No dia 13 de maio é para alguns, dia de celebrar a abolição da escravatura, mas o que realmente acontece para a maioria dos povos que carregam a herança sanguinária da escravidão implantada por seus ancestrais e nossos colonizadores, é a luta interminável pela verdadeira liberdade, direitos sociais e de igualdade entre todos, todas e todes nós.
Não é nenhum mérito para a coroa assinar qualquer tipo de documento e/ou carta naquele 13 de maio de 1888 onde o mundo, sobre grande pressão das potências econômicas Inglaterra e França e em decorrência da Revolução Industrial (1760) e Revolução Francesa (1789) já despertavam para novas formas de exploração e sucateamento da mão de obra e dos contratos de trabalho atraindo imigrantes de diversas partes do mundo para viver uma vida miserável e submissa às elites herdeiras da nobreza e detentoras da máquina de produção.
Não era mais cômodo e nem lucrativo ser dono de escravos, portanto ao “libertá-los” estavam aprisionando aqueles (as) descendentes dos negros e negras que atravessaram o Atlântico vindos (as) da África Ocidental para serem escravos (as) no Brasil e em toda a América, nos porões desumanos dos navios negreiros, assim como muitas obras e poemas retrataram a árdua travessia de africano (as). Aqui faço citação de trecho do poema Navio Negreiro de Castro Alves que já foi gravado na voz de artistas como Caetano Veloso e Maria Bethânia, entre outros.
Reprodução: Pxhere
Em 13 de maio de 1888 a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea.
“…Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?…
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa…
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!…
São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus…
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .
São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe… bem longe vêm…
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N’alma — lágrimas e fel…
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis…
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus …
… Adeus, ó choça do monte,
… Adeus, palmeiras da fonte!…
… Adeus, amores… adeus!…”
No Brasil, já na transição do Império para República, muitas revoltas contra a escravidão, quilombos se levantando contra a coroa, diversos movimentos abolicionistas nos estados brasileiros, a forte influência iluminista, na europa a industrialização a todo o vapor, o surgimento dos operários urbanos esse foi o contexto para que no Brasil a Princesa Isabel assinasse a Abolição da Escravatura.
A liberdade que deram ao negro (a) foi e ainda é uma falsa liberdade. Aqueles (as) que foram escravizados (as) sairam da escravidão para serem aprisionados (as) por um sistema que os mata, sufoca, arrancando qualquer direito social e os esmagando em áreas, consideradas periféricas pela tal “democracia”, palavra que os homens brancos e detentores do poder pronunciam com orgulho.
As lutas da resistência negra se mantém vivas através dos (as) militantes, da educação, da sobrevivência e da cultura que faz da arte, música e poesia suas armas mais potentes.
Aqui trago a letra de uma canção da banda Rappa para ilustrar parte dos temas e causas atuais:
Todo camburão tem um pouco de navio negreiro
Tudo começou quando a gente conversava
Naquela esquina ali
De frente àquela praça
Veio os zomens e nos pararam
Documento por favor
Então a gente apresentou
Mas eles não paravam
Qual é negão? Qual é negão?
O que que tá pegando?
Qual é negão? Qual é negão? Então
Qual é negão? Qual é negão?
O que que tá pegando?
Qual é negão? Qual é negão?
Enquanto a polícia se torna a força opressora dentro do sistema, o slam, o rap e o funk surgem como vozes de levante e resistência das comunidades. Denunciam toda a violência e atentados que sofrem a população negra em nosso país e nos fazem lbrar da herança da escravidão e da dívida social que carregamos.
Nascemos com sangue na mão. Sangue de cada negro que nossos antepassados mataram, torturaram e exploraram, além de carregar nas costas os crimes de estupro contra as negras que, muitos de nós ainda justificam como miscigenação com orgulho.
Um dia, não tão distante, um homem branco, assim como eu me disse:
Não, não existe mais essa desigualdade, muito menos preconceito. Eu mesmo deixo minha empregada negra sentar à mesa para almoçar. Nós a tratamos como se fosse da família.
Bom, a primeira questão que me veio foi:
Se a gente anda por bairros de classe média e alta, o número de moradores brancos é muito maior. Agora se entramos em qualquer favela tem mais negro do que branco. Se no Brasil o número da população negra é bem maior que a branca, já tem algo de errado aí.
E sobre as frases “eu mesmo deixo minha empregada negra sentar à mesa para almoçar” e “nós a tratamos como se fosse da família“, não precisava falar nada, pois já vem carregada de preconceito e desigualdade, mostrando o quão superior e caridoso era aquele sujeito, acreditando estar em posição social bem acima da empregada (negra) que semanalmente trabalhava em sua casa.
Lembro de terminar com a seguinte pergunta:
É mais fácil a polícia, às três da manhã numa rua qualquer, suspeitar e parar você para dar uma geral ou um homem negro? Então todo camburão tem muito de navio negreiro e o sistema é desigual.
Aqui quero deixar a letra da canção Negro Drama do Racionais MC’s:
Nego drama
Entre o sucesso e a lama
Dinheiro, problemas, invejas, luxo, fama
Nego drama
Cabelo crespo e a pele escura
A ferida, a chaga, à procura da cura
Nego drama
Tenta ver e não vê nada
A não ser uma estrela
Longe, meio ofuscada
Sente o drama
O preço, a cobrança
No amor, no ódio, a insana vingança
Nego drama
Eu sei quem trama e quem tá comigo
O trauma que eu carrego
Pra não ser mais um preto fodido
O drama da cadeia e favela
Túmulo, sangue, sirene, choros e velas
Passageiro do Brasil, São Paulo, agonia
Que sobrevivem em meio às honras e covardias
Periferias, vielas, cortiços
Você deve tá pensando
O que você tem a ver com isso?
Desde o início, por ouro e prata
Olha quem morre, então
Veja você quem mata
Recebe o mérito a farda que pratica o mal
Me ver pobre, preso ou morto já é cultural
Histórias, registros e escritos
Não é conto nem fábula, lenda ou mito
Não foi sempre dito que preto não tem vez?
Então olha o castelo e não
Foi você quem fez, cuzão
Eu sou irmão do meus truta de batalha
Eu era a carne, agora sou a própria navalha
Tim-tim, um brinde pra mim
Sou exemplo de vitórias, trajetos e glórias
O dinheiro tira um homem da miséria
Mas não pode arrancar de dentro dele a favela
São poucos que entram em campo pra vencer
A alma guarda o que a mente tenta esquecer
Olho pra trás, vejo a estrada que eu trilhei, mó cota
Quem teve lado a lado e quem só ficou na bota
Entre as frases, fases e várias etapas
Do quem é quem, dos mano e das mina fraca
Hum, nego drama de estilo
Pra ser, se for tem que ser
Se temer é milho
Entre o gatilho e a tempestade
Sempre a provar
Que sou homem e não um covarde
Que Deus me guarde, pois eu sei que ele não é neutro
Vigia os rico, mas ama os que vem do gueto
Eu visto preto por dentro e por fora
Guerreiro, poeta, entre o tempo e a memória
Ora, nessa história vejo dólar e vários quilates
Falo pro mano que não morra e também não mate
O tic-tac não espera, veja o ponteiro
Essa estrada é venenosa e cheia de morteiro
Pesadelo, hum, é um elogio
Pra quem vive na guerra, a paz nunca existiu
No clima quente, a minha gente sua frio
Vi um pretinho, seu caderno era um fuzil, fuzil
Nego drama
Crime, futebol, música, carai’
Eu também não consegui fugir disso aí
Eu sou mais um
Forrest Gump é mato
Eu prefiro contar uma história real
Vou contar a minha
Daria um filme
Uma negra e uma criança nos braços
Solitária na floresta de concreto e aço
Veja, olha outra vez o rosto na multidão
A multidão é um monstro sem rosto e coração
Hei, São Paulo, terra de arranha-céu
A garoa rasga a carne, é a Torre de Babel
Família brasileira, dois contra o mundo
Mãe solteira de um promissor vagabundo
Luz, câmera e ação, gravando a cena vai
Um bastardo, mais um filho pardo sem pai
Hei, senhor de engenho, eu sei bem quem você é
Sozinho cê num guenta, sozinho cê num entra a pé
Cê disse que era bom e as favela ouviu
Lá também tem uísque, Red Bull, tênis Nike e fuzil
Admito, seus carro é bonito, é, e eu não sei fazer
Internet, videocassete, os carro loco
Atrasado, eu tô um pouco sim, tô, eu acho
Só que tem que
Seu jogo é sujo e eu não me encaixo
Eu sou problema de montão, de Carnaval a Carnaval
Eu vim da selva, sou leão, sou demais pro seu quintal
Problema com escola eu tenho mil, mil fita
Inacreditável, mas seu filho me imita
No meio de vocês ele é o mais esperto
Ginga e fala gíria; gíria não, dialeto
Esse não é mais seu, oh, subiu
Entrei pelo seu rádio, tomei, cê nem viu
Nóis é isso ou aquilo, o quê? Cê não dizia?
Seu filho quer ser preto, ah, que ironia
Cola o pôster do 2Pac aí, que tal? Que cê diz?
Sente o negro drama, vai, tenta ser feliz
Ei bacana, quem te fez tão bom assim?
O que cê deu, o que cê faz, o que cê fez por mim?
Eu recebi seu ticket, quer dizer kit
De esgoto a céu aberto e parede madeirite
De vergonha eu não morri, to firmão, eis-me aqui
Você não, cê não passa quando o mar vermelho abrir
Eu sou o mano, homem duro, do gueto, Brown, oba
Aquele loco que não pode errar
Aquele que você odeia amar nesse instante
Pele parda e ouço funk
E de onde vem os diamante? Da lama
Valeu mãe, negro drama (drama, drama, drama)
Aí, na época dos barraco de pau lá na Pedreira
Onde cês tavam?
Que que cês deram por mim?
Que que cês fizeram por mim?
Agora tá de olho no dinheiro que eu ganho?
Agora tá de olho no carro que eu dirijo?
Demorou, eu quero é mais, eu quero até sua alma
Aí, o rap fez eu ser o que sou
Ice Blue, Edy Rock e KL Jay
E toda a família, e toda geração que faz o rap
A geração que revolucionou, a geração que vai revolucionar
Anos 90, século 21, é desse jeito
Aí, você sai do gueto
Mas o gueto nunca sai de você, morô irmão?
Cê tá dirigindo um carro
O mundo todo tá de olho ‘ni você, morô?
Sabe por quê? Pela sua origem, morô irmão?
É desse jeito que você vive, é o negro drama
Eu num li, eu não assisti
Eu vivo o negro drama
Eu sou o negro drama
Eu sou o fruto do negro drama
Aí Dona Ana, sem palavra
A senhora é uma rainha, rainha
Mas aí, se tiver que voltar pra favela
Eu vou voltar de cabeça erguida
Porque assim é que é, renascendo das cinzas
Firme e forte, guerreiro de fé
Vagabundo nato!
Pois é, a luta de resistência continua e nós, brancos, precisamos estar como soldados e coadjuvantes, entendendo a herança que carregamos. Todas, todos e todes devem se empoderar.
Não, não temos o que celebrar com a Princesa Isabel no dia 13 de maio, mas temos que lembrar que no dia 20 de novembro mataram Zumbi dos Palmares e não foi em vão que o guerreiro deu a vida pela causa. Se você nunca sentiu na pele a desigualdade, escute quem sente todos os dias antes de falar.
Danilo Nunes é músico, ator, historiador e pesquisador de Cultura Popular Brasileira e Latino-americana.
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