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As mulheres cantadas por Marilia Mendonça, a rainha do feminejo e da sofrência

Desde a última sexta o país inteiro está de luto, sofrendo pela morte repentina da cantora de apenas 26 anos e com uma carreira meteórica
Patricia Galvão
Esquerda Diário
São Paulo (SP)

Tradução:

A sofrência, bem como o brega, sempre foram estilos musicais marginais no mainstream da indústria cultural. São consideradas músicas para o povão, para a empregada de forma pejorativa, como se não houvesse arte na arte popular. A MPB era a música oficial brasileira, com nomes como Elis, Chico, Caetano, Milton, Tom ou Maria Betânia, que são brilhantes. 

Mas o brega, cantado por Odair José, Aguinaldo Timóteo, Cauby Peixoto, entre outros, foi importante expoente da contracultura dos anos 60-70, embora ofuscado pelas músicas de protesto contra a ditadura, mesmo que seus principais artistas tenham sofrido com a censura. Odair José falava da liberação sexual em oposição a família tradicional pintada pelos generais. 

A subversão pelo sexo era uma reação ao controle excessivo que os militares pregavam sobre a juventude e principalmente as mulheres. A controversa música Pare de Tomar a Pílula é uma resposta não ao que o anticoncepcional representou para a liberdade sexual feminina, mas ao controle de natalidade que a ditadura tentava impor especialmente às trabalhadoras, numa visão malthusiana que tentava acabar com a pobreza acabando com os pobres.

Desde a última sexta o país inteiro está de luto, sofrendo pela morte repentina da cantora de apenas 26 anos e com uma carreira meteórica

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Chamada de rainha da sofrência, Marilia conseguiu com suas canções retratar dilemas da mulher comum

Agnaldo Timóteo, uma figura bastante controversa, especialmente no fim da vida, cantava com sensibilidade as descobertas e experiências homoeróticas com músicas como Galeria do Amor, uma ode a Galeria Alaska, ponto de encontro entre gays no Rio de Janeiro dominado pelo conservadorismo do regime militar.

A ditadura militar acabou nos anos 80 e com a cooptação neoliberal sobre pautas mais sensíveis dos oprimidos, os debates sobre gênero e sexualidade se tornaram mais presentes no cotidiano das artes em geral. Mas o estigma da música do povo, seja o brega ou gêneros como a sofrência, se mantiveram, embora sejam nichos de mercado extremamente lucrativos. Essa contradição está presente em fenômenos como o feminejo, o sertanejo cantado sob o ponto de vista das mulheres.

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O sertanejo era um universo bastante masculino. Embora falasse de corações partidos e fosse ouvido e cantado por milhões de mulheres, a narrativa era sob o olhar do homem. Seja aquele que foi trocado ou o arrependido, seu conteúdo partia de uma certa idealização do relacionamento e era frequentemente um apelo, as vezes com chantagens emocionais, para que a amada voltasse. A sofrência sob a ótica masculina, embora com temas mais descontraídos que falam da Rita que desferiu uma facada no amante ou da Letícia que saiu com o mototaxista, também seguem um pouco por esse caminho.

O feminejo às vezes também. Mas muitas de suas músicas falam de abandono, traição e vingança, outras de amores tórridos e prazer feminino. Marilia Mendonça, no entanto, tinha algo mais dissonante, embora seja considerada a rainha da sofrência.

Como uma expressão, mesmo que com contradições, do que foi chamado de primavera feminista, com marchas de mulheres contra Trump, atos massivos por Ni Una Menos, ou com a maré verde argentina pelo direito ao aborto e o Me Too e Time’s Up contra a violência e o assédio sexual, Marilia Mendonça conseguia nas suas músicas expressar a mudança na subjetividade feminina dos últimos tempos. Expressava os anseios e dilemas de uma mulher do seu tempo. A necessidade de superar amores e relacionamentos tóxicos ou abusivos, combater o estigma da amante e da mulher traída e fortalecer a solidariedade, ou sororidade, entre as mulheres, eram temas recorrentes.

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Seu primeiro sucesso Infiel, partia de apontar no homem a responsabilidade por uma traição ao invés da “tradicional” culpa da outra, da competição entre mulheres por satisfazer o homem. Diferente do outro hit da mesma época, 50 reais, onde o homem traidor e a amante eram alvos da fúria da mulher traída.

Marilia também cantou o drama da amante em Ciumeira. Embora, tenha “aceitado” inicialmente o papel da outra, a amante sofre porque não quer ser amante, não quer ocupar essa posição. Em outra música, a amante pede desculpas a mulher por ter se metido em sua família, e lamenta sua reputação numa sociedade machista que julga apenas a mulher, que fica “mal falada”, enquanto aos homens é permitido, às vezes até celebrado, a infidelidade.

“E o preço que eu pago
É nunca ser amada de verdade
Ninguém me respeita nessa cidade
Amante não tem lar
 Amante nunca vai casar”

Em 2020, com o projeto Patroas, junto a dupla Maiara e Maraísa, Marília Mendonça falou da violência doméstica. Em meio a pandemia os casos de agressão e feminicidios tiveram um salto. Ficar em casa para as mulheres, não era apenas se proteger do coronavírus.

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Significava também maior vulnerabilidade às violência doméstica. Pouco antes do lançamento da música Você não manda em mim, um caso brutal de violência doméstica tomou conta das redes sociais. O DJ Ivis agredia sua companheira, Pamella Holanda com socos e pontapés. O lançamento dessa canção não se referia especificamente ao caso do DJ Ivis, mas seu lançamento foi uma resposta certeira a essa violência que rendeu ao artista um aumento de seguidores ao mesmo tempo que mulheres por todo o país se solidarizaram por Pamella, inclusive a própria Marilia Mendonça.

“Seu amor é mal acostumado a gritar e proibir. Você não manda em mim, eu sei aonde eu devo ir. Eu sei o que eu posso vestir. Se tudo que eu faço te incomoda, você sabe o caminho da porta. “

Em Troca de Calçada, Marilia Mendonça recorre a um tema tabu: a prostituição. Longe de julgamentos morais ou embelezamento da condição de prostituta, a música foca no estigma social. Não se sabe os motivos para a mulher estar nessa posição e isso não é o importante, pois não se trata de uma história à moda de Uma linda mulher, onde a prostituta e o playboy formam um casal romântico idealizado. A canção fala do peso moral que essas mulheres carregam, que expõe a contradição da sociedade patriarcal onde o casamento e a pureza feminina são idealizados enquanto os corpos femininos são objetificados e o sexo transformado em mercadoria.

“É claro que ela já sonhou em se casar um dia
Não estava nos planos ser vergonha pra família
Cada um que passou levou um pouco da sua vida
 E o resto que sobrou, ela vende na esquina”

Todo esse repertório musical que ocupou incessantemente o topo das paradas de sucesso e a ascensão meteórica de Marilia expressaram o reflorecer do movimento de mulheres. Mulheres comuns, ouviam suas músicas e se identificavam com elas. Os conselhos de superação, feitos de mulher para mulher, conseguiam expressar, ainda que de forma distorcida, que a mulher tinha um papel superior ao de esposa de alguém ou mãe de tal pessoa. As mulheres podiam assumir o controle de suas vidas.

Claro que isso tudo não esconde as contradições. Embora arte e política seja uma combinação explosiva e potente, o sistema capitalista faz de tudo para despolitizar a arte e esvaziar a crítica. A indústria cultural é brilhante em limitar e enlatar a produção artística para que ela possa ser consumida por todos os gostos, da direita à esquerda, pela patroa ou pela empregada e Marilia Mendonça não estava imune a isso. Num meio bastante machista e com ligações profundas com a direita e o agronegócio, o sertanejo não é um espaço fácil para posições políticas dissonantes. Em 2018, ao se incorporar ao fenômeno do #EleNão contra Bolsonaro, Marilia foi bastante atacada nas redes sociais, apagando postagens e pedindo desculpas.

Críticas ao silenciamento em relação a posturas machistas, homofóbicas e machistas de colegas de profissão, bem como comentários de senso comum transfóbico, não passaram batidos. No último caso, a cantora prontamente se desculpou pelo comentário, sem buscar se justificar, ao contrário, se mostrando aberta a aprender e admitir seus erros.

As contradições da indústria cultural também cobravam seu preço em relação ao seu corpo. Gorda, falava com naturalidade do seu corpo e tinha consciência das pressões do padrão de beleza imposto às mulheres, sobretudo no meio artístico. Isso não a impedia de “tocar o foda-se” quando usou uma roupa curta pretensamente feita para mulheres magras. A saga que passou seu corpo foi implacavelmente seguida pela imprensa até mesmo no dia de sua morte. Dietas e cirurgia plástica foram motivo de especulação por diversas vezes. É possível que Marília possa ter cedido a pressão estética. Ela não seria a única. Tampouco isso é um demérito em relação a enorme artista que foi. A “briga” com a balança diz mais a respeito do patriarcado do que em relação às mulheres. Nessa sociedade as mulheres são vendidas por peso, data de fabricação, cor e origem.

Marilia Mendonça foi uma gigante. Sua voz inconfundível, potente ecoa nos lares, nos transportes, nos rádios dos escritórios, nos programas de TV. Expressão de sua época, ela foi capaz de trazer um novo olhar sobre o sertanejo e o drama das mulheres comuns.

Difícil superar essa perda. Sofremos.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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