Pesquisar
Pesquisar

Gregório de Mattos: o poeta morto em 1695 que recebeu "voz de prisão" pela ditadura militar

Escritor se transformou no maior poeta satírico da língua portuguesa do período barroco e um homem à frente do seu tempo
Carlos Russo Jr
Diálogos do Sul Global
Florianópolis (SC)

Tradução:

A ditadura cívico-militar no Brasil aliou à brutalidade o arbítrio da idiotice.

Natal de 1969. O então governador da Bahia, Luís Viana, recebeu ofício em tom de ordem do general Abdon Sena, comandante da 6ª Região Militar: o militar queria que ele mandasse apreender a edição das poesias completas do baiano Gregório de Mattos Guerra, falecido em 1695, publicada pela pequena editora Janaína, de Salvador.

Assista na TV Diálogos do Sul

Sena, general grotesco da ditadura, ainda por carta, repreendeu o governador por ter ajudado na publicação de um autor que o Exército considerava “subversivo, anticlerical e pornográfico”. Acontence que, Membro da Academia Brasileira de Letras e biógrafo de Rui Barbosa, Viana Filho havia sido imposto pelo próprio regime militar para governar a Bahia!

E parte da edição foi realmente confiscada pelos esbirros armados e queimada, como nos tempos da velha Inquisição, contra a qual se levantara o espírito anárquico-libertário de Gregório de Matos.

Em defesa da família brasileira”, o general Sena emitiu, então, ordem de prisão para Gregório de Matos!

Por não ser baiano, o estúpido não sabia que Gregório de Mattos estava morto e sepultado havia dois séculos. Mais que isso, o poeta tornara-se um mito de uma Bahia que ele defendeu com sua poesia crítica corrosiva e libertária.

Escritor se transformou no maior poeta satírico da língua portuguesa do período barroco e um homem à frente do seu tempo

Guia do Estudante
Perigoso e mordaz, apelidaram-no de “O Boca do Inferno”




Autor de poemas satíricos, o tempo fizera dele herói popular

A partir de uma escrita em português arcaico barroco, Gregório de Mattos fez versos que misturaram sagrado e profano, e usou a linguagem sexual como recurso para tratar de valores e de atitudes políticas e religiosas ou de comportamento obtuso. Foi, de certa forma, nosso precursor brasileiro do iluminismo, uma geração anterior à de Voltaire, Diderot e Rousseau.

Construiu uma obra que o transformou no maior poeta satírico da língua portuguesa do período barroco e um homem à frente do seu tempo, um febril defensor de mudanças.

Carlos Russo: “Ser de esquerda significava trazer em nós uma mensagem libertadora”

Foi igualmente, por esses trópicos, um cavaleiro solitário que confrontou filosoficamente a elite, a Igreja e o poder central. Em retribuição ao apelido de “Boca do Inferno”, por exemplo, ele denominou Salvador e sua classe dominante de “ a canalha infernal”.


Gregório de Matos

Gregório de Matos Guerra nasceu na então capital do Brasil, em 1636, época de grande efervescência social, e faleceu no Recife em 1695. Filho de aristocratas, estudou humanidades e, em Coimbra, se formou em Direito. Exerceu em Portugal os cargos de curador de órfãos e de juiz criminal, mas não se adaptou à vida na metrópole, regressando ao Brasil aos 47 anos de idade.

Na Bahia apaixonou-se pela viúva Maria de Povos, com quem passou a viver, com prodigalidade, até ficar reduzido à miséria. Então, nadou em uma existência boêmia, aborrecido do mundo e de todos, e a todos satirizando com mordacidade.

O governador D. João de Alencastre, foi obrigado a protege-lo da Santa Inquisição, mandando-o em degredo para Angola. Advogou em Luanda, mas terminou por retornar ao Brasil, estabelecendo-se em Pernambuco, até o final de sua vida. O francês Voltaire, também por seu pensar e falar, viveu exilado na Inglaterra e, tal qual nosso Iluminista, morreu “exilado” na Suiça.

O poeta

Como poeta de inesgotável fonte satírica não poupou nem ao governo luso, muito menos à falsa nobreza da terra, ou ao todo poderoso clero.

Não lhe escaparam os padres corruptos, os reinóis e degredados, nem mesmo os mulatos e emboabas, os “caramurus”, os arrivistas e novos-ricos, toda uma burguesia improvisada e inautêntica, exploradora da colônia.

Perigoso e mordaz, apelidaram-no de “O Boca do Inferno”.

Foi o primeiro poeta a cantar o elemento brasileiro, o tipo local, produto do meio geográfico e social, influenciado que fora pelos mestres espanhóis da Época de Ouro, Góngora, Gracián e sobretudo Quevedo.

Sua obra caminha desde a poesia lírica e sacra, atingindo o satírico e erótico.

Seus poemas eram distribuídos por manuscritos, de mão em mão, e o governador da Bahia, sempre o progressista D. João de Alencastre, que tanto admirava “as valentias desta musa”, coligia os versos de Gregório de Matos e os fazia transcrever em livros especiais.

Transcrevemos nós um de seus poemas, que ilustra nosso poeta genial:

À cidade da Bahia

“A cada canto um grande conselheiro.

que nos quer governar cabana, e vinha,

não sabem governar sua cozinha,

e podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um frequentado olheiro,

que a vida do vizinho, e da vizinha

pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,

para a levar à Praça, e ao Terreiro.

Muitos mulatos desavergonhados,

trazidos pelos pés os homens nobres,

posta nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados,

todos, os que não furtam, muito pobres,

e eis aqui a cidade da Bahia.”

Frases de Gregório de Matos, umas dentre aquelas que, provavelmente, decretaram sua prisão em 1969:

• “De que pode servir calar, quem cala nunca se há de falar, o que se sente? Sempre se há de sentir, o que se fala!”.

• “Se és fogo, como passas brandamente, se és neve, como queimas com porfia? Mas ai, que andou Amor em ti prudente!”

• “Eu sou aquele, que passados anos cantei na minha lira maldizente torpezas do Brasil, vícios, e enganos”

• “Porém, se acaba o Sol, por que nascia? Se é tão formosa a Luz, por que não dura?”

• “O honesto é pobre, o ocioso triunfa, o incompetente manda. Se justificam mentindo com pretextos enganosos, e com rodeios fingidos.”

E os militares de 1964, truculentos e estúpidos, decretaram sua prisão e possível tortura. Mais de dois séculos após sua morte!

Carlos Russo Junior | Colaborador da Diálogos do Sul em Florianópolis.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

Assista na TV Diálogos do Sul


Se você chegou até aqui é porque valoriza o conteúdo jornalístico e de qualidade.

A Diálogos do Sul é herdeira virtual da Revista Cadernos do Terceiro Mundo. Como defensores deste legado, todos os nossos conteúdos se pautam pela mesma ética e qualidade de produção jornalística.

Você pode apoiar a revista Diálogos do Sul de diversas formas. Veja como:


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

LEIA tAMBÉM

50 anos da Cadernos do Terceiro Mundo uma nova ordem informativa em prol do Sul Global
50 anos da Cadernos do Terceiro Mundo: uma nova ordem informativa em prol do Sul Global
album-referente-aos-festejos-nacionais-do-5o-aniversario-da-proclamacao-da-d4c858
Golpe e proclamação da República: a consolidação do liberalismo econômico no Brasil
A miséria humana diante da barbárie em Os últimos dias da humanidade, de Karl Kraus
A miséria humana diante da barbárie em "Os últimos dias da humanidade", de Karl Kraus
O perigo do nazismo e dos neopentecostais
O perigo do nazismo e dos neopentecostais