecendo-lhe o incentivo na forma do medo — para reformar-se após a Segunda Guerra Mundial e ao estabelecer “o Estado do bem estar social” e a popularidade do planejamento econômico estatal, a reforma do capitalismo”.

Mas ao chegamos ao século XXI, aquelas reformas se dissolveram. Ao neoliberalismo se acoplaram atitudes antiglobalistas, repletas de negativismos, de versões falsas, cínicas e mesmo caricatas de uma realidade tão importante vivida. Torna-se necessário retornarmos à história, da maneira como ela realmente se desenvolveu, seus atores, suas grandezas, seus acertos, erros e, porque não, seus crimes.

Nesta crônica nos propomos a uma análise do poder soviético no período de treze anos, da Revolução de 1917 até o ano 1930, período histórico que possibilitou que Stalin se tornasse o líder supremo (até sua morte em 1954) da U.R.S.S..

A Revolução de Outubro foi um dos eventos políticos, sociais e econômicos mais significativos da história da humanidade, decisiva na história global do século passado. 

Sob a liderança de Lênin e dos bolcheviques, em outubro de 1917, o Governo Provisório  (estabelecido após a queda do Czarismo) foi derrubado, sendo substituído pelo poder dos Sovietes. A facilidade com que o Governo Provisório foi derrubado — segundo Lênin, foi como “erguer uma pluma” – convenceu muitos historiadores da “inevitabilidade” da Revolução. 

No entanto, o próprio Lênin considerava o desfecho incerto, não existia nenhuma inevitabilidade por conta de qualquer tipo de “destino histórico”. Em cartas ao Comitê Central do Partido, em setembro e outubro de 1917, ele insistia que o sucesso dependia inteiramente da velocidade e da coragem com que a insurreição armada fosse executada. “Atrasar o levante é morte… tudo está suspenso no ar”. Mais tarde, Trotsky afirmou que “sem que Lênin (e ele próprio) estivesse em Petersburgo, não teria havido Revolução de Outubro”. 

Talvez uma das razões mais importante do sucesso dos bolcheviques tenha sido a capacidade de militarização da política. De fato, nenhum outro partido político antes deles havia tratado a política como guerra, no sentido literal da palavra e com objetivo não apenas de compelir o inimigo a render-se, mas de aniquilá-lo. E esta inovação deu-lhes vantagens significativas sobre seus oponentes, para os quais a guerra era a antítese da política ou a política feita por outros meios.

Outra razão foi o discernimento político. Ao compreender que a 80% da população russa interessava a divisão e a posse das terras; que para o proletariado o fundamental era ganhar o suficiente para comer; que o exército se desgastara durante a guerra e passara a odiar o oficialato pelos maus tratos, os bolcheviques levantaram as bandeiras de “pão, paz e terra”, embora como após se viu, jamais houvessem seriamente pensado em distribuir terras aos camponeses, mas, sim, em coletivizá-las forçosamente. 

De todos os modos, os bolcheviques, que em princípios de 1917 tinham poucos milhares de ativistas, ao final do ano possuíam em suas fileiras um quarto de milhão de militantes. Eram, então, a única força política de importância no momento da revolução.

Finalmente, um último fato decisivo para a vitória revolucionária foi o comportamento das forças armadas. Naquele momento histórico, o poder bolchevique era o único possível sustentáculo capaz de manter a integridade territorial do velho império czarista. Era ou o socialismo, ou a desintegração. 

Assim o grosso do Exército e da Marinha optou pela manutenção de uma Rússia una e multiétnica.

O isolamento da Rússia, a violência da guerra civil, a necessidade de decisões duras levou a um governo em que imperava o centralismo democrático

Wikimedia Commons
Joseph Stalin

Em 1918, um fator capital, que marcaria os rumos futuros da recém-realizada revolução, aconteceu. A cidade de Petersburgo, o grande polo proletário da U.R.S.S., foi cercada em três frentes pelo Exército Alemão e deixou de ter condições de abrigar o Governo Revolucionário. Este se deslocou oitocentos quilômetros para a ortodoxa Moscou e, de certa forma, distanciou-se dos proletários a quem buscava representar, justamente do proletariado mais consciente e independente do mundo, e o poder, desde agora emanará da distante, eslava e burocrática Moscou.

E a revolução sobreviveu a uma paz imposta pelos alemães, meses antes que os mesmos fossem derrotados pelos antigos aliados dos russos. Também sobreviveu ao cerco promovido pelos vários exércitos vencedores que queriam a destruição da subversão que a Rússia Soviética representava. Setores do antigo exército imperial se reorganizaram como Exército Branco e juntando-se ao Exército Polonês, com armamento francês e inglês, desencadearam uma guerra civil contra o Exército Vermelho e o Governo Soviético. A luta travada foi de incrível ferocidade e capacidade destrutiva e teve a duração de quatro anos.

Embora os reacionários e seus aliados terminassem derrotados em 1921, o recém-construído e vitorioso Estado Soviético teve que lidar com uma situação econômica e social caótica, o que o levou a suprimir toda e qualquer atividade espontânea das massas. 

Imperavam a fome, as doenças, a destruição no campo e o desemprego, a indigência e o desabrigo nas cidades. O sistema de transportes estava arruinado, a produção agrícola somente em 1927 atingiria os níveis de 1914, no pré-guerra. Estima-se que entre os anos 1921 e 1922, cinco milhões de russos tenham morrido de fome. 

Como dois milhões de russos, dentre eles aristocratas, funcionários públicos e intelectuais haviam emigrado da Rússia Socialista, o Estado recém-nascido viu-se na contingência da falta absoluta de pessoal administrativo qualificado.

Ou seja, nenhuma das condições que Marx ou que quaisquer de seus seguidores sempre haviam considerado como essenciais para o estabelecimento de uma economia socialista estavam presentes nessa enorme massa territorial, de enorme atraso e pobreza generalizada. 

A firme esperança de Lênin e dos bolcheviques era que, cumprindo-se as previsões marxistas, as revoluções proletárias fossem desencadeadas em todo o mundo, principiando pela Alemanha, onde se abrigava o partido socialista mais forte de toda a Europa. 

Logo, tomado o poder na Rússia, o fundamental era que o Partido e o povo russo se aguentassem enquanto uma onda revolucionária mundial modificasse o mundo. E o novo regime se aguentou! 

Mas as previsões marxistas falharam redondamente. O capitalismo não se abriu para um apocalipse e a Revolução Russa se viu cercada internacionalmente por países conservadores e antissoviéticos.

Apenas em 1922, cinco anos após a revolução, o poder soviético principiou a estabilizar-se. Somente a mão de ferro do Partido Bolchevique e uma vontade inquebrantável de reconstrução de parcela do povo permitiram a sobrevivência da Rússia como nação independente. 

E este espírito de guerra, com a intolerância e a repressão a ela inerentes, mesmo quando a situação já se havia definido e gradativamente melhorado, permaneceu. 

Para culminar, dois anos após, em 1924, morre o grande líder de todo o processo: Lênin! 

As dificuldades objetivas da implantação do socialismo em um único país, e justamente num dos mais atrasados economicamente do mundo, foram os alicerces dos conflitos internos que resultaram em lutas fratricidas entre os antigos camaradas revolucionários. De todos os modos eles realizaram uma revolução socialista num país economicamente subdesenvolvido, de base essencialmente rural, em que o capitalismo mal dera seus primeiros passos. Foi sobre essa base frágil que se instituiu um sistema de propriedade estatal e de coletivização forçada. Necessitavam transformar sua economia e sua sociedade o mais rapidamente possível, custasse o que custasse.

“Conduziremos a humanidade à felicidade pela força!”, diz Máximo Górki.

Stalin não tomou o poder pós-Lênin com um golpe de Estado. Pelo contrário, ele havia  assumido a Secretaria Geral do Partido, com a aprovação de Lênin e era o candidato mais próximo a sucedê-lo, representante legítimo da burocracia que se organizava junto ao poder, em nome da ditadura do proletariado. 

É absolutamente certo que os objetivos finais dos bolcheviques eram de natureza humanitária, democrática e antiburocrática, mas a lógica da situação geral, a não ocorrência das esperadas revoluções na Alemanha e na Europa, o risco de novas agressões externas, foram fortes demais para que aqueles ideais resistissem. 

A Revolução não começara como um governo de partido único, nem com um governo que excluísse a oposição. O isolamento da Rússia no mundo, a violência da guerra civil, a necessidade imperiosa de decisões duras e difíceis, levou os bolcheviques a construírem um governo em que imperava o centralismo democrático, que rapidamente se transformaria exclusivamente em centralismo sob Stalin, com a exclusão de toda e qualquer oposição, e a supressão dos demais partidos políticos que, com os bolcheviques, haviam realizado a revolução. Lênin ainda tentou, mas suas condições físicas ao final da vida impediram-no de impedir a ascensão do ex-seminarista georgiano ao poder central do Partido e do Estado.

Desse modo, a beligerância converteu-se num traço característico do regime socialista, culminando na fase stalinista, segundo a qual a aproximação de sua “vitória final” seria marcada pela intensificação dos conflitos sociais. 

Os bolcheviques passaram não apenas a desejar a anuência das massas, mesmo à custa da eleição de cultos a personalidades e de atitudes intolerantes, como rejeitavam todas as manifestações de iniciativa independente, toda e qualquer dissidência política e até mesmo artística, como “atitudes contrarrevolucionárias”. No extremo, só sabiam lidar com opiniões diferentes das suas por meio de injúrias e da repressão. 

Tudo o que sabiam era que o Partido estava sempre certo e que as decisões tomadas pelas esferas superiores tinham de cumprir-se na defesa da revolução. 

Em nada se assemelhavam com a velha cultura de esquerda, semeada desde Bakunin e cultivada por Marx e Engels.

Stalin que, em 1926, assumiu com mão de ferro a direção da U.R.S.S. e manteve-se no poder até sua morte em 1954, provou ser um autocrata de ferocidade, crueldade e falta de escrúpulos excepcionais, quase únicas. 

Stalin dirigiu o Partido, como tudo o mais ao seu alcance, pelo poder e pelo medo. Não temos dúvidas de que sob a liderança de outrem, os sofrimentos pelos quais passaram o povo russo e sua intelectualidade, teriam sido muito menores, assim como o número de vítimas dos planos acelerados de desenvolvimento. 

Somente a guisa de exemplo, somente entre 1934 e 1939, entre 4 a 5 milhões de membros e funcionários do partido foram presos por motivos políticos; entre 400 e 500 executados sem julgamento; dos 1827 delegados do congresso do Partido Comunista de 1934, apenas 37 permaneciam vivos em 1939.

Por outro lado, os extraordinários recursos naturais da Rússia muito contribuíram para o desenvolvimento dos Planos Quinquenais. Se ao final dos anos 1930 o consumo mantinha-se ainda muito baixo, o povo tinha trabalho, comida, roupa e habitação a preços controlados e subsidiados pelo Estado, aluguéis, pensões e assistência médica, e, sem dúvida, educação. O analfabetismo foi praticamente erradicado. 

E o sistema de recompensas e privilégios da “nomenclatura”, importante desde a morte de Lênin, apenas perdeu seu controle após a morte de Stalin.

Referências Bibliográficas:

1. Berman, Marshall. As aventuras do Marxismo. Companhia das Letras, 2001.

2. Berman, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar, a aventura da modernidade. Companhia das Letras, 2006.

3. Camus, Albert. O homem revoltado. Editora Record.

4. Aron, Raymond. O ópio dos intelectuais. Três estrelas, 2016.

5. Hobsbawn, Eric. A era dos extremos. Companhia das Letras, 2013.

6. Russo Jr., Carlos. De Dostoievski à Geração Sacrificada. Espaço Literário Marcel Proust, 20 018.

7. Schiaiderman, Boris. A cultura e o fim da União Soviética. Companhia das Letras, 2013.

8. Wilson, Edmund. Rumo à Estação Finlândia. Companhia de Bolso, 2006.

Carlos Russo Jr é colaborador da Diálogos do Sul


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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