“Indivíduos que produzem em sociedade, ou seja
a produção dos indivíduos socialmente determinada:
Este é naturalmente o ponto de partida.”
Karl Marx, 1857[1]
Hoje começamos novamente a entender que os conceitos e categorias de uma época já não bastam para explicar as mudanças que ocorrem na subsequente como resultado do desenvolvimento das contradições que aquela abrigava. Isso tem especial importância para quem nos formamos em e para as realidades de nossa América entre as décadas de 1960 e 1970, no calor gelado da Guerra Fria.
Hoje é bom recordar, por exemplo, as formas como ocorreu nosso primeiro encontro com Marx, cuja obra vê renovar-se sua atração e sua importância em nosso tempo. Naquela época, era usual que esse encontro começasse com a leitura do Manifesto Comunista, de 1848, nos últimos anos da educação secundária ou nos primeiros anos da universitária.
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A isto costumava suceder uma leitura das Teses sobre Feuerbach, de 1845, e dali, com um pouco de orientação, passava-se ao “Prólogo” de sua Contribuição à Crítica da Economia Política, de 1859, em um de cujos parágrafos se encontra uma breve síntese do materialismo histórico.
A partir dali, passava-se à exploração da dimensão política do papel da luta de classes como expressão das contradições entre o desenvolvimento das forças produtivas e o das relações de produção, com a leitura do 18 Brumário de Luís Bonaparte, de 1852.
A atualidade de Marx para a classe trabalhadora
A Crítica do Programa de Gotha, de 1875, permitia um primeiro acesso às diferenças entre a fase socialista e a comunista na transformação do mundo e, por último, já com uma curiosidade mais ou menos informada, na primeira maturidade chegava-se à leitura do primeiro tomo do Capital, publicado em 1867.[2]
Esta aprendizagem ocorria em um contexto de disputas entre ismos que reduziam todo problema a sua própria capacidade explicativa, enquanto se desqualificavam entre si com singular ferocidade.
Hoje poderíamos dizer que o principal beneficiário final destas disputas veio a ser nosso liberalismo, que conseguiu converter o marxismo de então em sua própria esquerda, primeiro, para diluí-lo depois naquela socialdemocracia forjada (Marx dixit) limando “a ponta revolucionária” das reivindicações sociais do proletariado para dar-lhes uma “guinada democrática”, enquanto despojavam-se as exigências democráticas da pequena burguesia “da forma meramente política” e se afiava “sua ponta socialista”, com o que seus adeptos passaram a “exigir instituições democrático-republicanas, não para abolir os dois extremos, capital e trabalho assalariado, e sim para atenuar sua antítese e convertê-la em harmonia.”[3]
Contudo, nada disso exclui a formação de lutadores e polemistas que travaram uma luta incessante contra o neocolonialismo, a exploração dos trabalhadores e a desigualdade em sociedades em que os males do capitalismo viam-se agravados pelas insuficiências e distorções de seu desenvolvimento. Daquelas lutas, com todas as suas desventuras e sobretudo com suas venturas, podemos obter hoje pelo menos três experiências de aprendizagem.
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Karl Marx
A mais elementar consiste em conhecer melhor Marx quando se acompanha o desenvolvimento de seu pensar. Em primeiro lugar, claro, ordenando a leitura de seus textos em sua sequência temporal. E, em segundo, outorgando maior importância àqueles que nos permitem compreender as transições no desenvolvimento deste pensar.
Tal é por exemplo o caso da Introdução de 1857 aos trabalhos preparatórios para a elaboração de sua Contribuição à Crítica da Economia Política, já mencionada. Marx, segundo Umberto Curi, redigiu este breve texto para facilitar sua própria passagem à maturidade de seu pensar, de que viria a resultar o esboço (Grundrisse) de sua análise em profundidade do capital, que abriu caminho ao processo que desembocaria no primeiro tomo do Capital, uma década depois.
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Outra experiência de aprendizagem é a que nos leva a distinguir entre a atualidade do proposto por Marx nos 38 anos que vão de suas Teses sobre Feuerbach até sua morte em 1883, e a vigência do pensar de seus anos de maturidade, contados – digamos –- a partir da publicação de sua obra maior. A vigência deste pensar se expressa já entre o fim da década de 1920 e meados da seguinte na elaboração por Antonio Gramsci de uma filosofia da práxis que sintetiza de modo admirável as dimensões dialética e histórica do materialismo de Marx. Com isso, facilitou a tarefa de levar a um novo nível de complexidade as expressões culturais e políticas que vão abrindo passagem para a possibilidade de transcender, ainda, o liberalismo como geocultura e o próprio capital como modalidade de organização da “produção dos indivíduos socialmente determinada” a que se refere Marx em sua Introdução de 1857.
Gramsci, com efeito, elabora a dimensão política do pensar de Marx como intelectual orgânico do proletariado do Atlântico Norte na segunda metade do século XIX, pensador e organizador ao mesmo tempo. Faz isso, aliás, de um modo que facilita a tarefa de conhecer e compreender as raízes históricas deste pensar.
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A filosofia da práxis, diz Gramsci, “pressupõe todo o passado cultural, o Renascimento e a Reforma, a filosofia alemã e a Revolução Francesa, o calvinismo e a economia clássica inglesa, o liberalismo laico e o historicismo, que é a base de toda a concepção moderna da vida.” Ela é, em suma,
o coroamento de todo este movimento de reforma intelectual e moral, dialetizado no contraste entre cultura popular e alta cultura. Corresponde ao nexo reforma protestante mais Revolução Francesa; é uma filosofia que também é uma política que também é uma filosofia.[4]
Esta colocação ajuda a entender que entre nós a obra de Gramsci tenha desempenhado um papel tão importante na revitalização da luta por transformar o mundo. Assim o entendia por exemplo Armando Hart – martiano combatente e mestre de martianos – ao indicar, a partir da experiência da revolução cubana, que as raízes desde as quais caberia propor a formação e o desenvolvimento daquele socialismo indoamericano intuído por José Carlos Mariátegui na década de 1920 incorporaram a obra de José Martí, à visão do popular revolucionário em Ernesto Guevara, e à Teologia da Libertação.[5]
Daí cabe compreender com especial riqueza os termos do encontro entre o pensar de Marx e nossa própria cultura política, tal como expressou o próprio Martí na plenitude de sua maturidade, ao dizer-nos que:
Conhecer é resolver. Conhecer o país, e governá-lo conforme o conhecimento, é o único modo de livrá-lo de tiranias. […] Os políticos nacionais hão de substituir os políticos exóticos. Enxerte-se em nossas repúblicas o mundo; mas o tronco há de ser o de nossas repúblicas. E cale o pedante vencido; que não há pátria em que possa ter o homem mais orgulho que em nossas dolorosas repúblicas americanas.[6]
Desde ali, na verdade, hoje como antes de ontem, temos dito basta, e começado a andar.
Alto Boquete, Panamá, 16 de março de 2023
[1] Marx, Karl (1857): Introdução Geral à Crítica da Economia Política. Introdução de Umberto Curi. Siglo XXI, México, 1974, p. 33.
https://proletarios.org/books/Marx-Introd_gral_a_la_critica_de_la_economia_politica.pdf
[2] Esta trajetória pode ser contrastada hoje, por exemplo, com a que oferece a Antologia de Karl Marx. Seleção e introdução de Horacio Tarcus, localizada por Siglo XXI em 2015, e que em 2019 teve sua terceira edição, que se remonta a textos de Marx escritos desde a esquerda hegeliana na primeira metade da década de 1840, e apresenta vários dos textos clássicos aqui mencionados em uma ordem cronológica que facilita compreender o desenvolvimento do pensar do autor por meio do pensado e proposto nestes textos.
[3] Marx, Karl (1852): O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Capítulo III. Fonte: C. Marx e F. Engels, Obras escolhidas em três tomos, Editorial Progresso, Moscou 1981, Tomo I, páginas 404 a 498. https://www.marxists.org/espanol/m-e/1850s/brumaire/brum1.htm
[4] Gramsci, Antonio, (2003: 93-94) O Materialismo Histórico e a Filosofia de Benedetto Croce. Ediciones Nueva Visión, Buenos Aires. Tradução de Isidoro Flambaun. “II: Alguns problemas para o estudo da filosofia da praxis”.
[5] Conversa pessoal, na sede do Programa Martiano, do qual era diretor, em algum momento da década de 1990. Cita-se de memória, e consciente dos riscos que isto implica.
[6] “Nossa América”. La América, Nova York, e El Partido Liberal, México, 1º e 30 de janeiro de 1891, respectivamente. Obras Completas. Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 1975. VI, 18.
Guillermo Castro H. | Colaborador da Diálogos do Sul no Panamá.
Tradução: Ana Corbisier.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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