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Nilo Cerqueira | Até breve, Dona Alaíde do Feijão, A Mãe Preta da Bahia

Matriarca do quilombo urbano Restaurante Alaíde do Feijão, Dona Alaíde foi mãe e guerreira combativa, acolhedora e fraterna
Nilo Cerqueira
Diálogos do Sul
Salvador (BA)

Tradução:

A Mãe Preta da Bahia

Alaíde Conceição, a nossa querida Dona Alaíde do Feijão, matriarca do quilombo urbano Restaurante Alaíde do Feijão que por mais de 40 anos arregimentou personagens do movimento negro da Bahia, em profunda articulação social e política sob a égide dos princípios do candomblé. Não por acaso, o prato principal de seu restaurante, é um dos quitutes mais conhecidos dos candomblés da Bahia, a Feijoada.

O candomblé tem sua centralidade a comunhão coletiva, no sentimento familiar, de unidade e de ajô (nome pelo qual conferimos a essa comunhão de positividade e boas energias), louvamos, dançamos, cantamos e comemos. A feijoada de Ogum é esse epiteto. Alias, não só a feijoada, como também o olubaje, festejo ao qual, seu santo de cabeça, Obaluaiye, propõe esse ajô.

A comida tem a centralidade na comunicação dos Deuses e Deusas dessa cosmogonia diaspórica, a qual chamamos de candomblé. E esse legado, construiu e constituiu boa parte das nossas relações mais profundas de afeto.

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Dona Alaíde sabia disso como ninguém. Seu quilombo foi palco de diversas articulações políticas, criações de blocos carnavalescos, de inciativas culturais, de pensamentos e reflexões de projeto de Bahia e de Brasil.

Dona Alaíde foi sem sombra de dúvidas uma mãe, investida de suas insígnias, brava, guerreira, combativa e sobretudo acolhedora e fraterna.

A partida de Dona Alaíde no dia de hoje deixa inúmeros filhos órfãos para além dos seus filhos carnais que teve e deixará uma lacuna irreparável no aiyê, para ser no orun, um ancestral a olhar por nós!

Até outro dia Mãe!

Nilo Cerqueira é militante do Movimento Negro da Bahia.

Matriarca do quilombo urbano Restaurante Alaíde do Feijão, Dona Alaíde foi mãe e guerreira combativa, acolhedora e fraterna

Acervo pessoal
Dona Alaíde foi sem sombra de dúvidas uma mãe, investida de suas insígnias, brava, guerreira, combativa e sobretudo acolhedora e fraterna

Sepultamento de Alaíde do Feijão é marcado por dor, saudade e desejo de manter vivo seu legado

Matéria publicada no Correio:

Matriarca, empresária e revolucionária foi enterrada no cemitério da Quinta dos Lázaros, em cerimônia restrita a amigos e familiares

Alaíde do Feijão era uma mulher que amava viver. Por ter tanto amor à vida, dela e de seu entorno, é que foi tão difícil enterrar a matriarca, empresária e revolucionária, falecida na última segunda-feira (31), após uma parada cardiorrespiratória que sofreu em decorrência do coronavírus, aos 72 anos. Ninguém esperava que ela fosse tão cedo e talvez por isso os clarins da Alvorada, que eram tocados para ela na saída do Bloco – o mais antigo de samba da Bahia – soassem tão tristes. Ao mesmo tempo, solenes. Como foi dona Alaíde.

Na manhã desta terça-feira (1), aconteceu o sepultamento de Alaíde, no Cemitério da Quinta dos Lázaros, na Baixa de Quintas. Era o desejo da matriarca: ali, familiares e pessoas próximas a ela descansam na eternidade. Despedir-se, deste mundo, ali, é simbólico à história de uma mulher que sempre aquilombou a vida e esteve tão próxima de todo mundo que amou e que a amava.

Alaíde estava à frente de seu restaurante desde 1974 (Foto: Reprodução/Facebook)Amizades como o seu irmão de coração, o Vovô do Ilê, e amigos próximos como João Jorge e a deputada Olívia Santana – a quem ela incentivou a se lançar na política, estiveram presentes para o último adeus junto a filhas, netos e bisnetos.

Segunda das três filhas, Jaqueline Conceição falou que o momento é de uma dor profunda. Ora, ninguém está preparado para enterrar um ente querido. Jaqueline aproveitou para agradecer a presença das pessoas que foram até o cemitério deixar o último adeus e afirmou que todo o carinho recebido pela família desde ontem é um atestado do quão querida era sua mãe. E sente orgulho de ser um pedacinho de dona Alaíde.

“Ela tinha o carinho de muita gente, até pessoas em situação de rua, pessoas ali do Pelourinho sempre respeitaram e consideraram ela por essa mulher que ela foi. Ela deixou o legado para darmos continuidade”, disse Jaqueline.

Deputada estadual, Olívia Santana afirmou que esperava ver a amiga viver pelo menos por mais de 90 anos e contou o quanto ela amava seu trabalho, o Pelourinho e receber as pessoas que amava. Segundo Olívia, o restaurante era um espaço que ia além de ser o ganha-pão de dona Alaíde. Era, na verdade, um espaço de cultivo: de ideias, amizades e corações.

“Ela tinha um poder agregador impressionante. Temos várias correntes e segmentos no Movimento Negro, assim como em todo movimento social. Então é normal ter brigas, discordâncias, brigas e afastamentos. Mas em Alaíde havia um ponto de unidade, ali a gente virava uma coisa só, junto a ela”, contou.

Ao lado de Olívia Santana, Alaíde (esq.) curte o samba liderado por Leci Brandão – sua amiga e ídola. Dezembro/2019 (Foto: Acervo Pessoal)

Olhando de fora, é natural imaginar que quase sete décadas e meia de vida é muito. Mas a força de Alaíde em seu dia-a-dia dá a impressão que 72 anos foi menos do que ela era e, mais do que isso, do que merecia. Mesmo com a idade avançada e os problemas de saúde que decorrem dela, Alaíde continuava como senhora de sua vida. Era uma líder nata e fazia questão de impor isso.

A pandemia do coronavírus foi um baque muito grande na força dela. Imagina só a dificuldade de uma pessoa que se fez pelo contato precisar, de uma hora pra outra, se isolar de tudo? Antes da pandemia, era ela quem ia até a Feira de São Joaquim para escolher com cuidado os ingredientes de seu feijão. Dos grãos à carne, passando pela farinha e as verduras para a saladinha que acompanhava seu carro-chefe. Perder a autonomia de sua vida foi um golpe duro para ela que sempre foi tão dona de si.

Por várias vezes, Leninha, a filha mais velha, dizia querer assumir algumas funções para a mãe descansar um pouco e tinha o pedido prontamente negado. “Pode ir comigo, mas sozinha, não!”, exclamava. As memórias foram relatadas ao Correio por Olívia Santana.

“Ela guerreava por ela e pelas outras pessoas. Para ela fazer a quarentena foi difícil, ela ficava arrasada de ficar em casa e não estar no Pelourinho atendendo, recebendo. Alaíde era uma mulher negra e lutadora, que fez do seu feijão um objeto de luta pela vida dela, da família e de todo seu entorno”, contou a deputada.

O sepultamento teve uma missa curta rezada pelo padre Lázaro Muniz, conhecido por fazer um ministério que abre as portas da Igreja Católica para candomblecistas como era Alaíde – uma mulher cheia de fé nos orixás.

Amigos próximos relataram da tristeza por precisar sepultá-la sem sequer ter a oportunidade de ver seu rosto uma última vez por conta dos protocolos de proteção contra o coronavírus. Havia uma grande tristeza também porque não foi uma partida do jeito que se imaginava num mundo ideal, num mundo de Alaíde, com muita gente e onde pelo menos o contato fosse possível para amenizar a dor da partida.

No meio de toda a tristeza pela despedida, a voz de Clara Nunes na música Macunaíma se fazia presente: dona Alaíde foi-se embora e, aqui, não volta mais. Agora, a matriarca está no infinito e vai virar constelação. É certeza que seu legado seguirá vivo na luta contra o racismo e pela construção de um mundo com mais amor, piedade e feijão quentinho.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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